Por Bruno Cava, blogueiro e militante da UniNômade
Em 1º de março, apesar da greve dos rodoviários e do feriado da
cidade, vários coletivos estiveram presentes no campus da Praia Vermelha
da UFRJ, no Rio. Chamada pelo coletivo Norte Comum e pela rede
Universidade Nômade, a reunião contou com participantes dos grupos
Favela não se Cala, Justiça Global, Fórum Cidades Invisíveis, i-Motirõ,
Centro de Teatro do Oprimido, Cursinhos Pré-Vestibulares para Negros e
Carentes, Movimento Unido dos Camelôs, mandatos dos vereadores Renato
Cinco e Reimont Otoni, ex-defensores e estagiários do Núcleo de Terras e
Habitação da Defensoria Pública, entre outros. A tônica do encontro foi
começar uma conversa e delinear coordenadas políticas para a atuação
conjunta, nos moldes de um fórum transversal ou agregado de grupos
autônomos, cujo primeiro evento se pretende realizar na zona norte da
cidade, em abril ou maio. Os mandatos de luta no Rio de Janeiro estão
convidados a participar, interessados em se deixar atravessar pelas
mobilizações e movimentos.
Com a reeleição de Eduardo Paes, numa coalizão que engole a facção
carioca do PT, o momento é de reorganização da pauta de movimentos e
coletivos. Ante o esgotamento da esquerda mais tradicional nos partidos,
repensar a organização dos movimentos e transformações que já existem e
já exercem seus efeitos de resistência pela cidade. Vive-se no Rio um
momento de perplexidade, em que ações francamente intoleráveis são
justificadas a título de “interesse coletivo” ou até “socialismo” (o
exemplo máximo disso foi o discurso do ex-secretário de habitação Jorge
Bittar).
O poder constituído perdeu o pudor, oficializando políticas de
higienização, gentrificação e acumulação dos ganhos. O modo “Banco
Imobiliário” de governar se tornou abertamente discurso oficial. A
cidade-empresa e a cidade-jazida continuam a ser construídas diariamente
mediante operações e ações policiais de “choque de ordem”,
“pacificação” e “remoção democrática”. Sem falar na remoção branca, que
vai removendo escalonadamente os cidadãos a bairros mais distantes das
praias, por causa da supervalorização dos aluguéis e aumento do custo de
vida dos bairros “pacificados” e “glamourizados”.
Como comentou um militante do movimento Favela Não se Cala, o desafio
agora é lutar no terreno da “pós-pacificação”. No momento em que as UPP
se estabilizaram e até voltaram a negociar com antigos grupos de poder e
violência que monopolizavam os territórios dos pobres. Momento também
de enraizamento das redes de governança, com a formalização dos serviços
e a exploração direta por meio da milícia — exemplo máximo da
hibridação entre estado e mercado do capitalismo.
Quem olha a televisão, lê os jornalões ou analisa as estatísticas,
não pode deixar de ter a impressão de que o Rio vive uma tempo
maravilhoso. A cidade, finalmente, teria se redimido da perda do status
de capital federal, deixando para trás 50 anos de um noticiário recheado
de insegurança, corrupção e decadência. Vive-se o discurso do novo Rio,
novamente elegante, terra de gente bonita e cartão-postal do Brasil
Maior. O Rio é o portão de entrada para um país formado pela “nova
classe média”, e uma nova safra de governantes-executivos, aliados a um
empresariado empreendedor, um funcionalismo público renovado e uma creative class da classe-média branca e ilustrada, cujo símbolo máximo (e desavergonhado) é o recém-inaugurado Museu de Arte do Rio (MAR).
Como o governo Eduardo Paes (PMDB/PT) conseguiu construir tamanho
consenso, representado em cores tão ufanistas pelas mídias “oficiais”? A
ponto de obter 65, 70 ou até 80% dos votos em bairros pobres da cidade?
Onde está o efeito de escala desse governo, sua lógica molecular, seu
funcionamento concreto? Porque os velhos aparelhos de violência estatal,
racismo e medo persistem.
Uma resposta rápida aponta para o esgotamento da própria política. A
cidade, ainda que tradicionalmente insubmissa, estaria desmobilizada.
Num cenário nacional de crescimento econômico e novas oportunidades, as
pessoas estariam mais preocupadas em adaptar-se, ganhar dinheiro, “subir
na vida”, do que na mobilização política. Esse argumento conduz
invariavelmente à ideia que Eduardo Paes foi eleito no primeiro turno
graças à desmobilização ou “alienação”. As pessoas votaram porque estão
mal-informadas. Um argumento próximo da velha (e reacionária) tese do
clientelismo populista (de Sérgio Buarque de Hollanda a Roberto
DaMatta), em que os mais pobres, despidos de profunda espiritualidade,
votariam guiados pelo estômago, — em vez de usar a sóbria e
desinteressada razão em prol do interesse geral, qualidade exclusiva da
classe média branca e ilustrada.
