Ensaio jornalístico de Roberto Savio revela quais as causas da
crise; como oligarquia financeira impôs seus interesses; por que
Alemanha pode ter conquistado vitória de Pirro.
Por Antonio Martins
Vista pelos jornais comerciais, a crise financeira vivida por Chipre,
nas duas últimas semanas, parece um fenômeno tão inesperado e
imprevisível quanto a queda de um meteoro
na Rússia, em fevereiro. Surgiu do nada; não podia ser evitada; causou
um número importante de vítimas; mas não afetou, no fim das contas, a
rotina do planeta: será esquecida em breve e não há lições a tirar de
sua passagem. Fundador da Agência IPS, participante destacado do movimento por uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação, nos anos 1970 e 80, o jornalista ítalo-argentino Roberto Savio percebeu que esta imagem pretendia ocultar algo.
Mas não se limitou a vociferar contra os oligopólios da mídia: foi à
luta. Dedicou três dias inteiros da semana passada a uma busca minuciosa
de informações. Como ferramentas, usou sua compreensão dos mecanismos
financeiros contemporâneos e os infinitos terabytes de informação
caótica disponíveis na internet. Produziu um ensaio esclarecedor e
alarmante, que Outras Palavras está traduzindo e publicará nos próximos dias. Vele a pena antecipar ao menos três de suas conclusões:
1. Chipre não protegia investidores sujos, nem quebrou por servir à lavagem de dinheiro:
A “explicação” mais comum da mídia para a quebra do pequeno país insular é a suposta proteção que dava a investimentos de origem duvidosa, em especial os ligados às máfias russas. Não passa de mito, demonstra Savio. Segundo o Moneyval, organismo oficial do Conselho da Europa que avalia medidas de proteção contra lavagem de dinheiro, Chipre é um dos poucos países que aplica todas as regras definidas para coibir tal prática. Sua avaliação no Índice de Sigilo Financeiro [Financial Secrecy Index] é 408,5, o que indica muito mais transparência que no Reino Unido (616,5), Alemanha (669,8) ou Suíça (1879,2, numa escala em quanto mais alto o índice, mais opaco é o sistema).
O mimo da ilha aos investidores era outro: impostos extremamente
reduzidos: 6 a 7% ao ano, ou metade dos 12% na Irlanda, conhecida por
caçar investimentos concedendo-lhes privilégios tributários. A partir de
2004, quando Chipre ingressou na União Europeia, esta oferta foi aceita
com entusiasmo pelas finanças globais. Elas inundaram a tal ponto a
ilha de dinheiro que o volume de depósitos bancários chegou a oito vezes o
PIB. A partir de 2008, uma crise financeira internacional prolongada
impôs perdas sucessivas a estes depósitos e acabou tragando os bancos
cipriotas em sua espiral.
2. Oligarquia financeira e governos europeus manipularam politicamente a crise:
Os 10 bilhões de euros oferecidos agora pela União Europeia (UE) para o “resgate” de Chipre são rigorosamente insignificantes: 17 vezes menos que o empréstimo à Grécia, ou 0,06% do PIB europeu. Desde junho de 2012, o então presidente cipriota, Dimitris Christofias, havia pedido assistência à UE. Mas as eleições presidenciais na ilha estavam próximas, e Christofias era o único chefe de Estado do Velho Continente eleito por um Partido Comunista.
O empréstimo foi adiado, enquanto a crise se agravava. Em janeiro de
2013, diversos chefes de Estado europeus conservadores — inclusive a
alemã Angela Merkel — visitaram a ilha para participar da campanha do
opositor Nicos Anastasiades.
Advogado ligado ao sistema financeiro, ele tornou-se presidente em
25/2, no segundo turno das eleições. Então, fez-se o empréstimo.
3. Uma decisão inédita pode abalar confiança na Europa e no sistema financeiro:
Na definição das condições para o “resgate”, prevaleceu a posição alemã. Criou-se um precedente. Pela primeira vez, a UE exigiu que seu empréstimo (os € 10 bilhões) seja complementado por dinheiro retirado dos próprios depositantes nos bancos cipriotas (eles perderão € 7 bilhões). Em longa entrevista sobre o caso, o ministro das Finanças da Holanda (fortemente aliada a Berlim) anunciou que tal tipo de arranjo é a “nova estrutura” que será usada nos futuros empréstimos.
Isso valerá para Espanha e Itália, cuja situação financeira continua a
se agravar? Dezenas de milhões de espanhóis e italianos perderão parte
do que têm nos bancos, como ocorreu no corralito argentino
de 2001? Savio vê na hipótese uma esperteza e, ao mesmo tempo, uma
temeridade. Como os bancos alemães são vistos como os mais seguros da
Europa, o precedente pode favorecê-los fortemente, no curto prazo. Se
agora os depósitos bancários não estão mais garantidos pelos Estados
europeus, é melhor guardar dinheiro nos bancos fortes, pensarão os
depositantes. Ou, como disse o Nobel de Economia Paul Krugman, é como
anunciar, num aviso de neon: “Traga seu dinheiro para o banco mais
seguro dos países mais seguros, como a Alemanha ou a Suíça”…
Porém, que futuro terá uma Europa que radicaliza a tal ponto o abismo
entre um punhado de países que ganham com a crise e a grande maioria,
sob risco constante de ser tragada? E que credibilidade moral terá um
sistema financeiro que especula desenfreadamente com o dinheiro de seus
depositantes; alimenta, com os ganhos obtidos, salários e mordomias
milionárias de seus altos executivos; mas, diante de eventuais
prejuízos, avança sobre o bolso dos clientes?
Roberto Savio ainda não tem as respostas, mas aponta um dos desafios
de nossa época: “ninguém ousa colocar de novo, na garrafa, o gênio da
oligarquia financeira”.
Fonte: Outras Palavras
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