segunda-feira, 22 de julho de 2013

Existe amor nas revoluções?

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Mobilizações globais sugerem: estamos diante de uma possível mudança de paradigmas. Que isso tem a ver com nossas relações pessoais?

Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver

O corpo humano é sábio. Ele dá sinais a todo momento do seu esgotamento. “É hora de parar e reavaliar”, nos diz aquela dor constante. Nossas mentes inteligentes e astutas vão levando. Até que acende o sinal vermelho e uma simples gripe nos derruba. Mas a nossa resistência é grande e já criamos muitos anticorpos para ir sobrevivendo. Também temos as crenças que nos aliviam e resignam. Superstições vão nos distraindo, enquanto o milagre não chega. Afinal, fomos criados com hábitos que passam de pai pra filho ou de mãe pra filha que grudam feito cola de sapateiro. “Sempre foi assim, não vai mudar”.

Mas, eis que um dia, algo fora do comum acontece e coloca em xeque tudo o que sempre acreditei. Pode ser um câncer, uma poderosa depressão, uma morte inesperada de uma pessoa muito querida. O mundo desaba e tudo que fiz até então é questionado. “Poxa, mas sempre fui tão boa, trabalhadora, cumpridora dos meus deveres, por que isso aconteceu comigo. O que fiz a Deus”. E o impensável, inaceitável pensamento acaba por cravar seus dentes: será que deus existe…

Me parece que o mesmo acontece com o planeta e as suas civilizações, através dos tempos. E estou pensando em milhares e milhares de anos, antes de Cristo e ainda mais do cristianismo. “A história raramente se repete, seja como tragédia, seja como farsa, mas faz lembrar”. Tendo a concordar com Tariq Ali, jornalista e escritor paquistanês, militante de esquerda presente nos importantes levantes da década de 1960. O livro “O Poder das Barricadas” é uma aula de rebeldia. E muito do que li me remete ao que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Parece que mais uma vez chegamos ao esgotamento de um modelo, apesar dos poderes econômicos, políticos, religiosos e midiáticos usarem de todas suas armas para manter tudo como está.

Os movimentos que explodiram em maio de 68 queriam “um mundo novo, sem guerra, opressão ou exploração de classes, baseado na camaradagem e no internacionalismo. A riqueza do Primeiro Mundo, se utilizada de maneira adequada, poderia ajudar a transformar o Terceiro Mundo. Além disso, se um socialismo significativo tivesse êxito no Ocidente, não seriam só a City londrina e o Estado que tremeriam, mas os burocratas de Moscou, igualmente temerosos das mudanças que vinham debaixo”, descreve Tariq Ali. Segundo ele, a esperança vinha da primavera de Praga, que foi sufocada antes que florescesse.

Os lemas da época retornam à cena, através de jovens que não chegaram à zona de conforto ou de não tão jovens que escolheram não estacionar junto à placa “Pare”. Sejamos realistas, peçamos o impossível. Barricadas do desejo. É proibido, proibir. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor. Quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Faça amor, não faça guerra. Estas foram algumas lutas que geraram uma década de utopias.

Apesar de não termos alcançado o socialismo real, e tempos sombrios de ditaduras e neoliberalismo terem vencido, muitos padrões foram derrubados. E a semente, por mais árido que seja o solo, sempre dá um jeito de renascer.

Mas o mundo ao avesso, tão bem explicado por Eduardo Galeano no livro “De pernas pro Ar”, nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo. “Na escola do mundo ao avesso, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contra-escola”.

Mesmo que continue sendo martelado diariamente em nossas mentes, das formas mais veladas, que a mulher é um ser inferior e idiotizado que tem como único objetivo na vida conquistar um bom casamento, que os negros devem continuar escravos por questões de herança genética, que as crianças não têm direito de ser crianças e devem ficar atadas à frente da TV para aceitar desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Mesmo que os pobres o sejam não por culpa da história, mas por obra da biologia, ou seja, levam no sangue o seu destino, e, pior, os cromossomos da inferioridade costumam misturar-se com as perversas sementes do crime. Mesmo que os índios sejam um povo em extinção há 500 anos. Mesmo que a publicidade mande consumir e a economia o proíba. Mesmo que a riqueza seja obra do divino e um direito dos escolhidos. Mesmo que o mundo seja perigoso e sejamos constantemente vigiados por olhos gigantes, sejam de deus ou do grande irmão. Mesmo com todos os riscos, alguns insistem em encarar o medo e romper as correntes.