É a mesma tese disfarçada pela esquerda quando argumenta que falta
“consciência de classe”, e que portanto o voto em Freixo ou no PSOL se
concentraria mais na Zona Sul devido ao maior número de pessoas
conscientes e interessadas na política. Isto é, noutros termos, devido à
existência de uma forte classe média branca e ilustrada.
Outra resposta consiste em apontar a falência da democracia
representativa, que desce aliás ao âmago do próprio conceito de
representação, e que inclusive justificaria a proporção crescente de
abstenções e votos nulos. Muitas pessoas estão desencantadas com as
opções disponíveis no mercado eleitoral. Em vez de “alienadas” ou
desmobilizadas, tem-se aí um ato de recusa. Dirigem seus esforços para
outro lugar, porque desse mato não sai cachorro. Esse discurso repercute
a tendência que vem das resistências no hemisfério norte: 15M, #nolesvote, movimento Occupy; ou nem tão do norte assim: que se vayan todos!, slogan argentino de 2001.
Paradoxalmente, o discurso mais abertamente antirrepresentativo
encontra um ponto de toque com forças à direita que se apresentam como
“apartidárias”, e mesmo acima de uma política pautada pela luta de
classe. Esse estranho ponto de encontro se dá ao redor do discurso do
vazio da política. Quer dizer, viveríamos a era do vazio da política, a
debaclê das ideologias. Os âmbitos e instituições tradicionalmente
perpassadas pela política estariam “despolitizadas”, corrompidas pelo
interesse privado erigido à razão pública. No Brasil, um realinhamento
eleitoral teria levado as forças partidárias a achatar-se essencialmente
nas mesmas pautas e modos de existir, reduzindo a quase zero a
diferença entre os programas.
Esse discurso, em tons indignados ou melancólicos, discurso de “fim
da história”, ainda que seja à esquerda, costuma distribuir a culpa pela
situação às próprias pessoas, além de criticar a corrupção do estado (e
não o estado como a corrupção). As pessoas — e aqui existe um
corte de classe — estariam “despolitizadas” ou “alienadas”, seduzidas
pelo consumismo e a ilusão de ascensão social, domesticadas e
imbecilizadas pela comunicação de massa. Trazida para a realidade
carioca, essa linha de interpretação teima em culpar as pessoas,
especialmente a maioria pobre, pela reeleição de Eduardo Paes em 2012.
Não sabem o que fazem, ao votar em Paes.
Em artigo de avaliação do último pleito, Alexandre Mendes, da UniNômade, mostrou que o resultado não admite conclusões tão apressadas.
Nessa linha que assume o “vazio da política”, sua corrupção ou sua
obsolescência, têm aparecido frentes que se propõem a renovar a
política. A reinventá-la noutras formas, com novas maneiras de organizar a militância e novas
concepções de representação e expressão. A ênfase no “novo” é
fundamental. Daí, se reorganizaram alguns grupos existentes para lançar
projetos com o apelo da novidade, tais como a Rede de Marina Silva, o
Partido do Futuro, na Espanha (elogiado por Manuel Castells) e o 5Stelle
encabeçado por Beppe Grillo, na Itália. Em comum, esses grupos
canalizam uma insatisfação difusa com a política-que-está-aí e evitam
se definir segundo o espectro clássico entre esquerda e direita. Isto
significa, em parte, uma recusa em entrar nos esquemas do velho, para reforçar que, no mundo do século 21, é preciso reinventar a própria definição do que seja posicionamento político.
Isto traz várias complicações e armadilhas. Na resposta do “vazio da
política”, os grupos parecem atribuir-se a responsabilidade histórica,
quase missionária, de preencher-lhe. Se a política é velha e a
militância ultrapassada, eles se põem no cenário como os arautos de uma
nova política e um ativismo mais “contemporâneo”, onde não haveria
lugar, por exemplo, para os fantasmas da “luta de classe” ou do
“comunismo”. Menos que uma recusa às utopias do século 20, tem-se aí uma
recusa do próprio antagonismo como motor da história. São teóricos e
ativistas “elevados”, acima dessa era rancorosa em que as pessoas
lutavam com ódios ideológicos.
Os adjetivos “complicado” e “problemático” se aplicam perfeitamente a
essas tendências, mas o destino político delas, guardada a reserva
crítica, é preciso reconhecer ainda estar em aberto. Sem
condescendência, mas também despojado de denúncia apriorística. Por sua
vez, a rejeição do fetiche do novo não pode significar a apologia do velho, do espectro político-partidário existente, na quase totalidade engessado e capturado.
