Por Enrique Chiappa
Todos sabemos disso, entretanto, parece inverossímil que aqui no
Brasil tenha existido nos anos de gerenciamento militar um estrangeiro
de traços nórdicos, radicado no país, grande empresário, frequentador
das festas da ‘alta sociedade’, que habitualmente descesse aos porões
da ditadura para se comprazer com o martírio de pessoas indefesas e
mesmo com suas próprias mãos praticar a tortura em presos políticos.
Para quem nunca ouviu falar deste personagem obscuro da história brasileira, o documentário Cidadão Boilesen é
surpreendente. Para quem o conhece só por alto, terá uma análise
completa de Henning Albert Boilesen, desde sua humilde infância e
juventude na Dinamarca, a chegada ao Brasil com rápida ascensão à nata
do grande empresariado, seu apoio econômico e logístico ao regime
militar fascista, especialmente nas suas ações mais horrendas, até seu
justiçamento por grupos da resistência armada. O diretor do
documentário, Chaim Litewski, pesquisou o caso durante
quinze anos, colhendo centenas de depoimentos de quem o conheceu na
escola primária até colegas empresários, de amigos e familiares até
inimigos, das suas vítimas e inclusive de quem participou da sua
execução.
É uma característica deste documentário dar o mesmo
peso e espaço para os diferentes depoimentos (muitos deles conflitantes
entre si) sem tomar partido, mas proporcionando os elementos para que o
espectador tire suas próprias conclusões. E num aspecto, todos
entrevistados coincidem: o golpe de 1964, o AI5 e a implementação do
terrorismo de Estado foram frutos de um pacto entre as cúpulas
militares e as classes dominantes locais impulsionados pelo
imperialismo ianque através de sua embaixada e outras agências manejadas
pela Cia. O filme, ao mesmo tempo em que disseca a vida do personagem,
nos faz mergulhar em uma época que não pode ser esquecida nem apagada.
Boilesen com o ex-ministro do regime militar Delfim Netto
Com a missão de exterminar qualquer oposição ao regime fascista, o
alto comando do Exército Brasileiro montou em São Paulo, em 1969, a
Operação Bandeirante (Oban), como grupo paramilitar comandado pelo então
major Brilhante Ustra e seletas equipes da mesma arma, secundados
pelos mais truculentos policiais recrutados na PM e na Polícia Civil.
Estes últimos trouxeram toda a experiência e os métodos dos esquadrões
da morte.
Empresários da Fiesp, empreiteiras, banqueiros, etc.,
coordenados por Boilesen, passaram a cooperar com a Oban contribuindo
com grandes somas de dinheiro e apoio político. Algumas empresas foram
além: o grupo Folha (jornal Folha de São Paulo) passou a emprestar suas
viaturas para os operativos paramilitares. O grupo Ultra,
poderosíssimo na época, também. Em diversas oportunidades militantes
dos grupos da resistência armada perceberam a frequência de caminhões
da Ultragaz nas áreas dos cercos contra os guerrilheiros montados pela
repressão. Como Boilesen era o presidente do grupo Ultragaz,
coordenador das "caixinhas", e tinha sido visto por sobreviventes
torturando na Oban, os grupos ALN (Ação Libertadora Nacional) e MRT
(Movimento Revolucionário Tiradentes) decidiram por seu justiçamento em
abril de 1971. Tanto pela sua participação nesses fatos como para dar
exemplo aos outros empresários que se sentiam impunes financiando e
apoiando a repressão.
O financiador da repressão foi justiçado em abril de 1971
O filme também traça um perfil psicológico de Boilesen. Aparenta ter
sido um homem de várias personalidades. Simpatia, liderança,
inteligência, vida boêmia cercada de belas mulheres. Mas na Dinamarca,
Litewski encontra algo curioso na sua biografia. A um professor da
escola primária chamou muito a atenção – tanto e assim que destacou no
boletim – que o jovem Boilesen demonstrou satisfação ao ver outros
alunos sendo castigados. Teria na sua mente certo sadismo latente que
acabou aflorando nas masmorras do regime militar?
O agora
coronel reformado Brilhante Ustra disse que Boilesen não frequentava a
sede da Oban, mas outros agentes do órgão asseguram que ia, torturava e
que o fazia com gosto. Presos políticos coincidem nesta informação.
O triste é que se este homem tivesse dado rédea solta ao seu lado
sádico na sua terra natal, teria sido preso ou confinado em um
hospício, mas, ao contrário, aqui no Brasil foi homenageado, dando seu
nome a uma rua do bairro Jaguaré em São Paulo.
Outro que dá
depoimento é Fernando Henrique Cardoso, mas não fala de Boilesen. Ele
faz uma análise daquele momento histórico. Condena e demonstra ter
conhecimento de toda a mecânica da Operação Bandeirante. Assim, resulta
curioso o fato de que, tendo ocupado o cargo de "presidente" do Brasil,
e sabendo que os grupos empresariais ainda dominantes promoveram a
tortura e o terror, tenha conseguido conviver tão harmoniosamente com
eles.
Com bons recursos técnicos de edição e som, recorrendo a
sequências de filmes que retratam diversas épocas, contando com artigos
de jornal e documentos secretos desclassificados, ademais dos
depoimentos, o filme é uma animada aula de História. História que
permanece viva, latente, como uma ferida aberta que só poderá
cicatrizar com a devida apuração dos fatos e castigo a todos aqueles
que exerceram a tortura ou que de alguma maneira promoveram a
repressão.
Fonte: A Nova Democracia
Link para download via torrent do documentário Cidadão Boilesen
Para assistir online:
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