Brasília - 2013 |
Por Slavoj Žižek
Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha
como uma daquelas na qual a única resposta a problemas particulares
seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensada da
diferença entre período reformista e período revolucionário: em período
reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para
alguma coisa, é apenas para dar peso às tentativas para mudar alguma
coisa localmente; em período revolucionário, vê-se claramente que nada
melhorará, sem mudança global radical. Nesse sentido puramente formal,
1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciais nos estados
comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra
total, para resolver todos os problemas do dia a dia. Por exemplo, o
problema de dar suficiente comida às pessoas.
Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e
protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise
global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante
intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão
acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do sistema,
mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso.
Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por
que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como
Turquia, Suécia ou Brasil?
Com algum distanciamento, pode-se ver que a revolução de Khomeini em
1979 foi o caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que
aconteceu em país que caminhava a passos largos para uma modernização
pró-ocidente, e era o mais estável aliado do ocidente na região.
Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal
de estado estável, a combinar pujante economia liberal e islamismo
moderado. Pronta para a Europa, um bem-vindo contraste com a Grécia mais
“europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à
autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre viam-se
alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos
armênios; prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos;
chamamentos a uma “grande Turquia” que ressuscitaria a tradição do
Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas). Mas eram
descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o grande
quadro.
E então, explodiram os protestos na praça Taksim. Não há quem não
saiba que os planos para transformar um parque em torno da praça Taksim
no centro de Istambul em shopping-center não foram “o caso”,
naqueles protestos; e que um mal-estar muito mais profundo ganhava
força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de junho no Brasil:
foram desencadeados por um pequeno aumento na tarifa do transporte
público, e prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido revogado.
Também nesse caso, os protestos explodiram num país que – pelo menos
segundo a mídia – estava em pleno boom econômico e com todos os
motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro. Nesse caso, os
protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff,
que se declarou satisfeitíssima com eles.
O que une protestos em todo o mundo – por mais diversos que
sejam, na aparência – é que todos reagem contra diferentes facetas da
globalização capitalista
É crucialmente importante não vermos os protestos turcos meramente
como sociedade civil secular que se levanta contra regime islamista
autoritário, apoiado por uma maioria islamista silenciosa. O que
complica o quadro é o ímpeto anticapitalista dos protestos. Os que
protestam sentem intuitivamente que o fundamentalismo de mercado e o
fundamentalismo islâmico não se excluem mutuamente.
A privatização do espaço público por ação de um governo islamista
mostra que as duas modalidades de fundamentalismo podem trabalhar de
mãos dadas. É sinal claro de que o casamento “por toda a eternidade” de
democracia e capitalismo já caminha para o divórcio.
Também é importante reconhecer que os que protestam não visam a
nenhum objetivo “real” identificável. Os protestos não são, “realmente”,
contra o capitalismo global, nem “realmente” contra o fundamentalismo
religioso, nem “realmente” a favor de liberdades civis e democracia, nem
visam “realmente” qualquer outra coisa específica. O que a maioria dos
que participaram dos protestos “sabem” é de um mal-estar, de um
descontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.
A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com
jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real” conteúdo: é também
luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dos
próprios protestos. É apenas luta contra governo corrupto? É luta contra
governo islâmico autoritário? É luta contra a privatização do espaço
público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondida dependerá
o resultado de um processo político em andamento.
Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o
Oriente Médio, muitos insistiram que não fossem tratados como instâncias
de um único movimento global. Em vez disso, argumentavam, haveria uma
resposta específica para cada situação específica. No Egito, os que
protestavam queriam o que em outros países era alvo das críticas do
movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre países
muçulmanos, haveria diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito
seria contra um regime autoritário e corrupto aliado do ocidente; a
Revolução Verde no Irã, que começou em 2009, seria contra o islamismo
autoritário. É fácil ver o quanto essa particularização dos protestos
serve bem aos defensores do status quo: não há nenhuma ameaça direta à ordem global como tal. Só uma série de problemas locais separados…
O capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países
de diferentes modos. O que une todos os protestos, por mais
multifacetados que sejam, é que todos reagem contra diferentes facetas
da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global é
hoje expandir o mercado, invadir e cercar o espaço público, reduzir os
serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais
firmemente um poder político autoritário. Nesse contexto, os gregos
protestam contra o governo do capital financeiro internacional e contra
seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz de
prover os serviços sociais básicos. Nesse contexto, os turcos protestam
contra a comercialização do espaço público e contra o autoritarismo
religioso. E os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas
potências ocidentais. E os iranianos protestam contra a corrupção e o
fundamentalismo religioso. E assim por diante.
Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos
lidam com uma específica combinação de pelo menos dois problemas, um
econômico (da corrupção à ineficiência do próprio capitalismo); o outro,
político-ideológico (da demanda por democracia à demanda pelo fim da
democracia convencional multipartidária). O mesmo se aplica ao movimento
Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes confusas), o movimento
manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com o
capitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro
corrupto ou corrupções locais; segundo, a consciência de que a forma
institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios para
combater os excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso
reinventar a democracia.
A causa subjacente dos protestos ser o capitalismo global não
significa que a única solução seja “derrubar” o capitalismo. Nem é
viável seguir a alternativa pragmática, que implica lidar com problemas
individuais enquanto se espera por transformação radical. Essa ideia
ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente
contraditório e inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas
com os EUA protegerem seus próprios agronegócios e agronegociantes;
pregar a democracia anda de mãos dadas com apoiar o governo da Arábia
Saudita.
Essa inconsistência abre um espaço para a intervenção política: onde o
capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, ali há uma
oportunidade para insistir em que ele obedeça àquelas regras. Exigir
coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos
quais o sistema não pode pagar para ser coerente e consistente é
pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas
específicas as quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas,
ferem o coração da ideologia hegemônica e implicam mudança muito mais
radical. Essas demandas, por mais que sejam viáveis e legítimas, são, de
fato, impossíveis. Caso exemplar é a proposta de Obama para prover
assistência pública universal à saúde. Por isso as reações foram tão
violentas.
Um movimento político começa com uma ideia, algo por que lutar, mas,
no tempo, a ideia passa por transformação profunda – não apenas alguma
acomodação tática, mas uma redefinição essencial –, porque a própria
ideia passa a ser parte do processo: torna-se sobredeterminada.* Digamos
que uma revolta comece com uma demanda por justiça, talvez sob a forma
de demanda pela rejeição de uma determinada lei. Depois de o povo estar
profundamente engajado na revolta, ele percebe que será preciso muito
mais do que a demanda inicial, para que haja verdadeira justiça. O
problema então é definir, precisamente, em que consiste esse “muito
mais”.
A perspectiva liberal-pragmática entende que os problemas podem ser
resolvidos gradualmente, um a um: “Há gente morrendo agora em Rwanda,
então esqueçam a luta anti-imperialista e vamos impedir o massacre”. Ou:
“Temos de combater a pobreza e o racismo já, aqui e agora, não esperar
pelo colapso da ordem capitalista global”. John Caputo argumenta
exatamente assim em After the Death of God (2007):
Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema-esquerda
nos EUA fossem capazes de reformar o sistema oferecendo assistência
universal à saúde, redistribuindo efetivamente a riqueza mais
equitativamente com um sistema tributário [orig. Internal Revenue Code (IRC)]
redefinido, restringindo o financiamento privado de campanhas
eleitorais, autorizando o voto universal, para todos, tratando com
humanidade os trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política
externa multilateralista que integrasse o poder dos EUA dentro da
comunidade internacional etc. Ou seja, intervindo sobre o capitalismo
mediante reformas profundas, de longo alcance… Se depois de fazer tudo
isso, Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado Capitalismo a
nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal monstro com um
bocejo.
Não se trata de “derrubar” o capitalismo. Mas de construir
lógicas
de uma sociedade que vá além dele. Isso inclui novas formas de
democracia
O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo
isso dentro do capitalismo, por que não ficar aí mesmo? O problema é a
premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do
capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os emperramentos e mau
funcionamento do capitalismo, que Caputo listou, não forem meras
perturbações contingentes, mas necessários por estrutura? E se o sonho
de Caputo é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem
os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria
cara?
Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela combinação de
demandas sobrepostas, e é aí que está a sua força: lutam por democracia
(“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o
sexismo, especialmente quando dirigidos contra imigrantes e refugiados;
contra a corrupção na política e nos negócios (poluição industrial do
meio ambiente etc.); pelo estado de bem-estar contra o neoliberalismo; e
por novas formas de democracia que avancem além dos rituais
multipartidários. Questionam também o sistema capitalista global como
tal, e tentam manter viva a ideia de uma sociedade que avance além do
capitalismo.
Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que
realmente interessa é abolir o capitalismo liberal-parlamentar; todas as
demais lutas são secundárias”), mas, também, o falso gradualismo (“no
momentos temos de lutar contra a ditadura militar e por democracia
básica, todos os sonhos de socialismo devem ser, agora, postos de
lado”).
Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a distinção maoista
entre antagonismo principal e antagonismos secundários, entre os que
mais interessam no fim e os que dominam hoje. Há situações nas quais
insistir no antagonismo principal significa perder a oportunidade de
acertar golpe significativo, no curso da luta.
Só uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da
sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando se embarca numa
luta específica, a pergunta chave é: como nosso engajamento ou
desengajamento nessa luta afeta outras lutas?
Praça Tahir - Egito / 2011 |
A regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático
começa – como no Oriente Médio em 2011 – é fácil mobilizar grandes
multidões com slogans (por democracia, contra a corrupção etc.). Mas
muito rapidamente temos de enfrentar escolhas muito mais difíceis.
Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o objetivo inicial, nos damos
conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, a
humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob
novo disfarce. Nesse momento somos forçados a ver que havia furos no
próprio objetivo inicial. Pode implicar que se chegue a ver que a
democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou que se pode exigir
muito mais do que apenas a mera democracia política: que a vida social e
econômica tem de ser também democratizada.
Em resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só
atingia um nobre princípio (a liberdade democrática) é afinal percebido
como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o
princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande
passo em qualquer educação política.
Representantes da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal
para impedir que cheguemos a essa conclusão radical. Dizem-nos que a
liberdade democrática implica suas próprias responsabilidades, que tem
um preço, que é sinal de imaturidade esperar demais da democracia. Numa
sociedade livre, dizem eles, devemos agir como capitalistas e investir
em nossa própria vida: se fracassarmos, se não conseguirmos fazer os
necessários sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a
culpa é nossa.
Istambul - Maio de 2013 |
Em sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma
estratégia de controle de danos em sua política externa, recanalizando
os levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis:
na África do Sul, depois do apartheid; nas Filipinas, depois da queda
de Marcos; na Indonésia, depois de Suharto etc. É nesse ponto que a
política propriamente dita começa: a questão é como empurrar ainda mais
adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como
dar o passo seguinte, sem sucumbir à tentação “totalitária”; como
avançar além de Mandela, sem virar Mugabe.
O que significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países
vizinhos, Grécia e Turquia. À primeira vista, talvez pareçam
completamente diferentes: Grécia, presa na armadilha da ruinosa política
de austeridade; Turquia em pleno boom econômico e emergindo
como nova superpotência regional. Mas e se cada Turquia contiver sua
própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua Elegias Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’ [1942]),
A vila de Hollywood foi planejada segundo a idéia
De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,
Chegaram à conclusão de que Deus
Embora precisando de céu e inferno, não precisava
Planejar dois estabelecimentos, mas
Só um: o paraíso. Que esse,
para os pobres e infortunados,
funciona
como inferno.[1]
Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam-se ao Qatar ou Dubai, playgrounds para
os ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes em estado
de semiescravidão, ou escravidão. Exame mais detido revela semelhanças
entre Turquia e Grécia: privatizações, o fechamento do espaço público, o
desmonte dos serviços sociais, a ascensão de políticos autoritários.
Num plano elementar, os que protestam na Grécia e os que protestam na
Turquia estão engajados na mesma luta. O melhor caminho talvez seja
coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações “patrióticas”, deixar
para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços de
solidariedade. O futuro dos protestos talvez dependa disso.
* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política,
Marx escreveu (no seu pior modo evolucional) que a humanidade só se
propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos a ganga
dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe-se
problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo cujo
desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é
redefinida?
[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler [NTs].
Slavoj Žižek é um filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da
European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia
da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias
universidades norte-americanas, entre as quais a Universidade de
Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e
a Universidade de Michigan. Veja seus livros em nossa loja virtual.
Fonte: Outras Palavras
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