domingo, 13 de maio de 2012

Comerciários jogados à própria sorte

Trabalhadores realizam jornada média de 53 horas semanais e sofrem com a precarização das condições de trabalho

10/05/2012

Michelle Amaral,

da Reportagem

Em supermercados e shoppings, trabalhadores trabalham
até mais do que 60 horas - Foto: Wilson Dias/ ABr




Em datas comemorativas, como o Dia das Mães, a sobrecarga de trabalho dos comerciários aumenta. Apesar de haver uma elevação nas contratações temporárias para o comércio, o quadro de funcionários formado pelas lojas ainda não é suficiente para suprir a demanda de procura dos clientes. “O excesso de jornada duplica nesses dias. Já demos autuações Brasil afora em que se constatou mais do que 70 horas de trabalho semanal”, revela o presidente da Confederação Nacional de Trabalhadores do Comércio (CNTC), Levi Fernandes Pinto.

Na ânsia por garantir a clientela e obter mais lucros, as empresas repassam aos funcionários o ônus da extensão do período de funcionamento. De acordo com pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), os comerciários trabalham em média 53 horas semanais, enquanto a jornada oficial de trabalho é de 44 horas.

Pereira, vendedor de uma loja de materiais de construção e decoração, que trabalha há 23 anos como comerciário, lembra que na época em que iniciou na profissão as condições de trabalho eram melhores, porque não se trabalhava aos domingos nem aos feriados, e nos sábados as lojas funcionavam até as 13 horas apenas. “Com o passar do tempo, a demanda acabou obrigando as lojas a atenderem em um horário diferenciado. Antes fechava cedo, agora às 22h. No domingo não abria, agora abre. E a carga de trabalho foi só aumentando”, relata.

Ainda, segundo o presidente da CNTC, Levi Fernandes Pinto, em alguns segmentos do comércio trabalhadores acabam excedendo 60 horas semanais de trabalho. “Os comerciários de supermercados e os de shoppings são os mais penalizados. Estes, com certeza, chegam a 60 ou até um pouco mais do que 60 horas, porque é muito comum trabalharem de segunda a domingo”, afirma.

Jairo, que trabalhou em uma loja de calçados de um shopping da zona sul de São Paulo, conta que a extensão do horário de trabalho além da jornada contratual é comum. “Nos dias de semana o horário de entrada era às 16h, mas a gente tinha que entrar 15h30 para arrumar o estoque. Quando a loja não tinha batido a cota, a gente trabalhava além do horário. Se ficasse uma, duas horas a mais e não vendesse, não ganhava nada”, relata.



Banco de horas

Os trabalhadores das lojas de calçados, que são remunerados através de comissões sobre as vendas, não são os únicos que não recebem pelas horas trabalhadas a mais. Segundo Josimar Andrade de Assis, diretor de Relações Sindicais do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, a maioria das empresas do comércio trabalham com a política de banco de horas, ou seja, ao invés de pagar um valor a mais pelo período extra trabalhado, a empresa acumula essas horas para, em data posterior, o funcionário tirar folga. No entanto, Assis destaca que nem sempre os trabalhadores conseguem tirar as folgas devidas. “As empresas acabam não respeitando o banco de horas, às vezes essas horas somem ou são descontadas”, denuncia.

Além disso, conforme o diretor sindical, a escala de folgas é determinada pela empresa segundo suas necessidades, e não as do trabalhador, contrariando o que estabelecem as convenções coletivas da categoria. “A vantagem tem que ser sempre do funcionário, essa é a primeira condição [para utilização da política de banco de horas]”, explica.

O banco de horas também não pode exceder duas horas além da jornada de trabalho de oito horas diárias. Assim como domingos e feriados não podem ser computados, pois têm regras específicas que definem o pagamento de horas extras. A empresa deve, ainda, disponibilizar ao funcionário uma planilha com os créditos que possui, para que ele acompanhe as horas a mais e possa se programar para tirar folga. “Se a empresa quiser usar essa política do banco de horas tem que seguir à risca essas indicações. Mas temos dados que indicam que a maioria das empresas não cumpre na íntegra”, afirma Assis.

Para o secretário-geral do Sindicato dos Comerciários de Osasco e Região (Secor), Luciano Pereira Leite, a política de banco de horas é prejudicial ao trabalhador, porque flexibiliza a jornada de trabalho. Além disso, Leite afirma que o banco de horas atende apenas ao interesse das empresas, que não querem pagar pelas horas extras e seus reflexos sobre os demais direitos dos trabalhadores.“Para nós, o ideal seria não ter o banco de horas e que o trabalhador também não executasse horas extras, para que se possa gerar mais empregos”, defende o sindicalista, que lembra que tal pensamento faz parte da campanha das centrais sindicais pela redução da jornada de trabalho para a geração de mais postos de trabalho.

Além da utilização do banco de horas, o diretor do Sindicato dos Comerciários de São Paulo diz, ainda, que tem conhecimento de empresas que, após o funcionário cumprir a jornada de oito horas, o obriga a registrar o horário de saída contratual no cartão de ponto e continuar trabalhando. “Dá baixa no cartão de ponto, mas permanece no local, continua vendendo, continua atendendo clientes. E essas horas de trabalho não são computadas como hora extra, nem como banco de horas”, descreve.

