1. Para além do lulismo, Bernardo Ricupero.
Há ousadia em tratar de nossa época, mesmo que seja ela que nos motive originalmente a estudar a política. No caso de André Singer a ousadia é ainda maior, já que utiliza categorias — como classe e luta de classes — e uma abordagem, como a marxista, claramente fora de moda para analisar o Brasil atual. Dessa maneira, ao buscar entender o lulismo recupera um pouco da melhor tradição marxista que, em trabalhos como O 18 Brumário, Alguns temas da questão meridional e O populismo na política brasileira, enfrentaram os problemas de seu tempo.
Os sentidos do lulismo deve muito a esses trabalhos. A Marx deve a noção de bonapartismo, que aponta para como, numa situação de equilíbrio entre as classes fundamentais, se abre caminho para a emergência de uma liderança política que aparentemente está acima delas. Mais concretamente, Luís Bonaparte estaria ligado à classe mais numerosa da nação francesa, o campesinato, que, devido às suas condições de produção, seria incapaz de agir politicamente, seu representante tendo que aparecer “como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva”. Ou, para usar os termos de O manifesto comunista, o campesinato corresponderia a uma “classe em si” e não a uma “classe para si”. A Gramsci deve a atenção ao aparentemente estranho bloco histórico formado, a partir doRisorgimento italiano, entre a burguesia industrial do norte do país e os latifundiários do sul. Ligado a isso, ganha destaque a articulação entre o que é identificado com o moderno e com o que é visto como arcaico. A Weffort deve o esforço, fortemente inspirado em O 18 Brumário, de se entender o pós-1930 como um “estado de compromisso”, em que nenhuma classe ou fração de classe teria substituído a burguesia cafeeira como grupo dirigente, o que teria favorecido uma certa autonomia por parte do aparelho de Estado. Tal situação, por sua vez, abriria caminho para a incorporação política “pelo alto” dos setores populares.
A partir dessas referências, André entende o lulismo como um fenômeno em que o líder aparece como uma espécie de árbitro diante das classes. Mais concretamente, ele representaria o subproletariado, categoria social incapaz de se fazer representar politicamente. Junto com o apoio do subproletariado ocorreria o abandono da classe média ao PT, desenvolvimento que foi potencializado pelo “mensalão”. Ainda de maneira concomitante, o Nordeste teria especial importância para o lulismo. Se a região, onde o peso do subproletariado é particularmente forte, foi historicamente a base principal do conservadorismo no país, com a penetração do lulismo nossa “questão setentrional” teria se modificado. Como consequência do conjunto desses fatores, se favoreceria a redução da pobreza, mediante o aumento do salário-mínimo e de políticas sociais, além de se criar possibilidades inéditas de ganhos para o capital financeiro. Em outras palavras, o PT no governo teria optado por um “reformismo fraco”, em que se combinaria a lenta mudança social com o esforço de se evitar a luta de classes. Não que a polarização desaparecesse do horizonte político, mas ela se regeria por uma outra gramática, por assim dizer, pré-socialista: já não oporia a burguesia ao proletariado, mas ricos a pobres.
A vantagem da análise de André sobre outras interpretações do Brasil atual está em chamar a atenção para a ambiguidade do momento que o país vive ou, para usar uma linguagem dialética, para suas contradições. Evita-se, assim, tanto a simples denúncia como a mera apologia do lulismo. Uma das conclusões que se pode tirar do livro é que o lulismo equivale tanto a uma (re)conciliação com a história brasileira como, em boa medida, a uma renúncia de se dar uma direção que a transforme profundamente.
Talvez falte mesmo em Os sentidos do lulismo uma análise mais detida da relação do PT com o seu principal líder. Na verdade, a questão está subjacente ao livro, indicando-se que não há coincidência necessária entre os dois, apesar de sugerir uma progressiva convergência entre o PT e o lulismo. Ou seja, o partido ainda estaria mais próximo de sua origem, o que se depreenderia por sua representação parlamentar, ainda mais concentrada no Sudeste e ligada majoritariamente aos setores organizados da sociedade. Por outro lado, cresceria a presença no PT do subproletariado e do Nordeste, bases mais sólidas do lulismo.
