Mobilizações globais sugerem: estamos diante de uma possível
mudança de paradigmas. Que isso tem a ver com nossas relações pessoais?
Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver
O corpo humano é sábio. Ele dá sinais a todo momento do seu
esgotamento. “É hora de parar e reavaliar”, nos diz aquela dor
constante. Nossas mentes inteligentes e astutas vão levando. Até que
acende o sinal vermelho e uma simples gripe nos derruba. Mas a nossa
resistência é grande e já criamos muitos anticorpos para ir
sobrevivendo. Também temos as crenças que nos aliviam e resignam.
Superstições vão nos distraindo, enquanto o milagre não chega. Afinal,
fomos criados com hábitos que passam de pai pra filho ou de mãe pra
filha que grudam feito cola de sapateiro. “Sempre foi assim, não vai
mudar”.
Mas, eis que um dia, algo fora do comum acontece e coloca em xeque
tudo o que sempre acreditei. Pode ser um câncer, uma poderosa depressão,
uma morte inesperada de uma pessoa muito querida. O mundo desaba e tudo
que fiz até então é questionado. “Poxa, mas sempre fui tão boa,
trabalhadora, cumpridora dos meus deveres, por que isso aconteceu
comigo. O que fiz a Deus”. E o impensável, inaceitável pensamento acaba
por cravar seus dentes: será que deus existe…
Me parece que o mesmo acontece com o planeta e as suas civilizações,
através dos tempos. E estou pensando em milhares e milhares de anos,
antes de Cristo e ainda mais do cristianismo. “A história raramente se
repete, seja como tragédia, seja como farsa, mas faz lembrar”. Tendo a
concordar com Tariq Ali, jornalista e escritor paquistanês, militante de
esquerda presente nos importantes levantes da década de 1960. O livro
“O Poder das Barricadas” é uma aula de rebeldia. E muito do que li me
remete ao que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Parece que mais uma
vez chegamos ao esgotamento de um modelo, apesar dos poderes econômicos,
políticos, religiosos e midiáticos usarem de todas suas armas para
manter tudo como está.
Os movimentos que explodiram em maio de 68 queriam “um mundo novo,
sem guerra, opressão ou exploração de classes, baseado na camaradagem e
no internacionalismo. A riqueza do Primeiro Mundo, se utilizada de
maneira adequada, poderia ajudar a transformar o Terceiro Mundo. Além
disso, se um socialismo significativo tivesse êxito no Ocidente, não
seriam só a City londrina e o Estado que tremeriam, mas os burocratas de
Moscou, igualmente temerosos das mudanças que vinham debaixo”, descreve
Tariq Ali. Segundo ele, a esperança vinha da primavera de Praga, que
foi sufocada antes que florescesse.
Os lemas da época retornam à cena, através de jovens que não chegaram
à zona de conforto ou de não tão jovens que escolheram não estacionar
junto à placa “Pare”. Sejamos realistas, peçamos o impossível.
Barricadas do desejo. É proibido, proibir. Quanto mais faço a revolução,
mais tenho vontade de fazer amor. Quanto mais faço amor, mais tenho
vontade de fazer a revolução. Faça amor, não faça guerra. Estas foram
algumas lutas que geraram uma década de utopias.
Apesar de não termos alcançado o socialismo real, e tempos sombrios
de ditaduras e neoliberalismo terem vencido, muitos padrões foram
derrubados. E a semente, por mais árido que seja o solo, sempre dá um
jeito de renascer.
Mas o mundo ao avesso, tão bem explicado por Eduardo Galeano no livro
“De pernas pro Ar”, nos ensina a padecer a realidade ao invés de
transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o
futuro ao invés de imaginá-lo. “Na escola do mundo ao avesso, a escola
do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação.
Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha
sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há
escola que não encontre sua contra-escola”.
Mesmo que continue sendo martelado diariamente em nossas mentes, das
formas mais veladas, que a mulher é um ser inferior e idiotizado que tem
como único objetivo na vida conquistar um bom casamento, que os negros
devem continuar escravos por questões de herança genética, que as
crianças não têm direito de ser crianças e devem ficar atadas à frente
da TV para aceitar desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Mesmo
que os pobres o sejam não por culpa da história, mas por obra da
biologia, ou seja, levam no sangue o seu destino, e, pior, os
cromossomos da inferioridade costumam misturar-se com as perversas
sementes do crime. Mesmo que os índios sejam um povo em extinção há 500
anos. Mesmo que a publicidade mande consumir e a economia o proíba.
