quinta-feira, 28 de março de 2013

Eduardo Paes molecular ou Por outro norte da cidade!

O Governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes em momento descontraído



Por Bruno Cava, blogueiro e militante da UniNômade

Em 1º de março, apesar da greve dos rodoviários e do feriado da cidade, vários coletivos estiveram presentes no campus da Praia Vermelha da UFRJ, no Rio. Chamada pelo coletivo Norte Comum e pela rede Universidade Nômade, a reunião contou com participantes dos grupos Favela não se Cala, Justiça Global, Fórum Cidades Invisíveis, i-Motirõ, Centro de Teatro do Oprimido, Cursinhos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes, Movimento Unido dos Camelôs, mandatos dos vereadores Renato Cinco e Reimont Otoni, ex-defensores e estagiários do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, entre outros. A tônica do encontro foi começar uma conversa e delinear coordenadas políticas para a atuação conjunta, nos moldes de um fórum transversal ou agregado de grupos autônomos, cujo primeiro evento se pretende realizar na zona norte da cidade, em abril ou maio. Os mandatos de luta no Rio de Janeiro estão convidados a participar, interessados em se deixar atravessar pelas mobilizações e movimentos.

Com a reeleição de Eduardo Paes, numa coalizão que engole a facção carioca do PT, o momento é de reorganização da pauta de movimentos e coletivos. Ante o esgotamento da esquerda mais tradicional nos partidos, repensar a organização dos movimentos e transformações que já existem e já exercem seus efeitos de resistência pela cidade. Vive-se no Rio um momento de perplexidade, em que ações francamente intoleráveis são justificadas a título de “interesse coletivo” ou até “socialismo” (o exemplo máximo disso foi o discurso do ex-secretário de habitação Jorge Bittar).

O poder constituído perdeu o pudor, oficializando políticas de higienização, gentrificação e acumulação dos ganhos. O modo “Banco Imobiliário” de governar se tornou abertamente discurso oficial. A cidade-empresa e a cidade-jazida continuam a ser construídas diariamente mediante operações e ações policiais de “choque de ordem”, “pacificação” e “remoção democrática”. Sem falar na remoção branca, que vai removendo escalonadamente os cidadãos a bairros mais distantes das praias, por causa da supervalorização dos aluguéis e aumento do custo de vida dos bairros “pacificados” e “glamourizados”.

Como comentou um militante do movimento Favela Não se Cala, o desafio agora é lutar no terreno da “pós-pacificação”. No momento em que as UPP se estabilizaram e até voltaram a negociar com antigos grupos de poder e violência que monopolizavam os territórios dos pobres. Momento também de enraizamento das redes de governança, com a formalização dos serviços e a exploração direta por meio da milícia — exemplo máximo da hibridação entre estado e mercado do capitalismo.

Quem olha a televisão, lê os jornalões ou analisa as estatísticas, não pode deixar de ter a impressão de que o Rio vive uma tempo maravilhoso. A cidade, finalmente, teria se redimido da perda do status de capital federal, deixando para trás 50 anos de um noticiário recheado de insegurança, corrupção e decadência. Vive-se o discurso do novo Rio, novamente elegante, terra de gente bonita e cartão-postal do Brasil Maior. O Rio é o portão de entrada para um país formado pela “nova classe média”, e uma nova safra de governantes-executivos, aliados a um empresariado empreendedor, um funcionalismo público renovado e uma creative class da classe-média branca e ilustrada, cujo símbolo máximo (e desavergonhado) é o recém-inaugurado Museu de Arte do Rio (MAR).

Como o governo Eduardo Paes (PMDB/PT) conseguiu construir tamanho consenso, representado em cores tão ufanistas pelas mídias “oficiais”? A ponto de obter 65, 70 ou até 80% dos votos em bairros pobres da cidade? Onde está o efeito de escala desse governo, sua lógica molecular, seu funcionamento concreto? Porque os velhos aparelhos de violência estatal, racismo e medo persistem.

Uma resposta rápida aponta para o esgotamento da própria política. A cidade, ainda que tradicionalmente insubmissa, estaria desmobilizada. Num cenário nacional de crescimento econômico e novas oportunidades, as pessoas estariam mais preocupadas em adaptar-se, ganhar dinheiro, “subir na vida”, do que na mobilização política. Esse argumento conduz invariavelmente à ideia que Eduardo Paes foi eleito no primeiro turno graças à desmobilização ou “alienação”. As pessoas votaram porque estão mal-informadas. Um argumento próximo da velha (e reacionária) tese do clientelismo populista (de Sérgio Buarque de Hollanda a Roberto DaMatta), em que os mais pobres, despidos de profunda espiritualidade, votariam guiados pelo estômago, — em vez de usar a sóbria e desinteressada razão em prol do interesse geral, qualidade exclusiva da classe média branca e ilustrada.