O mais complicado no lulismo é justamente sua origem. Ele é diferente de outras experiências de “grandes personalidades na política”, como o getulismo, o peronismo e mesmo o bonapartismo, em que o partido ou o movimento são expressão da liderança política. Na relação entre o PT e Lula ocorre o oposto, o chamado lulismo é resultado tardio e não previsto do governo do PT. Nesse sentido, ele pode ser tomado como uma aproximação do PT do populismo, do qual o partido foi crítico desde sua fundação. Não por acaso, um dos Franciscos com os quais André dialoga em Os sentidos do lulismo, o Weffort, foi, depois de ter sido o mais conhecido crítico acadêmico do populismo, secretário-geral do PT. Em outras palavras, o que André chama de o espírito inicial de “Sion”, de “organizar autonomamente a classe trabalhadora”, se nutria da crítica ao populismo formulada principalmente na USP.
No entanto, como é enfatizado, a presença das “duas almas do PT” faz com que mesmo depois do predomínio do “espírito do Anhembi”, expresso na “carta aos brasileiros”, subsista o “espírito do Sion”. Ainda mais importante, foi a alma petista mais antiga que fez com que o partido não participasse do Colégio Eleitoral, não assinasse a Constituição de 1988 e não aceitasse o apoio do PMDB no segundo turno de 1989, o que abriu caminho para a sua diferenciação no interior do sistema partidário brasileiro. Consequentemente, a vitória em 2002 e mesmo em 2006 e 2010 se deve tanto ao “espírito do Anhembi” como ao “espírito do Sion”. Em outras palavras, o PT e a sua criatura, o lulismo, assim como se transformaram em contato com o “Brasil profundo”, são expressão da mudança do país, processo para o qual deram importante contribuição.
Nessa referência, se pode questionar a hipótese de que com o governo Lula há um realinhamento eleitoral no Brasil. Aqui, a inspiração principal de André é o que representou a presidência Roosevelt para os EUA. Mais especificamente, destaca como a força do New Deal foi tamanha que mesmo seus adversários tiveram que aceitar seus pressupostos, como ocorreu durante a administração republicana de Eisenhower. Sinal de que algo similar teria ocorrido no Brasil seria o comportamento de Serra na eleição de 2010, quando propôs dobrar o número dos contemplados pelo bolsa família e aumentar em 10% o valor do salário-mínimo.
Parece-me haver um certo exagero na comparação dos governos Lula e Roosevelt, no sentido de que eles seriam decisivos no estabelecimento de sociedades de classe média. O problema na analogia, como aponta trecho posterior do livro, é que Brasil e EUA partem de níveis sociais muito diferentes, nossa desvantagem inicial sendo muito mais acentuada. Também se pode questionar até que ponto houve, na eleição de 2010, uma aproximação entre governo e oposição. É verdade que Serra não questionou o aumento do salário-mínimo e os programas sociais do governo Lula. Por outro lado, é possível dizer que, entre o primeiro e o segundo turno, a campanha tucana assumiu um tom mais marcadamente de direita, quando incorporou “temas culturais”, como o aborto e a religião, até então quase ausentes das disputas eleitorais brasileiras. Significativamente, a votação de Serra cresceu de 33% no primeiro turno para 44% no segundo turno da eleição, o que contrasta com o que ocorreu, em 2006, com Alckmin, cuja votação no segundo turno chegou a diminuir em relação ao primeiro turno.
Mais importante, dependendo dos marcos que se decidir privilegiar, é possível localizar o realinhamento eleitoral não no governo Lula, mas no governo Fernando Henrique Cardoso. Melhor, a defesa da estabilidade monetária e o compromisso de se respeitar os contratos, tal como proclama a “carta aos brasileiros”, pode ser tomada como um sinal de que o PT e seu candidato aceitaram as premissas da coalizão PSDB – PFL, que governou o país nos oito anos anteriores. Em termos mais fortes, se poderia falar numa direção intelectual e moral neoliberal que, quando exercida pelas classes subalternas, se converteria no que o outro Francisco com o qual André dialoga, o Oliveira, chama de hegemonia às avessas.
A refutação desse tipo de análise é a principal motivação de Os sentidos do lulismo. Parece-me que o problema da interpretação de Chico de Oliveira reside em seu excessivo grau de abstração. É possível perguntar, como sugere André, onde existe no mundo atual algum vislumbre de hegemonia não-burguesa? Mesmo na América Latina, região em que o desgaste neoliberal foi mais longe, ainda está muito distante qualquer perspectiva pós-capitalista. Até porque o impacto da queda do muro de Berlim foi tão grande que mesmo os setores de esquerda que não se identificavam com o “socialismo real”, como o PT, a sentiram pesadamente. Consequência disso é a própria debilidade do “reformismo fraco” do lulismo, mais capaz de se moldar à sociedade do que de lhe impor uma direção. Nesses termos, o não questionamento pela oposição de algumas premissas do governo Lula — como o aumento do salário-mínimo e as políticas de redução da pobreza — pode ser entendido até não como sinal de força, mas da timidez do atual projeto da esquerda.
Mesmo assim, a fórmula encontrada por Lula, de agradar tanto ao subproletariado como ao capital financeiro, só é possível em circunstâncias bastante específicas. É verdade que o preço do sucesso desse arranjo também leva a uma certa inércia; depois da reforma da previdência quase não se avançou nas mudanças que o programa neoliberal julga essenciais, assim como também não se foi muito longe com projetos identificados com a esquerda, nem mesmo a chamada Consolidação das Leis Sociais (CLS) tendo sido enviada ao Congresso. Por outro lado, Lula teve a virtù de se aproveitar da fortuna, combinando o bom momento propiciado pelo boom das commodities com o estímulo ao consumo popular, o que repercutiu positivamente na economia.
Os artigos que compõem Os sentidos do lulismo foram originalmente escritos nesse momento, em que parecia que tudo dava certo e era mais fácil agradar, se não a ricos e a pobres, ao menos, à burguesia e ao proletariado. A situação atual já não é mais a mesma; num momento de desaceleração da economia mundial o ritmo da economia brasileira é ainda mais lento. Acresce-se a essa situação pouco animadora, a constatação de que o estímulo à produção, por meio da ativação do consumo, já não parece produzir os mesmos resultados de 2009. Significativamente, cresce a pressão para que os bancos diminuam seu spread, já que ele é condição para a reativação do consumo. Isto é, num momento de maior escassez, as tensões na coalizão lulista se acentuam. No front político, o Nordeste, que garantiu a vitória a Dilma, talvez deixe de ser, em meio à movimentação do governador de Pernambuco Eduardo Campos e de seu PSB, um terreno seguro para o lulismo.
Essas novas circunstâncias inviabilizam o argumento de Os sentidos do lulismo? Não me parece ser esse o caso, o alcance do livro indo além da conjuntura imediata. Na verdade, a principal dificuldade da análise parece-me derivar do que chama de “reformismo fraco” do lulismo, mais capaz de se adaptar às circunstâncias do que de transformá-las. Tal orientação obscurece a percepção do impacto do lulismo. Por outro lado, será apenas o tempo que dará razão ou não ao modelo interpretativo proposto por André. De qualquer maneira, a principal qualidade de Os sentidos do lulismo está em fazer as perguntas realmente importantes referentes ao momento em que vivemos. Foi isso que fizeram, a seu tempo, Marx, Gramsci, Weffort...
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Bernardo Ricupero é professor do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros, de Caio Prado e a nacionalização do marxismo no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2000) e O Romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) (São Paulo: Martins Fontes, 2004).
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2. O mensalão e a crise do lulismo, Marco Antônio Tavares Coelho
O chamado lulismo provoca polêmica entre os engajados nas disputas partidárias e os que acompanham nossa evolução política, em decorrência do papel de Lula e da importância da agremiação, liderada por ele, no panorama brasileiro. Recentemente foi lançado, pela Companhia das Letras, um livro de André Singer, intitulado Os sentidos da lulismo — reforma gradual e pacto conservador, que contribui para uma análise aprofundada do lulismo.
Esse livro, com uma exposição aprimorada, transmite estudos que comprovam a qualificação de André Singer. Formado na USP, graduou-se em ciências sociais e jornalismo, além de cursar quatro semestres no Departamento de Letras. Nessa universidade obteve mestrado, doutorado e a livre-docência, sendo professor associado de Ciência Política. Ingressou no jornalismo, na Folha de S. Paulo, onde trabalhou em vários cargos de direção (de 1982 a 1986). Em 2003, no governo Lula era o porta-voz da Presidência da República. A partir de 2005 assumiu a função de secretário de Imprensa do Planalto.
Esse currículo deu a Singer uma excelente bagagem acadêmica, e sua atuação na imprensa foi de fundamental importância porque, como jornalista dedicado à cobertura política, adquiriu uma visão da realidade do dia a dia dos entreveros políticos. E a atuação junto a Lula permitiu a Singer conhecer e registrar antecipadamente os pequenos mistérios da prática política de uma liderança invulgar na realidade brasileira.
