Ana Moser, Raí, Hortência, Cafu e outros esportistas lançam
movimento para que megaeventos multipliquem direitos sociais, ao invés
de limitá-los
Por Ciro Barros, na APública
Ela jogou três Olimpíadas, Seul (1988), Barcelona (1992) e Atlanta
(1996), quando a seleção brasileira de vôlei conquistou sua primeira
medalha (de bronze), venceu dois Grand Prix de Vôlei (em 1994 e 1996) e
entrou para o seleto grupo do Hall da Fama do Vôlei dez anos depois de
deixar de ser atleta profissional. Fora das quadras, não deixou de se
dedicar ao esporte, mas com outro foco. Em vez de conquistar medalhas
ela luta para que o esporte seja um direito da população. E quer que
seja essa a prioridade do Brasil que se prepara para receber as
Olimpíadas de 2016.
“O esporte para todos” é o bordão da presidente da associação Atletas
pela Cidadania, fundada por ela e outros nomes de peso do esporte
nacional como Raí, Joaquim Cruz, Cafú, Dunga, Edmilson, Fernanda Keller,
Fernando Scherer (Xuxa), Hortência e o seu colega de vôlei Giovane.
O objetivo é universalizar a prática do esporte nas escolas e
incrementar sua prática entre os brasileiros em geral através da criação
de um Sistema Nacional de Esporte, com estrutura legal, recursos
adequados e transparência. Em vez de passivos espectadores de um
megaevento que por enquanto tem trazido mais prejuízo do que benefício à
população, Ana e seus colegas querem contribuir para que a realização
das Olimpíadas deixe um “legado positivo” para a prática do esporte no
Brasil.
Esse é o foco do manifesto “Atletas pelo Brasil” que a associação lança hoje (leia aqui) para
chamar a atenção para a necessidade de criar uma política pública para a
prática do esporte e apresentar três propostas concretas: a instituição
de um comitê interministerial para reestruturar a legislação do sistema
esportivo nacional e a criação de um Plano Nacional de Esporte; a
aprovação de legislação sobre as condições necessárias para as
entidades do Sistema Nacional de Esporte receberem recursos públicos
(emenda nº à MP 612 e emenda nº à MP 615); e a total transparência dos
investimentos e das apurações referentes às denúncias de violações de
direitos humanos nos grandes eventos esportivos.
Em entrevista à Pública, Ana explica em primeira mão o que pretendem
os atletas com essas propostas e por que elas podem mudar a realidade do
esporte no país. Leia a seguir:
Como foi o seu acesso ao esporte?
Eu sou de Blumenau, Santa Catarina. Ali a colonização alemã e
italiana é muito forte. E o esporte é cultural; na Europa, faz parte do
dia a dia das famílias, das cidades. Então eu comecei antes de ter
esporte na escola, num clube, aos sete anos, depois na escola, estudei
em colégio particular. Então, quer dizer, eu não sou o padrão. E, para
mim, sempre foi esporte pelo esporte, pelas coisas boas que ele traz.
Fui virar atleta depois de adolescente, com 17 anos. Até lá o esporte na
minha vida era cultural. E essa visão que eu trago nas atuações que eu
tenho.
Uma das bandeiras que a ONG Atletas pela Cidadania defende é o
esporte acessível a todos os brasileiros. Quão distantes estamos desse
cenário?
Na real, esporte de pobre e esporte de rico não tem. Todos são
carentes nesse sentido. Rico e pobre. Carentes por bons lugares, aptos
para a prática esportiva. Nos Estados Unidos, por exemplo, você tem as
associações de bairro em que se começa a praticar o esporte até que na
escola vira uma coisa mais séria. Mas a raiz é comunitária. E aqui nós
não temos isso. Então eu vejo que todos os setores têm carência, e dizer
o quão longe a gente está é uma suposição, porque os dados mesmo a
gente não tem. Tem algumas pesquisas, mas insuficientes. Eu imagino que
estejamos num patamar de 20 a 30% da população que pratica esportes,
pessoas realmente ativas.
Publicamente você não se manifestou contra a vinda dos Jogos Olímpicos, mas você me disse que você é contrária. Por que?
