Por Sérgio Bruno Martins
No Rio de Janeiro, ao longo das últimas
semanas, o curso das manifestações tomou um rumo singular. Nenhum
governante de qualquer outra cidade ou estado brasileiro foi colocado
sob fogo tão cerrado quanto o governador Sérgio Cabral Filho. ‘Fora
Cabral’ e ‘vai cair’ são gritos que se tornaram onipresentes nos
protestos da capital carioca e parecem ter renovado o fôlego dos
manifestantes: marchas contra o governador já acontecem dia sim, dia
não, e a mais recente – no dia 17 de julho, no Leblon – reuniu pelo
menos duas mil pessoas. Concomitantemente, pelo menos duas linhas de
argumento vem ponderando sobre a real eficácia desse ímpeto
anticabralino, a saber: 1) que é pura e simples ingenuidade achar que
Cabral pode cair por conta dos protestos; e 2) que sua queda será no
fundo inócua (frente ao problema maior do peemedebismo) e pode inclusive
revelar-se um tiro pela culatra (no caso de uma possível vitória do
ex-governador Anthony Garotinho em 2014). Embora eu discorde de ambas,
acredito que estas são ponderações absolutamente honestas, e que por
isso merecem uma reflexão cuidadosa.
Meu desacordo com o primeiro ponto passa
por uma questão de linguagem. Na raiz da atual onda de protestos, a meu
ver, há um aspecto fundamental da atuação do Movimento Passe Livre: sua
insistência quase que cega (não fosse profundamente lúcida) na demanda
específica e concreta das tarifas. O efeito dessa insistência foi
neutralizar o discurso vazio e a tergiversação, que seriam as respostas
políticas padrão para esse tipo de situação, especialmente se
considerarmos que as demandas do MPL saiam da boca de ‘garotos’. Não é
por menos que as fotos da reunião destes garotos com a Dilma quase que
exalava condescendência – algo como ‘pronto, olha que bonitinho, vocês
estão falando com a presidente feito gente grande’. Pois eles não só
estavam conscientes dessa percepção como souberam revertê-la, causando
assim um desconcerto ainda mais agudo. Daí terem saído da reunião sem
titubear, invertendo a acusação de infantilidade: ‘a presidente não
estava preparada para discutir propostas concretas.’ Da mesma forma, a
atitude aparentemente infantil de outro grito frequente nas passeatas
contra Cabral – ‘olha eu aqui de novo’ – é na verdade uma expressão de
pura insistência diante da surdez do governo e da truculência da
polícia. O que pode soar como um ludismo inconsequente é na verdade um
sinal de compreensão profunda (e coletiva) do que está em jogo, e também
uma estratégia perfeita: entrar em diálogo com o discurso vazio, isso
sim, seria cair numa armadilha de linguagem. Mais eficaz é desarmá-lo
formalmente através de uma insistência cega, que de tola só tem a
aparência. O discurso vazio não tem respostas, ele é só repetição. Ele
se alimenta de ser levado a sério, sem o que sua repetição se desgasta.
A prova disso é que Cabral já não
consegue mais sustentar seus enunciados pela via da impessoalidade da
autoridade pública e democrática, ou melhor, na expectativa de sentido
que se costuma a ter em relação ao que vem desse lugar – essa
expectativa já desapareceu por completo, desgastada pela repetição de
chavões que só revelam a incapacidade do governo de dar qualquer mínima
consistência às suas respostas. Isso o obriga a se escorar na tese do
complô e do bode expiatório (as manifestações seriam orquestradas por
Garotinho), que nada mais são do que figuras de compensação pela perda
da autoridade discursiva. No jargão lacaniano, seria como dizer que
transpareceu aí a inconsistência do grande Outro, levando o governador a
tentar substituí-lo por avatares débeis – o ‘medo Garotinho’ é
invocado, nesse sentido, justamente como um bode expiatório que possa
servir de apoio, como algo contra o qual a fala do governador ainda pode
pretender se colocar e se escorar. Portanto, acreditar prontamente na
ameaça Garotinho é, antes de mais nada, cair no blefe desesperado do
próprio Cabral.
É claro que nada disso impede que
Garotinho seja realmente eleito em 2014. Mas aí vale lembrar outra tese
lacaniana: mesmo que a mulher esteja efetivamente traindo o marido, como
este desconfia, isso não torna seu ciúme menos patológico. Ou seja:
mesmo que aconteça o pior e o Garotinho seja eleito governador – o que,
de toda forma, está muito longe de ser uma certeza – isso não vai
justificar retroativamente o medo dele hoje; pelo menos não quando o
assunto é tentar levar às últimas consequências a investida contra o
atual governo.
E quanto a Cabral e o PMDB? Antes de mais
nada, ingênuo seria acreditar que o peemedebismo vai cair de maduro,
sem algum evento simbólico potencialmente capaz de desencadear seu
desarranjo. Nesse sentido, Cabral pode muito bem se mostrar, pelo menos
em alguma medida, o telhado de vidro trincado do peemedebismo (ressalto
que digo isso sem nenhuma intenção de idealizar o PT). É por isso também
que não vejo a crítica contra Cabral na chave simplesmente da crítica
pessoal a um político. Quer ele tenha ou não essa centralidade, as
manifestações o constroem simbolicamente não como um desvio para longe
do que realmente importa, mas, ao contrário, como um foco de
convergência de tudo o que mais importa: violência da polícia militar,
remoções, loteamento do interesse público, exclusão social sistemática, e
por aí vai. Por fim, se a cabeça do Cabral rolar, quem sabe isso não
significa que rolou a cabeça do boneco de ventríloquo do discurso vazio?
Alguns talvez reclamem que não rolou a do próprio ventríloquo. Mas isso
é perder de vista o que realmente importa: que existem muitos bonecos
por aí, mas que o ventríloquo, na verdade, não existe.
Fonte: Revista Pittacos
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