É a mesma tese disfarçada pela esquerda quando argumenta que falta “consciência de classe”, e que portanto o voto em Freixo ou no PSOL se concentraria mais na Zona Sul devido ao maior número de pessoas conscientes e interessadas na política. Isto é, noutros termos, devido à existência de uma forte classe média branca e ilustrada.

Outra resposta consiste em apontar a falência da democracia representativa, que desce aliás ao âmago do próprio conceito de representação, e que inclusive justificaria a proporção crescente de abstenções e votos nulos. Muitas pessoas estão desencantadas com as opções disponíveis no mercado eleitoral. Em vez de “alienadas” ou desmobilizadas, tem-se aí um ato de recusa. Dirigem seus esforços para outro lugar, porque desse mato não sai cachorro. Esse discurso repercute a tendência que vem das resistências no hemisfério norte: 15M, #nolesvote, movimento Occupy; ou nem tão do norte assim: que se vayan todos!, slogan argentino de 2001.

Paradoxalmente, o discurso mais abertamente antirrepresentativo encontra um ponto de toque com forças à direita que se apresentam como “apartidárias”, e mesmo acima de uma política pautada pela luta de classe. Esse estranho ponto de encontro se dá ao redor do discurso do vazio da política. Quer dizer, viveríamos a era do vazio da política, a debaclê das ideologias. Os âmbitos e instituições tradicionalmente perpassadas pela política estariam “despolitizadas”, corrompidas pelo interesse privado erigido à razão pública. No Brasil, um realinhamento eleitoral teria levado as forças partidárias a achatar-se essencialmente nas mesmas pautas e modos de existir, reduzindo a quase zero a diferença entre os programas.

Esse discurso, em tons indignados ou melancólicos, discurso de “fim da história”, ainda que seja à esquerda, costuma distribuir a culpa pela situação às próprias pessoas, além de criticar a corrupção do estado (e não o estado como a corrupção). As pessoas — e aqui existe um corte de classe — estariam “despolitizadas” ou “alienadas”, seduzidas pelo consumismo e a ilusão de ascensão social, domesticadas e imbecilizadas pela comunicação de massa. Trazida para a realidade carioca, essa linha de interpretação teima em culpar as pessoas, especialmente a maioria pobre, pela reeleição de Eduardo Paes em 2012. Não sabem o que fazem, ao votar em Paes.

Em artigo de avaliação do último pleito, Alexandre Mendes, da UniNômade, mostrou que o resultado não admite conclusões tão apressadas.

Nessa linha que assume o “vazio da política”, sua corrupção ou sua obsolescência, têm aparecido frentes que se propõem a renovar a política. A reinventá-la noutras formas, com novas maneiras de organizar a militância e novas concepções de representação e expressão. A ênfase no “novo” é fundamental. Daí, se reorganizaram alguns grupos existentes para lançar projetos com o apelo da novidade, tais como a Rede de Marina Silva, o Partido do Futuro, na Espanha (elogiado por Manuel Castells) e o 5Stelle encabeçado por Beppe Grillo, na Itália. Em comum, esses grupos canalizam uma insatisfação difusa com a política-que-está-aí e evitam se definir segundo o espectro clássico entre esquerda e direita. Isto significa, em parte, uma recusa em entrar nos esquemas do velho, para reforçar que, no mundo do século 21, é preciso reinventar a própria definição do que seja posicionamento político.

Isto traz várias complicações e armadilhas. Na resposta do “vazio da política”, os grupos parecem atribuir-se a responsabilidade histórica, quase missionária, de preencher-lhe. Se a política é velha e a militância ultrapassada, eles se põem no cenário como os arautos de uma nova política e um  ativismo mais “contemporâneo”, onde não haveria lugar, por exemplo, para os fantasmas da “luta de classe” ou do “comunismo”. Menos que uma recusa às utopias do século 20, tem-se aí uma recusa do próprio antagonismo como motor da história. São teóricos e ativistas “elevados”, acima dessa era rancorosa em que as pessoas lutavam com ódios ideológicos.

