quarta-feira, 3 de abril de 2013

Chipre: que há por trás do silêncio da mídia

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Ensaio jornalístico de Roberto Savio revela quais as causas da crise; como oligarquia financeira impôs seus interesses; por que Alemanha pode ter conquistado vitória de Pirro.

Por Antonio Martins

Vista pelos jornais comerciais, a crise financeira vivida por Chipre, nas duas últimas semanas, parece um fenômeno tão inesperado e imprevisível quanto a queda de um meteoro na Rússia, em fevereiro. Surgiu do nada; não podia ser evitada; causou um número importante de vítimas; mas não afetou, no fim das contas, a rotina do planeta: será esquecida em breve e não há lições a tirar de sua passagem. Fundador da Agência IPS, participante destacado do movimento por uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação, nos anos 1970 e 80, o jornalista ítalo-argentino Roberto Savio percebeu que esta imagem pretendia ocultar algo.

Mas não se limitou a vociferar contra os oligopólios da mídia: foi à luta. Dedicou três dias inteiros da semana passada a uma busca minuciosa de informações. Como ferramentas, usou sua compreensão dos mecanismos financeiros contemporâneos e os infinitos terabytes de informação caótica disponíveis na internet. Produziu um ensaio esclarecedor e alarmante, que Outras Palavras está traduzindo e publicará nos próximos dias. Vele a pena antecipar ao menos três de suas conclusões:

1. Chipre não protegia investidores sujos, nem quebrou por servir à lavagem de dinheiro:

A “explicação” mais comum da mídia para a quebra do pequeno país insular é a suposta proteção que dava a investimentos de origem duvidosa, em especial os ligados às máfias russas. Não passa de mito, demonstra Savio. Segundo o Moneyval, organismo oficial do Conselho da Europa que avalia medidas de proteção contra lavagem de dinheiro, Chipre é um dos poucos países que aplica todas as regras definidas para coibir tal prática. Sua avaliação no Índice de Sigilo Financeiro [Financial Secrecy Index] é 408,5, o que indica muito mais transparência que no Reino Unido (616,5), Alemanha (669,8) ou Suíça (1879,2, numa escala em quanto mais alto o índice, mais opaco é o sistema).

O mimo da ilha aos investidores era outro: impostos extremamente reduzidos: 6 a 7% ao ano, ou metade dos 12% na Irlanda, conhecida por caçar investimentos concedendo-lhes privilégios tributários. A partir de 2004, quando Chipre ingressou na União Europeia, esta oferta foi aceita com entusiasmo pelas finanças globais. Elas inundaram a tal ponto a ilha de dinheiro que o volume de depósitos bancários chegou a oito vezes o PIB. A partir de 2008, uma crise financeira internacional prolongada impôs perdas sucessivas a estes depósitos e acabou tragando os bancos cipriotas em sua espiral.

2. Oligarquia financeira e governos europeus manipularam politicamente a crise:

Os 10 bilhões de euros oferecidos agora pela União Europeia (UE) para o “resgate” de Chipre são rigorosamente insignificantes: 17 vezes menos que o empréstimo à Grécia, ou 0,06% do PIB europeu. Desde junho de 2012, o então presidente cipriota, Dimitris Christofias, havia pedido assistência à UE. Mas as eleições presidenciais na ilha estavam próximas, e Christofias era o único chefe de Estado do Velho Continente eleito por um Partido Comunista.

O empréstimo foi adiado, enquanto a crise se agravava.  Em janeiro de 2013, diversos chefes de Estado europeus conservadores — inclusive a alemã Angela Merkel — visitaram a ilha para participar da campanha do opositor Nicos Anastasiades. Advogado ligado ao sistema financeiro, ele tornou-se presidente em 25/2, no segundo turno das eleições. Então, fez-se o empréstimo.

3. Uma decisão inédita pode abalar confiança na Europa e no sistema financeiro:

Na definição das condições para o “resgate”, prevaleceu a posição alemã. Criou-se um precedente. Pela primeira vez, a UE exigiu que seu empréstimo (os € 10 bilhões) seja complementado por dinheiro retirado dos próprios depositantes nos bancos cipriotas (eles perderão € 7 bilhões).  Em longa entrevista sobre o caso, o ministro das Finanças da Holanda (fortemente aliada a Berlim) anunciou que tal tipo de arranjo é a “nova estrutura” que será usada nos futuros empréstimos.

Isso valerá para Espanha e Itália, cuja situação financeira continua a se agravar? Dezenas de milhões de espanhóis e italianos perderão parte do que têm nos bancos, como ocorreu no corralito argentino de 2001? Savio vê na hipótese uma esperteza e, ao mesmo tempo, uma temeridade. Como os bancos alemães são vistos como os mais seguros da Europa, o precedente pode favorecê-los fortemente, no curto prazo. Se agora os depósitos bancários não estão mais garantidos pelos Estados europeus, é melhor guardar dinheiro nos bancos fortes, pensarão os depositantes. Ou, como disse o Nobel de Economia Paul Krugman, é como anunciar, num aviso de neon: “Traga seu dinheiro para o banco mais seguro dos países mais seguros, como a Alemanha ou a Suíça”…

Porém, que futuro terá uma Europa que radicaliza a tal ponto o abismo entre um punhado de países que ganham com a crise e a grande maioria, sob risco constante de ser tragada? E que credibilidade moral terá um sistema financeiro que especula desenfreadamente com o dinheiro de seus depositantes; alimenta, com os ganhos obtidos, salários e mordomias milionárias de seus altos executivos; mas, diante de eventuais prejuízos, avança sobre o bolso dos clientes?

Roberto Savio ainda não tem as respostas, mas aponta um dos desafios de nossa época: “ninguém ousa colocar de novo, na garrafa, o gênio da oligarquia financeira”.


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