Por Jonuel Gonçalves
Os conflitos no começo do século XXI não apresentam mudanças significativas de motivação básica em relação a períodos anteriores. O conflito é, aliás, um dos elementos mais persistentes na história humana, enquanto que suas configurações armadas apresentam grande semelhança desde pelo menos o período napoleônico. Por isso, é quase lugar comum os especialistas afirmarem que os conflitos atuais são “velhas estratégias com novas tecnologias”.
Mas este elemento “novas tecnologias” introduz alterações de alto relevo, a primeira das quais é o aumento dos investimentos necessários para conduzir uma guerra e os consequentes impactos das despesas militares. Porém, o tipo de impactos difere quer se trate de países mais pobres, de renda intermédia ou de renda alta.
Assim, guerras civis ou entre Estados, nas últimas décadas do Sudão, Etiópia ou Eritreia, exercem pressões de atraso muito acima de outras partes do globo. Com a incipiência material em que vivem países como os três mencionados, qualquer conflito obriga a vultuosas importações para equipar e assegurar até o consumo mínimo dos combatentes, em detrimento de bens de consumo vital para a população ou indutores de crescimento. O elevado número de mobilizados representa também uma forte hipoteca para o futuro, quando no final dos conflitos se procede á desmobilização, e as estruturas locais do mercado de trabalho não revelem capacidade para absorver essa elevada quantidade de pessoas pouco qualificadas, parte das quais poderão ter guardado armamento ligeiro.
Em países de altos gastos militares e níveis de renda mais elevados que aqueles, como Egito, Israel ou Arábia Saudita, grande parte dos investimentos militares são canalizados para indústrias locais, seja de armamento ou de outros bens consumidos indistintamente por civis e militares. Uma redução dos efetivos também é mais absorvível pelo mercado de trabalho ou por entidades de proteção social e reciclagem profissional, que nos países mais pobres.
Uma parte dos orçamentos de defesa israelense e egípcio, por exemplo, dão lugar a pesquisa ou aplicação tecnológica em vários ramos, desde a medicina à informática e ao nuclear.
Se tais elementos minimizam o desperdício em relação aos PMA (designação diplomática da ONU para evitar a expressão de “atrasados”), não anulam os custos de manter centenas de milhar de pessoas fora dos circuitos produtivos e as elevadas faturas de operação dos meios bélicos sofisticados. Ponto comum nas duas categorias de países: as políticas de defesa reduzem as reivindicações sociais, na medida em que apontam a defesa como prioridade absoluta e acusam os protestos de sabotagem política ou traição.
É nos países mais industrializados que a inserção das despesas militares em nível macroeconômico é mais acentuada e com mais efeitos de alta no PIB e mercado de trabalho. Com frequência surgem sinais de que as despesas militares desses países – mesmo nas suas fases de maior euforia “mercadista” – funcionam como despesas públicas estimulantes para vários ramos da economia, favoráveis aos grandes contratos de nova e alta tecnologia. Indispensáveis também para as pautas de exportação, de tal forma que os governos montam marketing permanente em favor dos seus produtos de uso militar, principalmente quando se abrem grandes concursos para modernização de forças armadas de países emergentes, do tipo África do Sul pós-apartheid ou Brasil em 2009/2010.
Os custos de defesa nos Estados Unidos continuam sendo parcela importante das despesas públicas, que se transformam em renda para múltiplas empresas e setores, através de encomendas que vão desde cereais até aeronáutica da ultima geração, passando pela utilização de infraestruturas e recurso a experts civis.
Desde a guerra contra a Espanha no Caribe e nas Filipinas, que a economia norte-americana tem adequado sua estrutura econômica aos conflitos além fronteiras. Desde sempre é o Estado federal quem desempenha papel decisivo e a denominada Revolução nos Assuntos Militares (RMA) é consequência da evolução tecnológica civil que esteve na base da recuperação econômica do período Clinton.
Quando um país é produtor de toda a cadeia de material bélico e há relação estrutural militar-industrial, será muito difícil vencê-lo apenas em virtude das despesas militares, podendo mesmo ocorrer que essas despesas causem aumento percentual do PIB, desde que não ocorram destruições materiais no seu território.
Em termos estritamente econômicos, estamos longe de igual capacidade nas economias emergentes em conflito, na medida em que seus volumes de importações em tecnologia ainda são muito altos e grande parte dos investimentos de defesa são feitos em detrimento de outras necessidades financeiras. Quanto às guerras nos PMA, elas ficam simplesmente fora de qualquer idéia de comparação, por serem apenas predadoras do ponto de vista do desenvolvimento econômico.
Nas guerras internas das duas últimas décadas, onde pelo menos um dos beligerantes era Estado com algum poder, o financiamento saiu dos orçamentos, quer dizer, pago pelos contribuintes ou pelo recurso a venda de produtos valiosos que, teoricamente, estariam destinados a financiar projetos de desenvolvimento. Nos palcos de guerras civis a sul do Tropico de Câncer, não se assistiu ao surgimento de indústrias bélicas modernas, ou seja, a dependência externa neste ponto (como em muitos outros) permaneceu.
De fato, nas áreas subdesenvolvidas com tradição de violência, a indústria de armamento cresceu em países de maior dimensão que nunca chegaram ao estágio de guerra civil: Brasil, Índia, África do Sul e Paquistão, embora este seja ciclicamente ameaçado de guerra interna.
Nas guerras localizadas que fazem parte de conflitos regionais – Palestina e Cashemir – os financiamentos são assegurados a quase 100% por países da região que, na prática, por vezes combatem por interposta força: Israel, Irã, Índia, Paquistão
Nas guerras de pobreza (Libéria, Serra Leoa, Sri Lanka, Somália, Iêmen, Filipinas, Colômbia, Afeganistão e zonas curdas fora do Iraque) três meios principais permanecem disponíveis no começo do milênio, com efeitos devastadores e promotores de grandes fortunas. São extensas redes paralelas que atuam com base em drogas proibidas, nos diamantes e em transferências clandestinas de moeda. A Colômbia e o Oeste Africano, constituem os dois espaços mais notórios para a transformação de drogas e diamantes em equipamento militar, enquanto que o terrorismo jihadista possui fontes próprias, a partir de fortunas de algumas grandes famílias e milhares de contribuições regulares de simpatizantes, reproduzidas por canais que os respectivos movimentos protegem estritamente.
Estas redes fazem parte do topo da economia internacional fora da lei, que partilham com a corrupção executada a partir de bens públicos, no quadro de estratégias pessoais de enriquecimento inseridas em projetos de poder.
Sob a ótica da base econômica da violência, as inserções das drogas, dos diamantes e das contribuições diretas à aquisição de armamento são evidentes, mas há diferenças entre elas. Os tráficos são geridos por empresas clandestinas de fornecedores; as contribuições são doações administradas pelos beneficiários; os desvios de fundos públicos resultam de abusos de poder (no Estado ou nas empresas) que, na maior parte do mundo não decorrem nem conduzem a violência física, mas são protegidos com violência em alguns Estados africanos. Nesses casos, as maiores violações dos direitos humanos, incluindo fraudes eleitorais, alteração de dados contábeis, disfarces fiscais, tortura e assassinatos, decorrem de tal pratica e, a similaridade no recurso á ilegalidade e brutalidade, dão-lhes perfil idêntico ao das máfias da droga e dos diamantes, configurando situações de Estado mafioso.
Um item importante da economia dos Países Menos Avançados (PMA) é a ajuda externa, muitas vezes apresentada como cooperação e que tem componentes explicitamente militares, como ajuda á formação e desenvolvimento de forças armadas e serviços de polícia. Esses programas de ajuda por parte dos Estados Unidos, várias vezes ao longo do século XX contribuíram para golpes de Estado e manutenção de ditaduras brutais nas Américas. O mesmo sucedeu na África com antigas metrópoles em relação a suas ex-colônias, para garantir regimes favoráveis.
Perto de finais do século XX, o Fundo Monetário Internacional passou a adotar uma política de crédito mais restritiva em relação aos PMA, no sentido inverso do que ocorria no mercado de crédito dos desenvolvidos. A razão principal era não aumentar o endividamento externo, mas teve também como efeito reduzir o numero de projetos que, pelo menos em alguns países, seriam portadores de crescimento, com a agravante de que o esperado investimento direto estrangeiro (IDE) nesses países tem sido decepcionante.
Aproveitando o “vazio” criado e combinando com seus interesses nacionais, a China passou a propor investimentos e créditos vantajosos no curto prazo a diversos Estados africanos, orientados para contratos de construção civil com empresas chinesas, acordos de exportação de matérias-primas e importação de bens primários de baixo custo. Os efeitos deste movimento são positivos no imediato consumo popular e na recuperação de algumas infraestruturas, mas apresenta externalidades com riscos institucionais: contribuem para prolongar governos repressivos ou corruptos. De fato, foram significativas as medidas de crédito e investimento anunciadas pelas autoridades chinesas no Sudão durante os piores momentos da crise do Darfur, no Zimbabwe em fases de acusação de fraudes eleitorais e na Guiné-Conacry após o brutal massacre de manifestantes pacíficos contra a junta militar em setembro de 2009, sinais de natureza a encorajar autoritarismos em outros países de fracas sociedades civis e cujos governos só hesitam no regresso a métodos de partido único, com receio de isolamento internacional.
A capacidade de exibir meios poderosos para vencer conflitos é uma manifestação central de poder, seja dentro dos países, seja à escala planetária, sendo neste detalhe que o fator tecnológico ganha centralidade, a ponto de alterar dados do exercício de poder.
A via do recurso à força armada obriga a esforço de modernização constante de meios, como forma de dissuasão, de pressão indireta sobre potenciais adversários ou de atuação direta em ultimo caso. O nível tecnológico desses meios é absolutamente decisivo e decorre obviamente da capacidade produtiva ou importadora, de sua colocação nos espaços táticos e estratégicos e de sua utilização competente. Significativamente, nos Estados mafiosos, de baixo índice de inovação tecnológica geral, as forças repressivas apresentam material sofisticado.
Em contextos de conflito ou não, tecnologia é poder e as novas tecnologias introduziram varias mudanças capitais na estrutura mundial, com quatro características:
- o fator principal para o alargamento ou a redução da diferença entre grupos de países, reside na maior ou menor capacidade de utilização das novas tecnologias e sobretudo na sua produção. Daí a centralidade dos direitos autorais, de patentes e da criação de genéricos.
- os Estados Unidos assumem uma posição de super poder militar mas, mesmo possuindo o maior PIB do mundo, sua força econômica não tem o mesmo impacto da capacidade bélica. Nas utilizações não militares, o domínio das novas tecnologias em outros países, produziu efeitos de crescimento macroeconômico, apesar das crises, sobretudo se avaliarmos o médio prazo.
- assim, a produção das novas tecnologias foi em boa escala absorvida por algumas economias subdesenvolvidas de grande dimensão, com tendência para reduzir as diferenças com o centro e refazer um quadro multipolar, em termos econômicos e tecnológicos. Tal fato permite, desde a ultima década do século XX, mudanças nas percentagens de participação no comércio mundial, aumento dos países com acesso a fontes de energia sensíveis e reciprocidade de efeitos entre forças armadas e indústria, contribuindo para distinções de envergadura entre os países subdesenvolvidos.
- do ponto de vista social, porém, o impacto das novas tecnologias não foi inteiramente absorvido em nenhum país. Embora exista uma forte graduação nesta deficiência, a transição tecnológica decorre com renovação de desequilíbrios sociais em todos.
Jonuel Gonçalves é doutor pela UFRRJ. Autor de vários livros, capítulos e artigos em Ciências Sociais e um romance “Café Gelado”. Comentarista da TV Futura. E-mail:jogo34@hotmail.com
Fonte: Algo a Dizer
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