Acho que não faz sentido. A grande chance na estrutura que estava
naquele momento, e acho até que já involuímos de lá para cá, era de
direcionar investimentos no esporte para todos, o esporte que não
envolve medalhas. Eu tenho até um amigo que é empresário e que investe
em esporte, que tem a mesma visão. As Olimpíadas trouxeram o foco no
esporte de rendimento, então nós nos estruturamos errado. Há um foco em
esporte nesse momento, há muitos investimentos, mas não se consegue
investir no esporte para todos. E tem boas ações nesse sentido, no
governo, na sociedade civil. Mas na época eu tinha uma visão mais
conservadora. Eu achava que se ocorressem os grandes eventos iria se
concentrar os investimentos em esporte, tanto na questão da
infraestrutura e preparação da equipe olímpica. Mas eu vi que se se
investir só nisso, você não tem impacto embaixo. Por dois anos eu vi
isso acontecer no Instituto Esporte e Educação (outra ONG presidida por
ela): caiu em 70% a captação de recursos privados para projetos de
esportes para todos, para todos os projetos esportivos que não envolvem
medalhas. O Ministério do Esporte está construindo ginásios, estádios,
cuidando de aeroporto, de orçamento, e daqui a pouco vai cuidar do
Parque Olimpíco, botando recurso direto nas confederações e no COB. Mas,
por outro lado, se trouxe o esporte para o centro do interesse
nacional. E nós estamos agora querendo juntar forças para lutar por um
outro lado: investe em cima, mas estrutura embaixo para tornar
sustentável e transformar em legado. Se não, fica aquele negócio: o que
que eu ganho com isso?
Você é uma ex-atleta que está militando pelo esporte para todos em
nível nacional. Falta mais posicionamento dos atletas e ex-atletas que
tenham algum prestígio em questões relacionadas à gestão política do
esporte?
A gente até criou a ONG Atletas por isso também, para criar entre os
atletas essa cultura de participação. Mas em relação a atletas em
atividade é complicado. Eu tinha assinado na CBV (Confederação
Brasileira de Vôlei) um código de ética que dizia que eu não poderia
falar contra a CBV. Se eu falasse na imprensa alguma coisa eu pagava uma
multa. Então é complicado. A gente está caminhando, mas o sistema é
ainda muito conservador.
E por que vocês estão lançando esse manifesto agora, que destaca
entre outras coisas, as violações de direitos humanos nos megaeventos?
A gente está na rua há uns cinco anos, mais focados nos bastidores,
em movimentação interna no esporte, com menos campanhas para fora. É um
movimento grande, e estamos sós nesse sentido, ainda ganhando forças. E
agora a gente criou uma maturidade, uma condição de irmos para fora com
mais força, e quer dar mais visibilidade às denúncias, primeiramente,
para mitigar essa situação. Todo mundo sabe que foi feita muita coisa – e
muito rápido – na preparação para os grandes eventos esportivos. E tudo
muito escondido, em momentos de trocas de gestão, sem que houvesse
contrapartidas. Por exemplo, você não tem como fazer um evento para
atrair visitantes e deixar que os nossos saiam de suas casas! Seja na
condição que for, invasão, “não-invasão”, com cinco ou 40 anos de
existência, comunidades foram destruídas. Então somos solidários e
queremos ajudar primeiro com a divulgação [das denúncias], para dar mais
voz às pessoas que estão nessa situação. E também nos somamos para
exigir transparência nos gastos públicos. Tem estudos da FGV que falam
em retorno desses investimentos na ordem de R$ 147 bilhões. Queremos nos
somar para promover um debate qualificado sobre isso também. Se trará
lucro, como vamos distribuí-lo? Se não trará esse lucro todo, como se
potencializa esses eventos? Acho que a gente tem que encarar isso com
responsabilidade. E enquanto ONG queremos propor discussões como essa.
Outra bandeira que vocês levantam é a revisão do Sistema Esportivo Nacional…
Na verdade a construção, porque o sistema nem existe… O esporte de
elite e especificamente o futebol é bem estruturado. Mas as outras
dimensões não estão. Não existem serviços públicos de esporte a longo
prazo. Então o que as Prefeituras investem em termos de esporte
atualmente? Ok, tem as escolas, a educação física, teoricamente. Mas
depende ali do orçamento em Educação e do que a gestão municipal queira
fazer. E o resto da população? Como ela é atendida em esporte? Não
existe uma regra para isso, não existe orçamento para isso. As
Prefeituras, as Secretarias de Esporte tem 0,5% do orçamento total!