Não é fácil ir contra um sistema que se utiliza tão bem dos meios de comunicação para se justificar. Dizer que dois mais dois não são quatro, quando tudo prova que são. Mas é necessário. Faz parte do processo de crescimento. Assim como, numa comparação com o micro, muitas vezes, não são sem dor as decisões que tomamos e contrariam as pessoas que amamos. Não fazer o que esperam de nós pode ser só uma reação, mas se tivermos consciência do que somos de verdade, pode tornar-se uma resposta.

Michael Lowy lembra em “O Pensamento de Che Guevara” que o sonho de todos os revolucionários, de Rousseau a Lenin, foi modificar não só o mundo, mas também o homem. “Para eles, a revolução não era apenas uma transformação das estruturas sociais, das instituições, do regime, mas igualmente uma transformação profunda, radical e ‘assombrosa’ dos homens, da sua consciência, de seus costumes, valores e hábitos, das suas relações sociais. Uma revolução não é autêntica se não for capaz de criar esse homem novo.”

As mudanças nas questões da vida privada, do comportamento, da sexualidade e do amor também eram o desafio no trabalho de Alexandra Kolantai, única mulher da direção do partido bolchevique e a primeira mulher do mundo, em 1917, a ocupar o posto de ministro de Estado, como Comissária de Saúde do governo Soviético. Ela insistia que ao contrário da visão predominante, de que só se poderia dedicar a estas questões com a transformação econômica e política assegurada, a gestação dessa nova moral deveria ser, necessariamente, um componente do processo de luta.

O mais interessante ou doloroso ao rever estes escritos é verificar o quanto poderíamos ter avançado enquanto civilização, não fossem as “forças ocultas”. No ensaio “A nova mulher”, de 1918, Kolantai assim defendia a mulher moderna: a autodisciplina, em vez de um sentimentalismo exagerado, a apreciação da liberdade e da independência, em vez da submissão e de falta de personalidade, a afirmação de sua individualidade e não os estúpidos esforços para se identificar com o homem amado, a afirmação do direito a gozar dos prazeres terrenos e não a máscara hipócrita da pureza, e, finalmente, o relegar das aventuras do amor a um lugar secundário na vida. “Diante de nós temos, não uma fêmea, nem uma sombra do homem, mas, sim, uma mulher-individualidade”.

Ao mesmo tempo que Kolantai afirmava que o objetivo último da mulher não deveria ser o casamento, mas a causa, também defendia que a época caracterizava-se pela ausência da arte de amar. “Os homens desconhecem em absoluto a arte de saber conservar relações amorosas, claras, luminosas, leves. Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O amor para os homens da nossa época é uma tragédia que destroça a alma. É preciso tirar a humanidade desse atoleiro: ensinar aos homens a viver horas cheias de beleza, claras, sem grandes cuidados. Amar sempre, amar profundamente, em todos os momentos da nossa vida, amar sempre e cada vez com maior abnegação, é o destino ardente de todo grande coração”.

O amor em si é uma grande força criadora. Acredito que com criatividade, coragem, ousadia e desprendimento vamos cavando os buracos neste gigante chamado “sistema”. Os movimentos revolucionários aceleram a processo. Jovens estão batendo em nossa cara e nos obrigando a puxarmos os fios da memória. É nosso dever não ceder ao canto da sereia. As ocupações de espaços públicos, universidades resgatam o conceito de comunas, vida em comum, coletividade. Visões de mundo sufocadas pela ideologia neoliberal. Na minha modesta opinião, estamos tendo mais uma vez a chance de resgatar o ser humano.

Mas, como dizia o polêmico mestre indiano Osho, o estranho incomoda e irrita a humanidade cega. “A humanidade não é capaz de aceitar o estranho. Ela não é vasta o bastante para absorver o novo, o desconhecido, aquilo que ainda não foi experienciado. Ela se torna irritada, ela se incomoda. Ela quer destruir os seus olhos porque ela é cega e seus olhos fazem-na lembrar de sua cegueira”.



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