Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal dedicar-se-á a uma questão simples do ponto de vista jurídico, mas altamente complexa para a democracia brasileira. O caso é simples: o STF obedecerá à Constituição da República ou desbordará de suas competências, invadindo as prerrogativas da Câmara dos Deputados?
Por Luiz Moreira*
Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal dedicar-se-á a uma questão simples do ponto de vista jurídico, mas altamente complexa para a democracia brasileira. Trata-se da disposição do STF em declarar a perda imediata de mandatos de Deputados Federais sem a observância dos dispositivos constitucionais que regem a espécie. O caso é simples: o STF obedecerá à Constituição da República ou desbordará de suas competências, invadindo as prerrogativas da Câmara dos Deputados?
Neste cenário, o Presidente Marco Maia, da Câmara dos Deputados, já se posicionou afirmando que deliberar sobre perdas de mandatos de Deputados Federais é matéria que cabe exclusivamente ao Plenário da Câmara dos Deputados, que a apreciará em votação secreta, cuja maioria é a absoluta, ou seja, para haver cassação é necessário o assentimento de 257 Deputados Federais.
O Presidente Marco Maia se baseia em entendimento juridicamente pacífico, por se tratar de competência expressamente prevista na Constituição da República. E o faz por dois motivos: primeiro, trata-se de regra elementar da hermenêutica jurídica que a interpretação é regida imediatamente pela norma específica do caso e só mediatamente por normas secundárias. No caso, a cassação de mandatos de deputados segue os estritos limites prescritos pelo art. 55, da Constituição da República. Segundo, as hipóteses constitucionais de cassação de mandato são aquelas atinentes à perda dos direitos políticos (arts. 15, III e 55, IV), mas para isso se faz necessária que a condenação criminal não admita mais recursos, ou seja, que a condenação criminal tenha “transitado em julgado” (art. 55, VI).
Portanto, como nos casos em exame na Ação Penal 470 não houve ainda sequer a publicação do Acórdão, ocasião em que se abrirá a oportunidade para as defesas dos Deputados Federais, e dos demais réus, apresentarem os embargos de declaração e os embargos infringentes, juridicamente é prematura a discussão, uma vez que somente depois de transcorrida essa etapa, que é uma exigência constitucional, é que a questão poderá ser apresentada à Câmara.
No entanto, sua tematização pode significar a disposição de alguns Ministros do STF em constituir uma hegemonia judicial no Brasil. Em suas manifestações, Marco Maia vem enfrentando a intenção desses Ministros em submeter o Congresso. Nesse confronto institucional não está em jogo apenas a cassação de mandatos de Deputados condenados pela Justiça.
Está em jogo a própria democracia brasileira, pois se o STF seguir o entendimento difundido por parte da imprensa e determinar a imediata cassação dos respectivos mandatos dos parlamentares terá agido como os generais, valendo-se dos mesmos dispositivos jurídicos utilizados pela ditadura. Neste que seria um golpe à democracia, qual seria o próximo passo, estabelecer um governo de juízes e dispensar o Congresso Nacional?
Por que se trata de um golpe à democracia? Porque em diversas passagens da Constituição Cidadã é explicitada a primazia dos Poderes Legislativo e Executivo sobre a burocracia estatal. Esta primazia decorre da força que emana do voto, que legitima os mandatos obtidos dos cidadãos.
Essa primazia é caracterizada diversas vezes ao determinar, por exemplo, que o poder que os cidadãos conferem ao Estado é exercido por representantes eleitos (art. 1º, § único), cabendo ao Poder Executivo nomear os membros dos Tribunais Superiores, inclusive os do STF (art. 84, XIV) e ao Senado não apenas sabatinar e aprovar os candidatos indicados pelo Presidente da República aos Tribunais Superiores, mas processar e julgar, por crime de responsabilidade, os Ministros do STF (art. 52, II e III, a).
Nessas circunstâncias, por ser carente de legitimidade popular, exige-se que a investidura e a destituição dos membros dos altos escalões do judiciário brasileiro decorram das autoridades políticas, ou seja, das autoridades que obtiveram mandato diretamente dos cidadãos.
Como Carta Política, a Constituição estabelece uma primazia às instituições democráticas, de modo que há um rito que asperge legitimidade do voto aos poderes políticos. É por isso que, numa repartição de competências em que a investidura dos Ministros do STF ocorre numa confluência entre os Poderes Executivo e Legislativo, se fala a um só tempo numa divisão horizontal do poder, pela qual seu exercício é compartilhado segundo competências, e numa submissão do Estado aos cidadãos, razão pela qual são seus representantes eleitos que legitimam o exercício estatal do poder (art. 1º, § único).