Os adjetivos “complicado” e “problemático” se aplicam perfeitamente a essas tendências, mas o destino político delas, guardada a reserva crítica, é preciso reconhecer ainda estar em aberto. Sem condescendência, mas também despojado de denúncia apriorística. Por sua vez, a rejeição do fetiche do novo não pode significar a apologia do velho, do espectro político-partidário existente, na quase totalidade engessado e capturado.

Outra possibilidade, talvez mais interessante, seja não cair nessa outra dicotomia que no lugar de opor esquerda e direita, opõe a novidade ao obsoleto, em conotação teleológica onde o tom moral nunca está distante. Além dessa linha, talvez seja caso de não afirmar algum “vazio da política”. Os pobres não estão despolitizados. Sua mobilização já acontece, só não conseguimos enxergá-la. A leitora de Foucault sabe que não existe vazio de poder. A política nunca dorme. O que sucede amiúde entre os meios de esquerda é não enxergar as coordenadas e os planos de composição em que essa política acontece. Falta generosidade no olhar e na construção das relações. E falta pesquisa militante junto de movimentos e forças vivas do trabalho, na conexão entre política e produção, entre luta e trabalho, o que os operaístas italianos chamariam de “composição de classe”.

Nesse sentido, volta a pergunta, onde está a política que reconduz Eduardo Paes à prefeitura com mais de 60% dos votos válidos, chegando a 70, 75 ou mesmo 80% nos bairros pobres? Quais são as formas, os métodos, as conexões político-produtivas que determinam os consensos de governança carioca? Como se fabrica um consenso que não tem qualquer vergonha em triturar pobres e negros, sob o aplauso unânime da grande imprensa? Em explorar o desenvolvimento da cidade e dirigi-lo abertamente à ainda mais desigualdade territorial e social, racismo e concentração dos ganhos? Denunciar o intolerável e a miséria do poder é fácil e até redundante. Difícil é explicar porque acontece. Interpretar para transformar. Explicar para se implicar melhor na constituição política do presente, e desse plano de composição tirar as linhas de corte, fuga e recomposição de classe.

O “preenchimento” talvez esteja acontecendo em múltiplos níveis, transescalarmente pelos muitos territórios, bairros e zonas do Rio de Janeiro. Dê-se por redes enraizadas que conseguem mobilizar, de uma maneira ou de outra, a força produtiva dos pobres. Isso passa por uma cauda longa de operadores estrategicamente posicionados, mais ou menos conscientes de sua posição na governança da cidade, dentro ou fora do “estado oficial”.

Agentes, articuladores, animadores em distintos graus de envolvimento com obras públicas, instituições locais, órgãos da prefeitura, redes varejistas, de comércio informal, esportes, cultura, políticas sociais, transporte público, equipamentos urbanos culturais, instâncias de controle territorial, lideranças comunitárias, igrejas, associações de moradores, milícia, tráfico, lavagem de dinheiro e longo etcétera — a equação é complexa. É a cidade policêntrica e sua rede que articula verticalidades e horizontalidades cujas
fronteiras são difíceis de precisar, mutantes, maleáveis. Tudo isso é também Eduardo Paes. Um Eduardo Paes molecular. Ou melhor, uma base material capilarizada sobre o que a governabilidade pôde construir e sustentar algo como o governo Eduardo Paes.

Nesse sentido, não basta denunciar um governo que sustenta o Grande Negócio (imobiliário, empreiteiro, midiático-esportivo, telefonia, transportes, lixo, bem como as finanças que estão em tudo) por baixo da violência e do intolerável cotidianos. Mas compreendê-los como produto de fluxos de poder, dos escoamentos de dinheiro e da colonização da subjetividade, fenômenos que se espraiam pela metrópole. A violência racista contra pobre deriva dessa estrutura produtiva. Uma estrutura que, na outra ponta, produz uma sensação, uma estética e um discurso de sustentação onde as pessoas podem se segurar e ser de alguma forma produtivas, produtivas como não eram, e a partir daí construir o seu futuro, e comprazer-se com a percepção, ainda que incipiente, de toda sorte reconfortante e motivadora, que podem “subir na vida”. O caso é compreender como o enunciado “subir na vida” está imbricado com uma ética do trabalho, o que envolve as igrejas neopentecostais, a televisão, a publicidade, mas também arranjos familiares e algum cooperativismo local.