Outra possibilidade, talvez mais interessante, seja não cair nessa
outra dicotomia que no lugar de opor esquerda e direita, opõe a novidade
ao obsoleto, em conotação teleológica onde o tom moral nunca está
distante. Além dessa linha, talvez seja caso de não afirmar algum “vazio
da política”. Os pobres não estão despolitizados. Sua mobilização já
acontece, só não conseguimos enxergá-la. A leitora de Foucault sabe que
não existe vazio de poder. A política nunca dorme. O que sucede amiúde
entre os meios de esquerda é não enxergar as coordenadas e os planos de
composição em que essa política acontece. Falta generosidade no olhar e
na construção das relações. E falta pesquisa militante junto de
movimentos e forças vivas do trabalho, na conexão entre política e
produção, entre luta e trabalho, o que os operaístas italianos chamariam
de “composição de classe”.
Nesse sentido, volta a pergunta, onde está a política que reconduz
Eduardo Paes à prefeitura com mais de 60% dos votos válidos, chegando a
70, 75 ou mesmo 80% nos bairros pobres? Quais são as formas, os métodos,
as conexões político-produtivas que determinam os consensos de
governança carioca? Como se fabrica um consenso que não tem qualquer
vergonha em triturar pobres e negros, sob o aplauso unânime da grande
imprensa? Em explorar o desenvolvimento da cidade e dirigi-lo
abertamente à ainda mais desigualdade territorial e social, racismo e
concentração dos ganhos? Denunciar o intolerável e a miséria do poder é
fácil e até redundante. Difícil é explicar porque acontece. Interpretar
para transformar. Explicar para se implicar melhor na constituição
política do presente, e desse plano de composição tirar as linhas de
corte, fuga e recomposição de classe.
O “preenchimento” talvez esteja acontecendo em múltiplos níveis,
transescalarmente pelos muitos territórios, bairros e zonas do Rio de
Janeiro. Dê-se por redes enraizadas que conseguem mobilizar, de uma
maneira ou de outra, a força produtiva dos pobres. Isso passa por uma
cauda longa de operadores estrategicamente posicionados, mais ou menos
conscientes de sua posição na governança da cidade, dentro ou fora do
“estado oficial”.
Agentes, articuladores, animadores em distintos graus de envolvimento
com obras públicas, instituições locais, órgãos da prefeitura, redes
varejistas, de comércio informal, esportes, cultura, políticas sociais,
transporte público, equipamentos urbanos culturais, instâncias de
controle territorial, lideranças comunitárias, igrejas, associações de
moradores, milícia, tráfico, lavagem de dinheiro e longo etcétera — a
equação é complexa. É a cidade policêntrica e sua rede que articula
verticalidades e horizontalidades cujas
fronteiras são difíceis de precisar, mutantes, maleáveis. Tudo isso é também Eduardo Paes. Um Eduardo Paes molecular. Ou melhor, uma base material capilarizada sobre o que a governabilidade pôde construir e sustentar algo como o governo Eduardo Paes.
fronteiras são difíceis de precisar, mutantes, maleáveis. Tudo isso é também Eduardo Paes. Um Eduardo Paes molecular. Ou melhor, uma base material capilarizada sobre o que a governabilidade pôde construir e sustentar algo como o governo Eduardo Paes.
Nesse sentido, não basta denunciar um governo que sustenta o Grande
Negócio (imobiliário, empreiteiro, midiático-esportivo, telefonia,
transportes, lixo, bem como as finanças que estão em tudo) por baixo da
violência e do intolerável cotidianos. Mas compreendê-los como produto
de fluxos de poder, dos escoamentos de dinheiro e da colonização da
subjetividade, fenômenos que se espraiam pela metrópole. A violência
racista contra pobre deriva dessa estrutura produtiva. Uma estrutura
que, na outra ponta, produz uma sensação, uma estética e um discurso de
sustentação onde as pessoas podem se segurar e ser de alguma forma
produtivas, produtivas como não eram, e a partir daí construir o seu
futuro, e comprazer-se com a percepção, ainda que incipiente, de toda
sorte reconfortante e motivadora, que podem “subir na vida”. O caso é
compreender como o enunciado “subir na vida” está imbricado com uma
ética do trabalho, o que envolve as igrejas neopentecostais, a
televisão, a publicidade, mas também arranjos familiares e algum
cooperativismo local.
