Por Alexandre Haubrich
A relação das elites civis com os
ditadores militares foi íntima desde o começo da ditadura brasileira. O
Golpe de 1964 foi amplamente apoiado por diversos setores da sociedade
civil – a Marcha da Família com Deus pela Liberdade é um bom exemplo –,
incluindo os principais jornais do país, que, no dia da derrubada do
governo popular – reformista – de João Goulart, estamparam manchetes que
celebravam o fim do “perigo comunista” e a reação dos militares.
Nos primeiros dias de abril de 1964, O
Globo, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Estado
de Minas e muitos outros jornalões publicaram manchetes como “São Paulo
parou ontem para defender o regime” (Folha de S. Paulo) e “Fugiu Goulart
e a democracia está sendo restabelecida” (O Globo), “Só há uma coisa a
dizer a Goulart: saia!” (Correio da Manhã), “Democratas dominam toda a
nação” (Estado de S. Paulo), “Lacerda anuncia volta do país à
democracia” (Correio da Manhã), “Multidões em júbilo na Praça da
Liberdade” (Estado de Minas). “Heroísmo”, “democracia”, “glória”,
“patriotas” e “bravura” foram algumas formas pelas quais os primeiros
movimentos dos militares golpistas foram referidos.
Durante os 20 anos de trevas, de censura
e de gritos sufocados – sim, porque haviam muitos que gritavam – o
apoio continuou. Grandes empresários de todos os ramos deram sustentação
financeira, social e político aos militares que se abancaram no poder, e
os barões da mídia não tiveram atitude diferente. Os episódios de uso
de carros da Folha de S. Paulo por agentes da Ditadura e da mentira da
TV Globo na cobertura do comício das Diretas Já são exemplos gritantes
do que acontecia em silêncio cotidianamente: a colaboração entre
militares e empresários da comunicação.
Enquanto isso, jornalistas eram calados pelo governo e pelos patrões,
e buscavam formas de contornar a censura. Dentro das próprias grandes
redações o jornalismo intelectual e comprometido com o leitor –
substituído hoje pelo jornalismo de tarefas comprometido com a empresa –
era uma realidade. O patrão andava de braços dados com os generais, mas
os jornalistas cuspiam na cara da ditadura. Porém, de formas diferentes
– às vezes a censura, às vezes a tortura, outras vezes o assassinato –
muitos acabaram pagando por desejarem liberdade.
Paralelamente, a mídia independente tornava-se imprescindível, e
ganhava corpo, com o nascimento e a ascensão de veículos como O Pasquim –
de Tarso de Castro –, o Coojornal – mais importante iniciativa de
jornalismo formalmente cooperado na história brasileira – e O Movimento.
Com personagens, ideários e condutas variadas, a imprensa alternativa –
especialmente nos anos 70 – teve um caminho comum: o combate à
ditadura.
Em 2008, quando o governo federal trouxe
à tona o debate sobre a abertura dos arquivos da Ditadura Militar, boa
parte da imprensa dominante brasileira alinhou-se aos militares de
pijama e aos mais diversos setores da direita brasileira para dizer que
se tratava de revanchismo. A gritaria foi tanta, fortalecida pelo
discurso conservador da grande mídia, que os setores mais combativos do
governo arrefeceram. A revisão da Lei da Anistia não saiu, os arquivos
da Ditadura continuaram fechados, todos nós continuamos cegos, surdos e
mudos, continuamos ignorantes, o conhecimento sobre o passado brasileiro
está logo ali, mas ninguém pode tocá-lo. Index Librorum Prohibitorum.
A cada vez que esse debate ganha corpo,
ou a velha mídia brasileira se esquiva ou fala em revanchismo para
descaracterizar a simples e óbvia luta pela verdade e pela punição de
criminosos do mais alto grau. As razões também são simples e óbvias:
além do suporte dado por alguns desses veículos aos militares e seus
aliados civis, também muitos atuais patrocinadores da grande mídia
injetaram muito dinheiro para manter o regime ditatorial no Brasil. E
também lucraram com isso. Ainda temos atuantes na cena política muitos
nomes que colaboraram direta ou indiretamente para reprimir
violentamente qualquer voz dissonante ao Regime, para torturar e
assassinar uma grande quantidade de pessoas dos mais diversos tipos. No
exército, na política institucional, no alto empresariado e na mídia,
torturadores, assassinos e cúmplices destes crimes ainda têm seus
lugares cativos.
Também questões factuais ligadas ao tema
da Ditadura Militar são omitidas ou desviadas constantemente: os
julgamentos dos assassinos militares argentinos e as discussões sobre o
tema no Uruguai não são relacionados com o caso brasileiro. Ícones da
repressão, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, têm artigos
publicados nos nossos jornais. Um ex agente do DOPS processando um
jornalista não é notícia. Jornalão chama ditadura brasileira de
“Ditabranda”.
A revisão da Lei da Anistia e a abertura
de todos os arquivos da Ditadura Militar são ações essenciais se
quisermos construir uma sociedade democrática. O silêncio e a impunidade
alimentam a corrupção, o autoritarismo, a violência policial e outras
mazelas presentes desde sempre na sociedade brasileira, mas tornadas
rotineiras, quase moralizadas, no período ditatorial.
Conhecer nossas origens é fundamental
para que nos reconheçamos como sujeitos da História. Conhecer as origens
da nossa sociedade é pressuposto para entendermos quem somos. Todos
temos o absoluto direito à verdade. Negar esse direito ou não punir quem
o negou é ser, também, um braço ainda vivo da Ditadura.
Cabe aos comunicadores alternativos
gritarem ainda mais alto em defesa do verdadeiro fim da Ditadura. A
sociedade organizada e a mídia contra-hegemônica têm obrigação moral de
encampar essa pauta em defesa da verdade e da história brasileira. É a
defesa da sociedade, a defesa de quem lutou das mais diversas formas
pelo fim da ditadura, a defesa do passado e do futuro. Bastião teórico
da liberdade e da transparência, a velha mídia apoiou a Ditadura Militar
e agora tenta impor-se como barreira à verdade histórica que o povo
brasileiro tem direito de conhecer: sua própria história. Isso só
acontecerá quando enterrarmos nossos mortos e deixarmos de admitir a
tortura, a opressão estatal, a violência policial e os assassinatos
cometidos pelo Estado – ontem e hoje. A mobilização nos blogs e nas
redes sociais tem sido significativas, e o governo, em algum momento,
terá que dar resposta aos apelos da sociedade organizada que pretende
representar, ou se tornará dispensável. Precisamos recusar o
cumprimento da Ditadura, ou nossas mãos continuarão sendo esmagadas
pelos braços unidos de ditadores e empresários da comunicação.
Fonte: Revista O Viés
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