Mesmo que a riqueza seja obra do divino e um direito dos escolhidos.
Mesmo que o mundo seja perigoso e sejamos constantemente vigiados por
olhos gigantes, sejam de deus ou do grande irmão. Mesmo com todos os
riscos, alguns insistem em encarar o medo e romper as correntes.
Não é fácil ir contra um sistema que se utiliza tão bem dos meios de
comunicação para se justificar. Dizer que dois mais dois não são quatro,
quando tudo prova que são. Mas é necessário. Faz parte do processo de
crescimento. Assim como, numa comparação com o micro, muitas vezes, não
são sem dor as decisões que tomamos e contrariam as pessoas que amamos.
Não fazer o que esperam de nós pode ser só uma reação, mas se tivermos
consciência do que somos de verdade, pode tornar-se uma resposta.
Michael Lowy lembra em “O Pensamento de Che Guevara” que o sonho de
todos os revolucionários, de Rousseau a Lenin, foi modificar não só o
mundo, mas também o homem. “Para eles, a revolução não era apenas uma
transformação das estruturas sociais, das instituições, do regime, mas
igualmente uma transformação profunda, radical e ‘assombrosa’ dos
homens, da sua consciência, de seus costumes, valores e hábitos, das
suas relações sociais. Uma revolução não é autêntica se não for capaz de
criar esse homem novo.”
As mudanças nas questões da vida privada, do comportamento, da
sexualidade e do amor também eram o desafio no trabalho de Alexandra
Kolantai, única mulher da direção do partido bolchevique e a primeira
mulher do mundo, em 1917, a ocupar o posto de ministro de Estado, como
Comissária de Saúde do governo Soviético. Ela insistia que ao contrário
da visão predominante, de que só se poderia dedicar a estas questões com
a transformação econômica e política assegurada, a gestação dessa nova
moral deveria ser, necessariamente, um componente do processo de luta.
O mais interessante ou doloroso ao rever estes escritos é verificar o
quanto poderíamos ter avançado enquanto civilização, não fossem as
“forças ocultas”. No ensaio “A nova mulher”, de 1918, Kolantai assim
defendia a mulher moderna: a autodisciplina, em vez de um
sentimentalismo exagerado, a apreciação da liberdade e da independência,
em vez da submissão e de falta de personalidade, a afirmação de sua
individualidade e não os estúpidos esforços para se identificar com o
homem amado, a afirmação do direito a gozar dos prazeres terrenos e não a
máscara hipócrita da pureza, e, finalmente, o relegar das aventuras do
amor a um lugar secundário na vida. “Diante de nós temos, não uma fêmea,
nem uma sombra do homem, mas, sim, uma mulher-individualidade”.
Ao mesmo tempo que Kolantai afirmava que o objetivo último da mulher
não deveria ser o casamento, mas a causa, também defendia que a época
caracterizava-se pela ausência da arte de amar. “Os homens desconhecem
em absoluto a arte de saber conservar relações amorosas, claras,
luminosas, leves. Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O
amor para os homens da nossa época é uma tragédia que destroça a alma. É
preciso tirar a humanidade desse atoleiro: ensinar aos homens a viver
horas cheias de beleza, claras, sem grandes cuidados. Amar sempre, amar
profundamente, em todos os momentos da nossa vida, amar sempre e cada
vez com maior abnegação, é o destino ardente de todo grande coração”.
O amor em si é uma grande força criadora. Acredito que com
criatividade, coragem, ousadia e desprendimento vamos cavando os buracos
neste gigante chamado “sistema”. Os movimentos revolucionários aceleram
a processo. Jovens estão batendo em nossa cara e nos obrigando a
puxarmos os fios da memória. É nosso dever não ceder ao canto da sereia.
As ocupações de espaços públicos, universidades resgatam o conceito de
comunas, vida em comum, coletividade. Visões de mundo sufocadas pela
ideologia neoliberal. Na minha modesta opinião, estamos tendo mais uma
vez a chance de resgatar o ser humano.
Mas, como dizia o polêmico mestre indiano Osho, o estranho incomoda e
irrita a humanidade cega. “A humanidade não é capaz de aceitar o
estranho. Ela não é vasta o bastante para absorver o novo, o
desconhecido, aquilo que ainda não foi experienciado. Ela se torna
irritada, ela se incomoda. Ela quer destruir os seus olhos porque ela é
cega e seus olhos fazem-na lembrar de sua cegueira”.
Fonte: Outras Palavras
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