segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Mali: o conflito, em poucas palavras


A República do Mali localiza-se na África Ocidental, e uma boa parte sua fica naquela região que se chama de Sahel. O resto é quase tudo deserto, o sul do Saara.
País com fronteiras artificiais como a imensa maioria dos países africanos, o Mali tem como habitantes pessoas das mais diversas etnias: de negros a árabes, passando pelos tuaregues, um povo bérbere nômade ou seminômade.
Árabes e tuaregues costumavam atacar os assentamentos de negros para capturar pessoas e vendê-las como escravos, a outros árabes, ou a portugueses. Muitos negros brasileiros são com certeza descendentes dos chamados malês, cativos de religião muçulmana e heroicos resistentes à escravidão no Brasil colonial.
No final do século XIX, o Mali transformou-se, como boa parte da região, em colônia francesa, emancipando-se pro forma somente em 1960. Seguiram-se vários governos, mais ou menos aliados à França (na verdade, controlados por ela), que pouco se importavam com seus habitantes, fossem eles negros, ou tuaregues.
Esses últimos cansaram-se do descaso do governo central de Bamako, localizado a várias e boas centenas de quilômetros de sua região natal, e um dia usaram as armas que sempre detiveram e sublevaram-se. Subsequentemente a um golpe de Estado que derrubou o presidente, na longínqua Bamako, capital do país, viram sua chance e proclamaram a República de Azawad, cobrindo uma grande parte da República do Mali – o seu norte.

Para seu azar, fizeram-no mais ou menos ao mesmo tempo em que, na Líbia, os turistas islamistas do mundo inteiro estavam visitando para contribuir modestamente à queda de Muamar Gaddhafi, fartamente subvencionados pelos regimes do “Ocidente”, e pelos fundamentalistas islâmicos da Arábia Saudita e do Qatar, ambos aliados do mesmo  “Ocidente”. Subvencionados não só com petrodólares, mas também com armas: armas também desse “Ocidente”.

Pouco a pouco, esses turistas, ou alguns deles, cansaram-se da Líbia e dirigiram-se ao sul, ao Mali, onde se juntaram com outros grupos islamistas lá já implatados ou em vias de formação e, meio que pegando de surpresa os tuaregues, que não são e nunca foram fundamentalistas islâmicos, tomaram o poder nessa região que se tinha separado do Estado malinês. Pelo menos três grupos fundamentalistas são conhecidos:
- a AQMI (Al Qaida no Maghreb Islâmico),
- o MUJAO (Movimento pela Unidade [de Deus, ou seja, pelo Monoteísmo] e Jihad na África Ocidental), ambos de inspiração salafista-wahhabista, e
Ansar ad-Din, um movimento islâmico tuaregue, mas que, ao menos em seu início,  poderia ser chamado de moderado.
Os dois primeiros grupos nstalaram nos territórios que controlam, inspirados na prática de seus financiadores sauditas, um regime reacionário, intolerante para qualquer tipo de Islã que não seja aquele baseado na interpretação wahhabita dessa religião, e isso num território onde a escola jurídica muçulmana malikita dominava, e onde o sufismo, essa vertente mística e, em regra, tolerante da religião muçulmana, estava bem ancorada. Além de introduzirem imediatamente a Sharia, a lei religiosa islâmica que rege a vida privada e social, começaram a destruir monumentos sufis, incluindo várias tumbas de xeques sufis venerados por seus discípulos na cidade de Timbuctu, que realmente existe.
Entra aí a França, antiga potência colonial e que, cinquenta anos passados da vaga independentista nas suas antigas possessões, ainda as considera como sua área de influência: como seu quintal, retomando uma expressão tão bem conhecida dos eventuais leitores latinoamericanos deste blogue. E, como todos sabemos, quem manda no seu quintal é o dono da casa! Ainda mais se nesse quintal, e no adjacente (o Níger), mas que também fazia parte do antigo latifúndio desmembrado, há enormes reservas de urânio e outros minerais importantes que, supresa!, são explorados preferencialmente por grandes empresas da pátria-mãe, perdão, da ex-potência colonial.
Os turistas islamistas são gente perigosa, inimigos do progresso, obscurantistas de pior espécie, nenhuma dúvida sobre isso. Que desapareçam da face da terra e que dêem lugar às luzes, como deveria ser o destino de todos os fundamentalistas religiosos! Mas são também muito úteis para confundir a massa da população que tem na “grande imprensa” ou, pior, nas redes de televisão a sua fonte exclusiva de informação. Para essas pessoas – a maioria da população – conta-se que a França decidiu levar a cabo uma intervenção militar no Mali para derrotar a ameaça islamista. Afinal, não se pode permitir que, a algumas horas de voo de Paris, um regime talibã seja estabelecido, não é? Não se pode permitir que, por exemplo, os tuaregues decidam sobre as riquezas de seu subsolo. Ou que os malineses de todas as raças façam o mesmo.
E aí envia a França, sob a coberta da luta antiislamista, antiterrorista, centenas de soldados e de mercenários da sua Legião Estrangeira ao Mali, que combaterão, com o apoio não só verbal dos outros países da OTAN e dos EUA, pelos interesses de algumas grandes companhias francesas e “ocidentais” , os mesmos islamistas, o mesmo tipo de pessoas que esses mesmos países apoiam abertamente, por exemplo, na Síria: com armas e com dinheiro.

Há, afinal, vários tipos de islamistas: os “bons” – e entre esses contam-se os que massacram muçulmanos não sunitas na Síria, e os “malvados”, por exemplo no Mali. Sem esquecer dos afegãos. Ah… os islamistas afegãos eram bonzinhos até expulsarem de lá os soviéticos, que apoiavam um governo local que muito fez para tirar o país das garras do obscurantismo religioso. Depois disso, viraram malvados.
E no Mali, a história se repete: os mesmos islamistas que, até pouco tempo atrás, na Líbia, faziam parte dos “bons islamistas”, mal cruzam a inexistente fronteira desértica e transformam-se em “islamistas malvados”, que devem ser combatidos para “defender o Ocidente”.
E ninguém nem pensa em se concentrar sobre os países que dão apoio ideológico, financeiro e em armamentos a esses islamistas: a Arábia Saudita principalmente, mas também o Qatar. Pois é de lá que vem a ideologia por trás desses grupos jihadistas: o wahhabismo, essa interpretação estreita, purista, reacionária e sumamente intolerante do Islã, doutrina oficial da Casa de Saud, os donos do país que leva seu nome.
Mexer com esses? Nem pensar.
Isso, em poucas palavras, o que está acontecendo no Mali.
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Adendo no dia 16.01.2013: @esquerdacrítica fez algumas pequenas alterações no texto acima, para torná-lo mais inteligível em alguns pontos. Adicionei também uma informação nova sobre o movimento islamista tuaregue Ansar ad-Din, que não segue a mesma linha ideológica dos dois outros movimentos citados. Além desses grupos islamistas, há ainda oMNLA (Movimento Nacional de Libertação de Azawad), composto por tuaregues, que também sofrerá as consequências dessa intervenção colonial, e que está por trás da criação de um Estado tuaregue.

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