Segundo Assis, quando o sindicato toma conhecimento de situações como esta, faz denúncia junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O presidente da CNTC, no entanto, reclama da dificuldade de levar a fiscalização do Ministério do Trabalho a essas empresas para proceder com a autuação. “Infelizmente, o Ministério do Trabalho está sucateado, principalmente nessa área de disposição dos auditores fiscais do trabalho. Chegamos ao absurdo de, em uma capital, ter cinco auditores fiscais para atender 300, 400 mil comerciários”, protesta.

De acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), atuam hoje no país em torno de 3 mil auditores fiscais do trabalho, conforme a última atualização da coordenação-geral de recursos humanos do MTE, divulgada no início de março. Fernandes Pinto, contudo, lembra os auditores têm que atender não somente os comerciários, mas todas as outras categorias, o que torna o efetivo insuficiente.

Leite afirma que os comerciários estão “jogados à própria sorte” diante das irregularidades impostas pelas empresas e pela falta de atuação dos órgãos públicos que deveriam fiscalizar as condições de trabalho. “Não tem nenhum tipo de fiscalização e o sindicato não tem o poder de punir”, lamenta.



Precarização

Funcionários trabalham sábados, domingos e
feriados até as 22h - Foto: Marcelo Cassal/Abr

Mas não é somente com a extensa jornada de trabalho que os comerciários sofrem. De acordo com levantamento do Dieese, “no comércio há um grande descompasso entre os ganhos verificados no setor – crescimento este acima do PIB – e o repasse para a melhoria das condições de trabalho da categoria”. Os trabalhadores do comércio padecem com baixa remuneração, instabilidade profissional e falta de registro profissional.

Outra dificuldade apontada pelos comerciários é o trabalho aos domingos. “Você pode perguntar para o shopping inteiro, ninguém gosta de trabalhar no domingo, porque é o único dia de folga que a gente tem para ficar com a família”, afirma o comerciário Jairo. O vendedor de lojas de calçados ainda reclama da falta de pessoal nas lojas. “Quando eles dão folga para um vendedor, tem que sacrificar o outro, fazendo com que ele dobre o horário de trabalho”, afirma.

O presidente da CNTC conta que, em diversas situações, flagrou a sobrecarga de trabalho de comerciários justamente pela falta de pessoal. “Chegamos ao absurdo, inclusive, de constatar caixas de supermercado em Belo Horizonte que tem que usar fraldão, porque não podem nem sair para ir ao banheiro”, relata Fernandes Pinto.

Já em Osasco (SP), Leite conta que trabalhadores do hipermercado Carrefour, para poderem ir ao banheiro, têm que entrar em uma fila de espera. “O Carrefour faz o controle híbrido dos trabalhadores. As pausas para ir ao toalete têm que ser agendadas”, afirma. Segundo o secretário-geral do Secor, tal conduta impõe aos trabalhadores o controle híbrido: como as idas ao banheiro são limitadas, o trabalhador deixa de beber água. “Isso acaba gerando problemas de bexiga, de rim, de útero, etc. É uma situação que traz vários problemas de saúde para o trabalhador, principalmente para as mulheres”, ressalta.



Falta regulamentação

Segundo Fernandes Pinto, os problemas enfrentados pelos comerciários, principalmente com a extensão da jornada de trabalho, poderiam ser solucionados com a regulamentação da profissão. “Nós entendemos que com a regulamentação isso vai mudar, porque o comércio passará a ter que cumprir a jornada de 44 horas semanais, que só poderá ser mudada mediante convenção coletiva”, afirma.

Apesar de ser uma das profissões mais antigas, o trabalho no comércio ainda não possui uma legislação específica. Desde 2007 tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado 115, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que visa legalizar a profissão de comerciário.

“Aqui no Congresso, é difícil aprovar um projeto quando há divergência entre trabalhador e empregador, mas nesse projeto houve um grande entendimento entre os empregados e os empregadores”, afirma o senador, que acredita que o projeto seja aprovado ainda no primeiro semestre deste ano.

Para o comerciário Pereira, entretanto, a regulamentação da profissão não trará melhorias para o trabalhador. “Vai ser mais um reconhecimento da profissão de comerciário. Mas benefício para o comerciário, acho que não vai ter muito não, porque o sindicato patronal é muito forte”, analisa. Na opinião de Pereira o poder do sindicato patronal é maior do que o dos comerciários, por isso demorou-se tanto para conseguir o acordo para regulamentar a profissão. O comerciário acredita que, mesmo com a aprovação do projeto, o poder das empresas vai continuar sendo forte. “A maioria das empresas é multinacional hoje, o poder delas é muito grande, até mesmo dentro da Câmara e do Senado”, diz.

O presidente da CNTC, por sua vez, pondera que o fato de a profissão ser regulamentada poderá não impedir que empresários continuem impondo as condições precárias de trabalho a seus funcionários, “mas vai servir como um instrumento a mais para o trabalhador poder reivindicar [seus direitos] judicialmente”, afirma.



Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/9537

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