Em vez de simplesmente condenar esse “subir na vida”, que mais do que
ilusão é um fato vivido e sentido na pele pelos pobres, perceber como
por dentro disso também há elementos produtivos, essencialmente
políticos, ligados a um aumento de demandas, expectativas, e mesmo uma
autopercepção de capacidades que, até pouco tempo atrás, não havia. Essa
autopercepção é reapropriável como luta. A mobilização produtiva dos
pobres, em grande escala, — algo muito menos perceptível há 15 ou 20
anos no Rio de Janeiro, — já implica formas de “consciência de classe” e
uma politização que muitas vezes passa despercebida segundo os esquemas
da esquerda brasileira. Condenar o “subir na vida” tem sido o
diagnóstico geral, como se a classe média — extrato social mediador e
legitimador de qualquer época capitalista — não se organizasse
subjetivamente ao redor disso.
O verdadeiro problema talvez consista em entender como esse mesmo
“subir na vida” termine apropriado para sustentar a governança desigual
da cidade, atuando no sentido de manter a pirâmide do Grande Negócio e
seus poucos e grandes proprietários. Sem condenar quem enuncia querer
“subir na vida”, mas lhe distinguir os vários polos internos do
enunciado, cujo sentido, ao fim e ao cabo, está em disputa. É a própria disputa no plano da subjetividade. Nem amor ad lazarus à moda narodnik, nem racismo de classe à direita ou à esquerda.
O caso possivelmente seja compreender, igualmente, como as políticas
sociais e culturais — ainda modestas, mas não desprezíveis —
aprofundadas com o governo Lula, também entram como dupla variável da
equação. Dupla variável, pois mobiliza produtivamente (logo,
politicamente), ao mesmpo tempo em que explora essa mobilização.
Acontece com duplo polo: apropriação pelo poder, reapropriação pela
“consciência de classe”, ou melhor, pela organização de redes
territoriais. E tentar fazer um esforço interpretativo para entender
como essas políticas podem ser (e no fundo já estão) tensionadas para a
reapropriação das estruturas e mediações com que funciona o governo
Eduardo Paes, e também o estadual e o federal — no sentido, por exemplo,
da renda universal incondicionada, ou de conselhos territoriais
articulados além da lógica militarizada e “pacificadora”.
Não é caso, de todo jeito, de simplesmente denunciar os aspectos
negativos e tendencialmente de fechamento das políticas sociais e
culturais, nem do “subir na vida” na base da produção de subjetividade
que igrejas, governos e máfias também colonizam. Essa é uma tarefa fácil
e, no final das contas, inútil. O trabalho exclusivo do negativo serve,
no máximo, para alimentar o ciclo 7-24 das redes sociais, num transe de
indignação e denúncia com soma final zero. A negatividade só exerce
poder apoiada sobre uma positividade maior e mais interessante no presente.
O que fazer, então, não terá resposta num artigo ou numa reunião.
Depende da copesquisa das coordenadas e condições dessa produção além
das mediações e estruturas. Uma copesquisa que as redes de
resistência-produção já fazem no dia a dia, ainda que de forma pouco
integrada. O que fazer — a pergunta leninista que sempre volta — implica
situar-se dentro da franja de subjetividade, e ver e enxergar e
vivenciar como fugir das armadilhas, dos polos negativos das
equações, e contribuir para vazar o excedente de luta, indignação e
insatisfação implicado nas subjetividades. Esse trabalho não prescinde
de uma análise da representação, das eleições, das instituições
estatais, embora seja fundamental não se render ao estado como ponto de
vista (mantendo todavia um ponto de vista sobre o estado).
Esse desafio para interpretar e transformar a constituição política
do presente não passa por postular vazios para se oferecer como mais
pleno. O salvacionismo dos pures et dures simplesmente esbarra
na realidade, que não funciona segundo a lógica velho x novo, puro x
impuro, verdade x mentira, limpo x corrupto. É preciso reconhecer que os
espaços e tempos estão inteiramente preenchidos, que a política esteja
pulsando por todos os lados, para um lado e para o outro, e que portanto
seja preciso ocupar esses espaços-tempos. Posicionar-se na mobilização
produtiva e, sem negá-la com ranços, derivar seus sentidos. Ocupá-los
não para simplesmente disputar espaço, mas para transformá-lo,
revolucionando a própria distribuição desigual dos espaços e tempos da
cidade.
É um desafio de reapropriação da cidade desde baixo, desde as bases
materiais de sua produção de vida e morte, desde as forças e os corpos
que fazem o Rio de Janeiro. Um trabalho de remobilização que não
prescinde de uma política forte da composição, para agregar e
multiplicar os sentidos e afetos do outro Rio, do outro Rio que já
subsiste nas entrelinhas deste. A nova política não é propriamente nova,
mas sim recomposta. O trabalho da multidão está em copesquisar e
recompor essa outra cidade, linda e insubmissa, tanto vexada nos
últimos tempos com a governança vigente, suas alianças mafiosas e suas
redes de saqueio.
Fonte: Universidade Nômade
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