Em vez de simplesmente condenar esse “subir na vida”, que mais do que ilusão é um fato vivido e sentido na pele pelos pobres, perceber como por dentro disso também há elementos produtivos, essencialmente políticos, ligados a um aumento de demandas, expectativas, e mesmo uma autopercepção de capacidades que, até pouco tempo atrás, não havia. Essa autopercepção é reapropriável como luta. A mobilização produtiva dos pobres, em grande escala, — algo muito menos perceptível há 15 ou 20 anos no Rio de Janeiro, — já implica formas de “consciência de classe” e uma politização que muitas vezes passa despercebida segundo os esquemas da esquerda brasileira. Condenar o “subir na vida” tem sido o diagnóstico geral, como se a classe média — extrato social mediador e legitimador de qualquer época capitalista — não se organizasse subjetivamente ao redor disso.

O verdadeiro problema talvez consista em entender como esse mesmo “subir na vida” termine apropriado para sustentar a governança desigual da cidade, atuando no sentido de manter a pirâmide do Grande Negócio e seus poucos e grandes proprietários. Sem condenar quem enuncia querer “subir na vida”, mas lhe distinguir os vários polos internos do enunciado, cujo sentido, ao fim e ao cabo, está em disputa. É a própria disputa no plano da subjetividade. Nem amor ad lazarus à moda narodnik, nem racismo de classe à direita ou à esquerda.

O caso possivelmente seja compreender, igualmente, como as políticas sociais e culturais — ainda modestas, mas não desprezíveis — aprofundadas com o governo Lula, também entram como dupla variável da equação. Dupla variável, pois mobiliza produtivamente (logo, politicamente), ao mesmpo tempo em que explora essa mobilização. Acontece com duplo polo: apropriação pelo poder, reapropriação pela “consciência de classe”, ou melhor, pela organização de redes territoriais. E tentar fazer um esforço interpretativo para entender como essas políticas podem ser (e no fundo já estão) tensionadas para a reapropriação das estruturas e mediações com que funciona o governo Eduardo Paes, e também o estadual e o federal — no sentido, por exemplo, da renda universal incondicionada, ou de conselhos territoriais articulados além da lógica militarizada e “pacificadora”.

Não é caso, de todo jeito, de simplesmente denunciar os aspectos negativos e tendencialmente de fechamento das políticas sociais e culturais, nem do “subir na vida” na base da produção de subjetividade que igrejas, governos e máfias também colonizam. Essa é uma tarefa fácil e, no final das contas, inútil. O trabalho exclusivo do negativo serve, no máximo, para alimentar o ciclo 7-24 das redes sociais, num transe de indignação e denúncia com soma final zero. A negatividade só exerce poder apoiada sobre uma positividade maior e mais interessante no presente.

O que fazer, então, não terá resposta num artigo ou numa reunião. Depende da copesquisa das coordenadas e condições dessa produção além das mediações e estruturas. Uma copesquisa que as redes de resistência-produção já fazem no dia a dia, ainda que de forma pouco integrada. O que fazer — a pergunta leninista que sempre volta — implica situar-se dentro da franja de subjetividade, e ver e enxergar e vivenciar como fugir das armadilhas, dos polos negativos das equações, e contribuir para vazar o excedente de luta, indignação e insatisfação implicado nas subjetividades. Esse trabalho não prescinde de uma análise da representação, das eleições, das instituições estatais, embora seja fundamental não se render ao estado como ponto de vista (mantendo todavia um ponto de vista sobre o estado).

Esse desafio para interpretar e transformar a constituição política do presente não passa por postular vazios para se oferecer como mais pleno. O salvacionismo dos pures et dures simplesmente esbarra na realidade, que não funciona segundo a lógica velho x novo, puro x impuro, verdade x mentira, limpo x corrupto. É preciso reconhecer que os espaços e tempos estão inteiramente preenchidos, que a política esteja pulsando por todos os lados, para um lado e para o outro, e que portanto seja preciso ocupar esses espaços-tempos. Posicionar-se na mobilização produtiva e, sem negá-la com ranços, derivar seus sentidos. Ocupá-los não para simplesmente disputar espaço, mas para transformá-lo, revolucionando a própria distribuição desigual dos espaços e tempos da cidade.

É um desafio de reapropriação da cidade desde baixo, desde as bases materiais de sua produção de vida e morte, desde as forças e os corpos que fazem o Rio de Janeiro. Um trabalho de remobilização que não prescinde de uma política forte da composição, para agregar e multiplicar os sentidos e afetos do outro Rio, do outro Rio que já subsiste nas entrelinhas deste. A nova política não é propriamente nova, mas sim recomposta. O trabalho da multidão está em copesquisar e recompor essa outra cidade,  linda e insubmissa, tanto vexada nos últimos tempos com a governança vigente, suas alianças mafiosas e suas redes de saqueio.


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