Para afastar qualquer dúvida a respeito das convicções do analista, ele não faz rodeios e afirma com precisão: “Acredito no socialismo, porém não fora da democracia, do estado de direito, das garantias constitucionais, da plena liberdade de expressão e organização, da rotatividade no poder e do respeito sagrado às minorias, que aprendi como conquistas da humanidade. Daí a perenidade, como tema das relações entre liberdade e igualdade” (p. 238).
Diante dessa afirmação o autor exclui os que possam pretender dele uma “neutralidade” face aos problemas brasileiros, como alguns especialistas reivindicam dos acadêmicos em ciência política. Em sendo assim, cabe-nos analisar como ele estuda o tema de conformidade com sua posição de princípios.
Que tese básica o autor apresenta sobre os sentidos do lulismo? Ele afirma que o lulismo existe sob o signo da contradição: “Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento” ( p. 9). Um resumo dessa tese está no subtítulo do livro: reforma gradual e pacto conservador. Sua exposição nos apresenta ampla e convincente justificativa dessa asserção fundamental.
Que contradição é essa, apontada por Singer, que condensa os sentidos do lulismo? Ela é focalizada no segundo capítulo do livro ao apontar as duas almas do PT, recorrendo a uma imagem usada no passado em relação ao velho Partido Social-Democrata da Alemanha, por haver aprovado, em agosto de 1914, créditos para a participação de seu país na Primeira Guerra Mundial, renegando um combate encetado durante anos (p. 84). E o autor menciona que essa imagem foi também utilizada por Gildo Marçal Brandão, quando criticouas duas almas no Partido Comunista Brasileiro (1920/1964).
Justificando essa tese, Singer aponta a primeira “alma”, relembrando o programa lançado quando da fundação do PT, no Colégio Sion, em fevereiro de 1980, ao pregar um genérico postulado anticapitalista, firmando entre outros princípios a necessidade de uma revolução para estabelecer a propriedade social dos meios de produção e a formação de uma cultura socialista de massas. E, para tanto proclamava a necessidade de um partido “sem patrões” e que não fosse eleitoreiro, a fim de organizar os trabalhadores com a bandeira da construção de uma sociedade mais justa (“sem explorados e exploradores”), batalhando em favor de uma verdadeira república em lugar do regime baseado na Constituição de 1988.
Essa política iniciada pelo PT — denominada por Singer de doutrina do Colégio Sion — obedeceu a tal programa, como se viu no combate aos “vícios e arcaísmos do patrimonialismo nacional”. Devido a isso, recusando-se a apoiar a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (1985), arcou “[...] com o ônus de fragmentar a frente da ditadura, decidiu não votar a favor da Constituição de 1988, apesar de seus aspectos altamente progressistas em benefícios de um projeto ainda mais avançado [...]”. Ademais, o PT recusou o apoio desinteressado do PMDB no segundo turno de 1989, que poderia ter significado a vitória de Lula (p. 92). Igualmente denunciou a reforma cambial empreendida por FHC, com a introdução de uma nova moeda — o real — que naquela época desfechou um golpe certeiro no vertiginoso processo inflacionário, que penalizava sobretudo os trabalhadores e os setores pobres da população.
A implantação no PT de “outra alma”, qualificada por Singer como o “espírito de Anhembi”, aparece com a divulgação da “Carta ao povo brasileiro”, em 22 de junho de 2002. Afirma ser óbvio que houve longa gestação anterior, mas veio à luz somente quando se iniciava a campanha naquele ano, e, “[...] em nome da vitória, se impôs com facilidade surpreendente” (p. 95).
Essa guinada flagrante aponta para os seguintes caminhos do PT: em lugar do confronto pregado anteriormente contra o capital financeiro globalizado, afirmava que o Brasil não deve prescindir das empresas, da tecnologia e do capital estrangeiro. Para dar garantia aos empresários, assegurava que o futuro governo iria preservar o superávit primário e a responsabilidade fiscal, sustentando que não romperia contratos nem revogaria regras estabelecidas. Concluía, portanto, que “governos, empresários e trabalhadores terão de levar adiante uma grande mobilização nacional” (p. 95).
Mudança análoga houve no campo estrito da política.“Enquanto a alma do Sion primava pela ênfase ideológica, não aceitando juntar-se sequer a partidos do centro, a do Anhembi aprovou chapa composta por Lula e um grande empresário filiado ao Partido Liberal, agremiação que levava no próprio nome a adesão oposta ao socialismo”. Assim, ao “estabelecer pontes com a direita sem levar em consideração as razões ideológicas, a alma do Anhembi demonstrou uma disposição pragmática que estava no extremo oposto do antigo purismo do Sion” (p. 98-9).