Pois bem, é neste cenário que hoje se experimenta no direito brasileiro uma tentativa de retorno a movimento cujo propósito é o de conferir estatuto científico ao arbítrio judicial. Esse propósito é enfrentado ao menos desde a Revolução Francesa, tendo Napoleão Bonaparte estabelecido os limites ao arbítrio judicial. Passada a Revolução, Napoleão se dedicou pessoalmente à elaboração do Código Civil francês (1804). O Código Napoleão encarnava os valores da Revolução, principalmente liberdade e direito à propriedade, expressões da sociedade civil francesa da época. Desde então se teme que as liberdades civis e os poderes políticos sejam confrontados pelos juízes.
Essa a razão para não se promulgar diversas leis para regerem a vida privada. Assim, no lugar de leis esparsas, contendo normas conflitantes entre si e que tornavam possível que por entre tais vácuos legislativos se expressasse a vontade do juiz, foi elaborado um código. Pretendia-se que o código estabelecesse concreta e claramente os direitos dos cidadãos, às liberdades e à propriedade e que tais direitos não decorressem do judiciário, mas de seus representantes eleitos. Não havendo dúvidas, não haveria espaço para que os juízes aplicassem suas vontades no lugar da dos cidadãos, por intermédio dos parlamentares. O propósito do Código Napoleão era o de garantir a não existência de contradições nas normas jurídicas. Sem esses vácuos, todos poderiam se guiar pelos códigos e não pelas manifestações judiciais.
Este propósito segue seu percurso sem grandes desvios até a ascensão de Hitler na Alemanha. Em seu governo, o Ministro da Justiça passa a emitir as famosas “Cartas do Ministro da Justiça do Reich aos Juízes”. Ora, o que ele pretendia com essas cartas? Além de emitir instruções, pretendia que os juízes decidissem sem a observância daquilo previsto nas leis. Ele suplicava que os juízes, quando as tomassem, decidissem segundo o ideal nazista, conforme os valores nazistas incutidos na maioria, pois, afinal, por que o Poder Judiciáiro, formado por pessoas dotadas de “notável saber jurídico” e portadoras de “reputação ilibada”, haveria de se submeter às leis, que, afinal, são feitas por pessoas do povo, comumente não versadas em direito? Tão problemático quanto substituir as leis pela interpretação judicial é a tentativa de afastar dos Legislativos o homem comum, imprimindo a falsa impressão de que o político deveria ser substituído pela jurista. O que garante a pluralidade dos Parlamentos é a legitimidade das visões de seus membros que, por isso, representam os diversos segmentos que compõem a sociedade.
Neste cenário é que se insere o pós-constitucionalismo no Brasil, com seu pleito por supremacia judicial, consubstanciada nas seguintes teses:
(1) que a Constituição é um documento jurídico e, portanto, não político;
(2) se a Constituição é jurídica apenas, sua guarda cabe exclusivamente ao sistema de justiça em geral e ao STF, em particular;
(3) na primazia das sentenças sobre as leis, de modo que o controle de constitucionalidade é transformado de “método de compatibilidade sistêmica” em expressão de tutela do Judiciário sobre os Poderes Políticos;
(4) como a manifestação judiciária seria mais importante que a manifestação legislativa, o Juiz é o soberano para decidir ainda que contrariamente à lei, pois, como defendia o teórico nazista Carl Schmitt, “soberano é quem decide no estado de exceção”; e, finalmente,
(5) na criação de um artifício teórico para que o STF possa negar vigência ao próprio texto da Constituição. Para tanto, foi introduzido no Brasil um simulacro hermenêutico, com o qual normas constitucionais sofreriam mudanças em seu sentido, de tal modo a acarretar a revogação desse dispositivo constitucional, mas sem manifestação do Congresso Nacional.
Esse simulacro é designado como mutação constitucional e ele é invocado
para legitimar interpretações que não encontram respaldo no texto constitucional e tem como propósito desligar os Ministros do STF tanto de quaisquer limites interpretativos quanto de quaisquer parâmetros normativos. Em síntese, pretendem designar uma evolução no modo de interpretar um vocábulo para contornar uma obrigação constitucional e com isso estabelecer um governo dos juízes.
Parece não ser por acaso que a última vez que o STF decretou a cassação de um Deputado, sem o assentimento da Câmara dos Deputados, tenha ocorrido na ditadura militar. Naquela época o STF se valeu de artifício jurídico, o contido na Emenda Constitucional nº 1, justamente a outorgada pela Junta Militar em 1969, que emendou a Constituição de 1967, outorgada pelo General Castelo Branco. “Se a história se repete apenas como farsa”, será este o legado do STF?
(*) Doutor em Direito e Mestre em Filosofia pela UFMG. Professor Universitário. Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem.
Fonte: Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário