quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Por que a Aldeia Maracanã resiste


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Acendeu-se a fogueira da mobilização. Apareceram negros, mulheres, militantes, hackers. Ninguém aceita substituir prédio histórico e polo político-cultural por vazio cinzento
Por Bruno Cava, no Quadrado dos loucos
O prédio do Museu do Índio (1865) é 83 anos mais antigo que o Maracanã (1948). Tem mais do que o dobro da idade do estádio. Isto significa que, quando o Maracanã foi construído, o prédio do Museu, que à época abrigava o Serviço de Proteção ao Índio, existia há mais tempo do que a idade atual do estádio (65 anos). Ali trabalharam pesquisadores, antropólogos e brasilianistas de destaque, como o sonhador Darcy Ribeiro, que sonhava com a primeira Universidade Indígena. Isso por si só, em qualquer governo inteligente do mundo, já bastaria para por um ponto final em décadas de descaso e fazer do lugar uma referência vital da história da cidade e do país. Fala-se tanto em sustentabilidade: como não ver o potencial educativo, cultural, antropológico, e até turístico?
A dignidade da questão é maior. Desde 2006, indígenas preencheram de história viva um marco do passado brasileiro. Os índios ocuparam um espaço que ninguém queria e erigiram suas casas nos arredores, transformando a paisagem. Expressão do movimento indigenista, afirmaram um direito num sistema político que ou os nivela a crianças, ou a aproveitadores; em qualquer caso incapazes de direito e despidos de legitimidade para criar sua própria história. A aldeia Maracanã se torna assim um laboratório de política no coração do Rio. Um indígena cotista da UERJ bate na mesa e declara que está assimilando a cultura branca e não o inverso.
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Os governos só “lembraram” do Museu e dos índios para demolir o primeiro e remover os últimos. Outro pedaço do Rio de Janeiro, passado e presente, é vendido ao aglomerado de interesses imobiliários, financeiros, midiático-jornalísticos e empresariais da construção civil, que mandam na cidade. A justificativa do progresso opõe o futuro ao passado, o moderno ao atraso, o brilho ebúrneo da razão planejadora à escuridão do caos, da pobreza e das “raças inferiores”. Estas todavia falam do subsolo da história, seu rumor convoca outros espectros que rondam as Américas.
Hoje, a dignidade da questão é imensa. Os grupos indígenas na Aldeia Maracanã se multiplicaram e se organizaram. Acendeu-se a fogueira da resistência. Um acampamento fincou raízes pelo assoalho do Museu, produzindo seu discurso, mídia e cultura de resistência. Apareceu o negro, a mulher, o militante, o hacker. Os mundos se misturaram e se transformaram, transformando a própria imagem do que é fazer ocupação e movimento. Coletivos e movimentos sociais, ativistas e representantes, mídias livres e blogues independentes, estudantes, advogados e punks se juntaram para defender a memória vida desta cidade linda e insubmissa. Todos eles determinados a resistir à indesejada “lembrança” pelo poder público, cujo norte maior tem sido o mercado e suas “novas oportunidades”. Não só a resistir, mas a constituir seu espaço e seu tempo. Mais um Pinheirinho, dos mil que as “raças inferiores” continuam proliferando pelos Brasis, num contexto de higienização urbana e desenvolvimentismo.
A ameaça de uma invasão policial ordenada pelo governador paira sobre as atividades na Aldeia, enquanto a Justiça brasileira parece irremediavelmente presa ao formalismo que ampara os poderosos. Contudo, neste caso, nem mesmo as razões formais justificam a remoção e demolição. A FIFA não exige a retomada. O órgão federal de preservação (Iphan) é de parecer contrário. O órgão estadual (InePac), por sua vez, pediu o tombamento do prédio. Juízes já concederam decisões favoráveis pela permanência do Museu, embora rapidamente cassadas pelas instâncias superiores, mais próximas da esfera de barganha dos governos. Mandatários como Renato Cinco e Remoint Otoni, entre outros, — assim como o candidato a prefeito derrotado com 27% dos votos Marcelo Freixo, — trabalham por dentro do sistema representativo atrás de soluções pacíficas para o problema.
Um defensor público, exasperado, perguntou: “Por que vai demolir o prédio então?!” Segundo o próprio governo e o projeto de engenharia, aquela área não é essencial para qualquer estrutura ou instalação do novo estádio do Maracanã, e não impacta significativamente o calendário das obras para a Copa. Ela serviria, simplesmente, de “área de circulação”, para a movimentação dos visitantes. Noutras palavras, pretende-se substituir um prédio histórico, uma aldeia indígena e um nascente polo cultural e político da cidade viva por, nada mais nada menos, que um plano horizontal concretado, vazio, cinzento. Eis a razão de estado: mortiça e desmemoriada.
Como diria o velho mestre Darcy, nunca foi tão detestável estar do lado de quem está “vencendo”.

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