Nessa área, outro dado de importância foi indicado pelo autor. Quando anteriormente prevaleciam normas de respeito a opiniões divergentes dentro do PT, implanta-se novo procedimento nessa agremiação partidária. Em dezembro de 2003 foram expulsos do PT os poucos parlamentares que haviam se rebelado notadamente contra a proposta de reforma da Previdência Social, encaminhada pelo governo Lula ao Congresso Nacional, encampando posturas antes sustentadas pelo PSDB, que via no excesso de gastos previdenciários ameaças à estabilidade das contas públicas. Singer tira, pois, a seguinte conclusão: “A decisão de excluir do partido os opositores do projeto previdenciário evidenciava que o espírito do Anhembi não aceitaria oposição interna ao governo Lula” (p. 100, grifo nosso).
A crise do “mensalão”
Um fato incompreensível nesses estudos de André Singer reside em que neles não há um exame do “mensalão” na trajetória do PT. Tão só pequenas referências são feitas a ele, chegando a mencionar “os momentos difíceis, como foi o ‘mensalão’”, ou a falar que “durante o ‘mensalão’ a base oposicionista era mais radical do que a cúpula” (p. 189 e 202).
Então, este livro de Singer não foi elaborado há muito tempo, quando o caso do “mensalão”ainda não se encontrava nas manchetes da imprensa. Trata-se, pois, de omissão incompreensível numa análise dessa abrangência e seriedade. Cabe a suposição de que isso resultou da dificuldade do autor em colocar o dedo na ferida de algo que no presente momento divide o PT, divergências que ainda não foram resolvidas.
Então, temos de recorrer ao conflito das duas almas que, embora bastante atenuado, aparece aqui ou ali na vida desse partido. E tal choque gira em torno de um ponto essencial — a questão da democracia, particularmente num ponto básico, o respeito ou não aos princípios republicanos. Já mencionamos os dados principais na trajetória do PT, ou seja, a evolução da política preconizada no Colégio Sion, no entusiasmo da criação do PT, até o pragmatismo da “Carta aos brasileiros”, em 2002. E destacamos a diversidade entre a política traçada segundo a primeira “alma” e aquela lançada de acordo com a segunda “alma”, que acabou se impondo.
Todavia, como elas se misturam aqui ou acolá, numa questão ou em outra, uma das “duas almas” se manifesta em setores diversos ou em épocas diferentes da agremiação. O “mensalão” resultou do empreendimento de alguns dirigentes categorizados do PT, em razão da vontade de impor projetos políticos do governo Lula, usando um artifício criminoso, o da influência na Câmara dos Deputados através de uma negociação pecuniária para ganhar votos de parlamentares direitistas. Operação criminosa, denunciada pela Procuradoria da República e condenada pelo Supremo Tribunal Federal, isento órgão do Poder Judiciário, nos quais atuam magistrados indicados pelo próprio governo petista.
Lula tentou de várias maneiras adiar esse julgamento. Declarou inicialmente que era uma farsa, depois disse haver sido traído pelos companheiros de partido. Posteriormente, proclamou que se tratava de conluio golpista da oposição e dos meios de comunicação para derrubar o governo.
Assim, quando o Supremo Tribunal Federal decide penalizar alguns dirigentes do PT, articuladores desse empreendimento criminoso, presenciamos um conflito político. Alguns condenados acusam o Supremo Tribunal Federal de fazer um jogo político e passam a criticar os magistrados da mais elevada corte da Justiça no Brasil. Os analistas mais conceituados preveem que esse episódio pode redundar num choque aberto e insanável entre os dois poderes da República — o Executivo e o Judiciário. Com isso, pode-se abrir uma crise institucional ao modo tão a gosto daqueles que não se acanham em violar a Constituição da República, numa revivência das ideias da primeira “alma” — a do Colégio Sion.
Todavia, notícias mais recentes indicam que Lula e Dilma Rouseff querem colocar em “banho-maria” atos e pronunciamentos que sejam desafios ao Supremo Tribunal Federal. Torcemos para que o bom senso prevaleça e que o resultado final seja limitado, apenas, a um desgaste do Partido dos Trabalhadores.
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Marco Antônio Tavares Coelho, dirigente histórico do antigo PCB, é jornalista e escritor. Escreveu, entre outros, Os descaminhos do São Francisco, O Rio das Velhas — memórias e desafios e Rio Doce — a espantosa evolução de um vale.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
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