Então não existe. A gente teve programas, o Segundo Tempo, o Mais
Educação, em que alguns municípios investiram em mobilidade, pistas de
corrida, ciclofaixas, ciclovias, parques, e outros não. Ou uma gestão
faz e outras não. Não existe nada estruturante no esporte. Por exemplo,
quais as funções da Federação? Do Estado? Do município? Então queremos
essa estrutura para guiar os investimentos em esporte.
Quem formaria o Comitê Interministerial, proposto por vocês, e como ele atuaria na disseminação da prática esportiva?
O Comitê seria formado pelos ministérios da Saúde, da Educação e,
claro, do Esporte. A questão é como você coloca a questão da
disseminação da prática esportiva para todos, mas com uma abordagem em
outras áreas de influência. Não é que não tenha nada, existem alguns
projetos. Por exemplo, existe o projeto Mais Educação, uma estratégia do
Ministério do Esporte junto com o programa de Educação, que injeta
dinheiro direto nas escolas, e tem lá no cardápio de opções o esporte,
uma meta para se investir em uma política de escola integral, e se
pretende também incluir pautas ligadas ao esporte, como a ampliação e a
qualificação do esporte para toda a rede pública de ensino. Há então uma
combinação de recursos e de estratégias, entre o Ministério do Esporte e
o Ministério da Educação, para ver como é possível viabilizar isto, mas
há dificuldades em adequar uma política e uma visão para guiar essa
estratégia. O Ministério do Esporte, por exemplo, acha que só professor
de educação física pode realizar atividades no Mais Educação. Mas o
Ministério da Educação, que é quem tem a escola, não tem professores lá
na ponta, aí entra toda uma rede comunitária, com professores de
capoeira, tudo mais, para suprir essa demanda. Mas com a Educação já
tem uma entrada. Com relação ao [ministério] da Saúde, pensamos em um
programa de como usar o esporte na prevenção de doenças coronárias,
respiratórias, diabetes…A saúde tem programas, o esporte tem programas,
mas como é que se potencializa isso em termos de recurso e como se
potencializa isso em termos de se criar uma linha de atuação? E também
pensamos em uma participação da sociedade, que teria voz e voto nesse
comitê. Porque a sociedade já desenvolve programas e metodologias na
ponta, em menor escala, e o poder público tem que dar a escala.
E como a sociedade participaria desse comitê?
Isso já existe em outras áreas, na questão da Lei do Aprendiz, por
exemplo. Ela também é interministerial: tem o Ministério da Educação, a
sociedade civil, as delegacias regionais do trabalho… enfim, tudo que
diz respeito ao setor representado. Então os agentes do esporte, o COB,
as confederações, a rede de ONGs, as universidades, os conselhos
regionais, cicloativistas, enfim, todos aqueles que fazem o esporte
acontecer teriam lugar em sua composição. Pretendemos a criação de um
projeto de lei para regulamentar e disseminar a organização e a
participação de conselhos municipais, estaduais e nacional de esportes,
como existe em outras áreas. E também queremos criar um fundo para fazer
levantamento de dados, porque não temos praticamente nada e é a
primeira coisa necessária para criar políticas públicas. Na área da
educação, por exemplo, você tem uma base de dados suficiente para
orientar políticas, o Plano Nacional de Educação, na área da saúde
também tem. Então é essa mesma evolução que o esporte pode ter e isso
que a gente quer dizer com reestruturar o Sistema Nacional de Esporte.
Tudo começa com um posicionamento do governo de enfrentar seriamente e
dar prioridade a essa estruturação. Enxergar isso como legado dos
grandes eventos, e entregar para a sociedade como um legado que vai
ficar além de 2016.
E como se faria para criar essa base de dados? Quais atores poderiam ajudar nesse processo?
Tem muita gente mexendo com isso, desde a Unicef a ONGs. A gente está
criando com o UniEthos uma série de indicadores de monitoramento do
esporte nas cidades-sede da Copa do Mundo, que é um programa do Atletas
junto com o Instituto para a Educação. Temos muito poucos dados
atualmente, dados de educação física no esporte que são sobre as escolas
brasileiras da rede pública, com número de quadras abertas ou cobertas,
número de professores contratados, mas não se sabe nem se eles estão
dando aulas ou estão na parte administrativa, para quantos alunos eles
estão dando aula, quantas horas de esporte os alunos praticam por
semana, os programas complementares às escolas. Olha que dilema: no
Ensino Fundamental I, que é do primeiro ao quinto ano, não tem professor
especialista em educação física. Então, teoricamente, tem educação
física na grade, mas quem é que dá essas aulas? O professor de sala. Mas
qual é a preparação ele tem para dar essas aulas? Qual conhecimento?
Qual linha ele segue? Qual política? Enfim, o que ele faz? Ele é atleta
amador, ou foi? Como ele dá as aulas? Só roda uma bola? Então essas
aulas de educação física não existem na prática, mas ninguém fala disso
porque não é um dado que aparece. E isso no Brasil inteiro, não é só no
interiorzão, sertão, não. As capitais do nordeste, por exemplo. Em Minas
também, você sai de Belo Horizonte, você não acha um professor de
educação física.
Vocês também falam também em limitar mandatos de dirigentes esportivos, né?
Essa é uma emenda que a gente propôs à MP 612, uma questão importante
na moralização, na gestão do esporte. Porque também é recurso público,
também representa a nossa bandeira, então é um caminho de avanço que
queremos para o nosso esporte. Também propusemos uma adequação na MP
615, que é uma adequação da Lei Pelé. As confederações, as federações e o
COB têm direito a recurso público na medida em que tomarem algumas
medidas, como a participação de atletas na gestão, fiscalização e
eleição de dirigentes, a de estabelecer dois mandatos de quatro anos no
máximo, de ter prestação de contas, transparência.
Sobre a atual gestão da Confederação de Vôlei, como você avalia?
É um modelo econômico que funciona, tem planejamento a longo prazo. A
dimensão que vejo do esporte de rendimento é com as outras dimensões do
esporte, o esporte na escola, iniciação esportiva. Por exemplo, existe a
Lei Piva, que é um percentual das loterias esportivas, que vai para o
COB e ele distribui por critérios próprios para as confederações. O
quanto desse recurso é investido nas federações dos estados ou no
desenvolvimento do esporte nos estados? No vôlei, você tem um modelo de
seleção brasileira, no topo de categoria, com centro de treinamento, e
uma Superliga. E agora uma Liga B, mas nos Estados é fraco. Então você
tem na verdade uma máquina de renovação [de jogadores] de dez, doze
clubes espalhados aí pelo Brasil, mas as federações não agem para
disseminar a prática do vôlei na sociedade. Não tem volume, escala da
prática esportiva. Quantas crianças praticam o esporte? Quantas crianças
de 10 a 16 anos participam de campeonatos regionais? Essa é a questão.
Queremos um esporte presente em todos os níveis para as pessoas, para
ter uma população ativa. O que é o futebol de várzea, por exemplo?
Existe em tudo que é lugar, em todos os níveis, e tem outros esportes
também. Mas e o investimento nessas áreas, nesses modelos de praticar o
esporte? São debates que estão na rua há muito tempo. É isso que está
posto: vão passar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, mas fica o que para o
país? É isso que estamos questionando.
O que você espera para para o próximo ciclo olímpico, após as
Olimpíadas de 2016? Quais pautas a ONG propõe para haver uma preparação
melhor?
A gente propõe um caminho que começa agora e termina em 2022 de ter
todas as crianças em todas as escolas do Brasil com educação física e
atividade esportiva, dobrar a prática de esporte na população e
construir esse Sistema Nacional de Esportes de maneira que ele garanta
uma estrutura legal e de recursos para que o esporte aconteça nas várias
condições. Quanto mais o Brasil avançar na disseminação da prática de
esportes e na disseminação da cultura ativa, mais a população em geral
vai ganhar em qualidade de vida.
Fonte: Outras Palavras
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