Originários de Bristol, Inglaterra, os Easton Cowboys & Cowgirls viajam o mundo usando o esporte como ferramenta de crítica e mobilização social
Por Raphael Piva, no Opera Mundi
“Liberdade através do futebol”. Este lema reúne punks, imigrantes, engenheiros, médicos, taxistas, mulheres e crianças quase todos os dias em campos e ruas da cidade inglesa de Bristol. Se não fossem suas raízes anarquistas, a rotina do Easton Cowboys & Cowgirls não diferiria de outros times de futebol amador ao redor do mundo, disputando partidas e torneios semanalmente em ligas regionais. Ao longo da sua trajetória de mais de 20 anos, o clube do multicultural bairro de Easton viajou o mundo, conquistando a simpatia de palestinos dos territórios ocupados, criando laços solidários com os zapatistas de Chiapas e descobrindo no futebol uma maneira de unir as pessoas e dar impulso a lutas sociais.
Essa história começou com uma despretensiosa “pelada” entre jovens de Easton no final da década de 1980. Em meio a manifestações contra as politicas neoliberais e repressivas do governo de Margaret Thatcher, as partidas de futebol disputadas aos domingos em praças públicas do bairro eram uma das poucas atividades não militantes na vida de algumas dessas pessoas. Essa brincadeira durou anos e só ganhou contornos de seriedade bem mais tarde. Em 1992, no mesmo momento em que a Inglaterra assistia ao nascimento da English Premier League – o novo formato da primeira divisão do futebol profissional inglês –, o Easton Cowboys foi oficialmente fundado e ingressou na liga amadora de Bristol.
Ao final de sua primeira temporada jogando contra outras equipes da região, o Easton Cowboys viveu sua primeira experiência futebolística fora de Bristol. Por meio do contato que jogadores do time inglês fizeram um ano antes, durante uma turnê da banda de rock independente em que tocavam, a equipe viajou até a Alemanha e descobriu a então improvável combinação de futebol e anarquismo.
Jogaram um torneio de futebol na cidade alemã de Stuttgart, organizado por punks e squatters – pessoas que ocupam casas e prédios para a criação de espaços de convivência libertária –, que foi o ponto de partida para a construção de uma rede de conexão entre equipes amadoras da Europa que compartilham valores antifascistas e antirracistas.
O woodstock do futebol
A experiência vivida na Alemanha inspirou o time inglês e mostrou que não era preciso de entidades poderosas, como a FIFA e a UEFA, para desfrutar de todo o potencial do futebol. Com o apoio de alguns grupos independentes e equipes amigas, o Easton Cowboys organizou, em 1998, a primeira edição da “Copa do Mundo Alternativa”, sediada em Thorncombe, um pequeno vilarejo inglês. O torneio teve o formato de um grande festival que uniu mais de mil pessoas, durante cinco dias, promovendo junto ao futebol também diversas atividades culturais.
Além das equipes europeias, o campeonato contou com a participação de um time formado por adolescentes sul-africanos de Soweto, que chegou à Inglaterra com a ajuda de recursos arrecadados pelos organizadores. Dando algum sentido a famosa previsão feita por Pelé de que uma equipe africana seria campeã do mundo antes do final do século XX, os sul-africanos conquistaram a Copa do Mundo Alternativa de Thorncombe. Curiosamente, entre os jogadores do Soweto estava o então jovem Benedict Vilakazi, que vestiria a camisa 10 da seleção principal da África do Sul na Copa das Nações Africanas de 2006.
De um pequeno vilarejo inglês a Chiapas
Entre as pessoas das mais diversas origens que vivenciaram o torneio em Thorncombe, estava um casal de ativistas que acabara de regressar da região de Chiapas, no México, onde ocorrera a insurreição do EZLN (Exército Zapatista da Libertação Nacional) contra o Estado méxicano. Eles haviam trabalhado como observadores internacionais de direitos humanos na região depois do Massacre de Acteal, quando mais de 40 indígenas, incluindo mulheres e crianças, foram assassinados por grupos paramilitares em dezembro de 1997.
Sabendo da paixão dos zapatistas pelo futebol e tendo visto na possível visita de uma organização esportiva uma brecha às dificuldades impostas pelo governo mexicano para a entrada de ativistas de outros países, o casal propôs ao Easton Cowboys & Cowgirls viajarem ao Chiapas para enfrentar, dentro das quatro linhas, as equipes do EZLN. Entre o entusiasmo e alguma preocupação em relação aos possíveis riscos que acometiam a viagem, a ideia concretizou-se no ano seguinte.
[Capitães do Easton Cowboys e da equipe do EZLN se cumprimentam antes de partida]
Enquanto o Easton Cowboys cruzava o Atlântico em uma turnê solidária para desembarcar no cerne da luta socialista, o futebol profissional inglês passava por profundas mudanças. Em 1999, sete anos após o início da Premier League, o preço médio dos ingressos aumentou em cerca de 300% – segundo dados levantados pelo antropólogo e historiador Marcos Alvito da UFF –, restringindo o acesso popular aos estádios.
Futebol rebelde
De volta à Inglaterra, não restaram apenas lembranças das partidas disputadas em Chiapas. O conhecimento da penosa luta diária enfrentada pelo EZLN levou alguns dos ingleses a fundarem, em 2000, um grupo internacional de ajuda aos zapatistas. O KIPTIK (“força interior” na língua do grupo indígena Tzetzal, majoritário na região) trabalha diretamente com as comunidades e já arrecadou mais de 100 mil libras para a realização de diversos projetos.
A atuação da organização vai desde criar infraestrutura no local, como a construção de reservatórios de água potável e de assistência médica, até a distribuição na Europa do café produzido em cooperativas zapatistas. O KIPTIK também apoia atividades lúdicas na comunidade ligadas ao esporte e à arte, ajudando a expressar os sonhos e dificuldades dos que habitam as montanhosas florestas do Chiapas.
O goleiro Banksy
Em 2001, o time inglês retornou ao Chiapas com um reforço de peso. O artista de rua Banksy vestiu a camisa de goleiro do Easton Cowboys & Cowgirls e realizou intervenções no território zapatista. Nascido em Bristol, o grafiteiro participou dos primeiros passos dados pelo time inglês antes de mudar-se para Londres.
Banksy criou o desenho de uma camiseta idealizada pelo time inglês cujo lucro das vendas, que ultrapassaram a quantia de 8 mil libras, foi diretamente para os zapatistas.
Um outro futebol é possível
Estados Unidos, Marrocos, Palestina, Brasil e Argentina foram outros países visitados pela equipe inglesa, repetindo o formato de aproximar pessoas e apoiar lutas sociais a partir do esporte. “Isso (as turnês para o Chiapas) nos deu muita confiança e para mim pessoalmente (como a pessoa que fez a maior parte da organização de excursões para a Palestina). Eu pensei que a ideia de uma turnê de “solidariedade” poderia ser aplicada com sucesso em outros lugares”, explica a Opera Mundi Will Simpson, membro do time e autor do livro sobre a história do Easton Cowboys & Cowgirls.
R S Grove / Fellow Traveller
Mural pintado por Banksy, goleiro do Easton Cowboys & Cowgirls, em visita à comunidade zapatista em Chiapas, no México
Mural pintado por Banksy, goleiro do Easton Cowboys & Cowgirls, em visita à comunidade zapatista em Chiapas, no México
A equipe cresceu ao longo de sua história de mais duas décadas, chegando, hoje, a reunir mais de 200 pessoas entre vários times de futebol e outros esportes. Não são incomuns pessoas que entraram no time somente para jogar aos finais de semana na liga amadora local e acabaram se envolvendo em ações politicas internacionais.
Num momento em que cada vez mais os grandes investimentos financeiros e transações obscuras ditam a tona nos noticiários esportivos, a história do Easton Cowboys & Cowgirls nos mostra que, entre os rios de dinheiro que correm no futebol profissional atual e ameaçam afogar a paixão popular, um outro futebol ainda é possível.
Fonte: Outras Palavras
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