segunda-feira, 11 de junho de 2012

Educação no Brasil, por Darcy Ribeiro


Artigo de Darcy Ribeiro(1986)





Dois fatos impressionam na educação brasileira: a magnitude da rede escolar pública e sua precariedade. Ela tem, hoje em dia, na condição de alunos, cerca de 30 milhões de pessoas. Se acrescentarmos os professores e administradores da educação, esse número será ainda maior. É de se perguntar, porém, o que produz essa máquina tão prodigiosamente grande. O produto principal da máquina educacional brasileira são 500 mil analfabetos adultos por ano, uma vez que não será menor que meio milhão o número de jovens brasileiros que chegam, anualmente, aos 18 anos, analfabetos. Só no Rio de Janeiro avaliamos em pelo menos 50 mil a produção anual de analfabetos, a maioria deles com três ou quatro anos de escolaridade.
Se estendermos a condição de analfabeto à do iletrado ou do analfabeto funcional - aquele que desenha o nome e se declara alfabetizado, mas é incapaz de obter ou de transmitir uma informação escrita - veremos que dobrará, no Brasil e no Rio, o número de brasileiros que ingressam anualmente na vida adulta marginalizados da cultura do seu povo e do seu tempo por não estarem incorporados à civilização letrada.


Brasil - Escolaridade no Censo Nacional de 1970 e 1980 para maiores de 10 anos



Sem escolaridade
Um ano
Dois anos
Total
1970
24,0 mi
5,1 mi
6,9 mi
32,0 mi
1980
24,0 mi
4,8 mi
7,3 mi
36,3 mi


Para atendermos a 140 milhões de brasileiros - quase metade dos quais com menos de 18 anos - com índices de educação satisfatórios, deveríamos ter muito mais do que esse número aparentemente espantoso de 30 milhões de pessoas movimentando a máquina do ensino público.
Embora nosso sistema educacional tenha saltado de seis milhões de pessoas em 1950 para 10 milhões em 1960, para 19 milhões em 1970 e para 30 milhões hoje, a verdade é que a escola pública brasileira não cresceu onde devia, nem como devia.
O que se obteve com esse crescimento meramente quantitativo foi uma escola de mentira, incapaz até mesmo de cumprir a tarefa elementar de alfabetizar a população. Nas últimas décadas em que o Brasil "progrediu" tão assinalavelmente em tantos campos, só viu crescer o número de analfabetos adultos.
Examinando o resultado do censo de 1970, para o conjunto do Brasil, veremos que do total de 65,8 milhões de brasileiros com mais de 10 anos de idade, 24 milhões nunca tinham ido à escola (8,7 deles nas cidades e 15,3 nas zonas rurais). Cinco milhões tinham tido apenas um ano de escola e sete milhões, só dois. Tínhamos, conforme se verifica, 32 milhões de habitantes, que eram analfabetos funcionais. O censo nacional de 1980 reproduzia quase os mesmos números absolutos de analfabetos funcionais, que aumentaram de 32 para 36,3 milhões, demonstrando assim que os problemas educacionais só têm se agravado.

Números expressivos
Para precisar melhor o nosso fracasso educacional, vejamos alguns números expressivos. Com respeito aos analfabetos de 15 anos e mais, registrados nos recenseamentos, por exemplo, as porcentagens, décadas após décadas, vêm diminuindo, mas o número absoluto vem aumentando. Eram 56,2% os analfabetos maiores de 15 anos em 1940, somando 13 milhões. Os analfabetos de 1950 eram 50,5% e montavam a 15 milhões. Caíram para 39,3% em 1960, mas seu número elevou-se para 16 milhões. Em 1970, a porcentagem desceu para 33% mas o número absoluto de analfabetos alçou-se a 18 milhões.

O mesmo Censo de 1970 nos revela que entre os jovens de 14 anos de idade, 24,3%, o que equivale a uma quarta parte, não sabia ler e escrever. Esta juventude analfabeta era de 42% nas zonas rurais e de 10% na cidade. Finalmente, no último Censo, em 1980, a porcentagem subiu para 25,9% e o número absoluto elevou-se para 19 milhões. São esses os número censitários dos analfabetos adultos do Brasil. Eles nos estão a dizer que toda a zuaba do Mobral sobre a extinção do analfabetismo era outro milagre estatístico.
Esses números e proporções tornam-se mais significativos quando comparados com outros desempenhos educacionais. Enquanto o Brasil de 1980 conta com 19 mlhões de analfabetos adultos e com a porcentagem de 26%, na Argentina essa porcentagem é de 6% em 1976 e, em Cuba, já em 1961, era de 3%. No caso de Cuba, pode-se explicar o êxito educacional pelo empenho que o socialismo põe na educação popular; mas no caso da Argentina e de tantos outros países da América Latina, a nossa inferioridade estatística reflete uma inferioridade efetiva no esforço por alfabetizar e na capacidade de alcançar esta meta elementar.


Brasil - Censos Nacionais: analfabetos com 15 anos e mais


1950: 50,5% - 15 mi
1970: 33,0% - 18 mi
1960: 39,3% - 16 mi
1980: 26,0% - 19 mi
Analfabetismo na América Latina

Cuba 1961: 3%
Uruguai 1978: 10%
Argentina 1976: 6%
Costa Rica 1975: 11%
Mais expressivos ainda do que a medida censitária desse resíduo de letrados na população pelo funcionamento da escola são os dados abaixo referentes ao fluxo de alunos da 1ª à 4ª série. A escolaridade, com expressão da capacidade que o sistema tem de absorver, é incrivelmente baixa. Metade das nossas crianças não consegue nem saltar a barreira da primeira série para se matricular na segunda, e apenas 40% das crianças alcançam a quarta série, que corresponde àquele mínimo de domínio da escrita e da leitura com o qual uma pessoa está habilitada a operar, com eficácia, dentro de uma sociedade letrada.

1975 - 1ª série - 1000
1976 - 2ª série - 486
1977 - 3ª série - 464
1978 - 4ª série - 417


Examinando esses dados com mais atenção, podemos tirar outras conclusões. A principal delas é desvendar o engodo que se esconde atrás desses números. Ele começa a revelar-se quando se observa que quem passa da segunda para a terceira série progride mais ou menos bem daí por diante: 486 - 464 - 417. Com efeito, quem salta as duas primeiras séries - principais barreiras e verdadeiros depósitos de crianças condenadas à evasão - tem grandes possibilidades de concluir o 1º grau. Isso significa que as primeiras duas séries são as grandes peneiras que selecionam quem vai ser educado (48,6%) e quem vai ser rejeitado (51,4%), quem é escolarizável e quem não é. 
Para alcançarmos a necessária objetividade na apreciação da realidade educacional do Brasil, é conveniente fazer algumas comparações. Para isso se prestam bem os dados referentes ao fluxo da escolaridade em países latino-americanos. O México, que tem maior homogeneidade cultural e um grau semelhante ao nosso desenvolvimento econômico, alcança um desempenho educacional muito melhor, uma vez que promove à segunda série cerca de 70% dos alunos e leva à quarta série mais da metade. O Paraguai e a Bolívia, nações irmãs tanto ou mais pobres do que nós, vivem uma situação ainda mais difícil no que concerne à educação, porque lá a população não fala a língua da escola. No Paraguai se fala guarani; na Bolívia, o quíchua e o aimará; nos dois países, a escola ensina em espanhol. Apesar disso, a porcentagem de crianças que lá concluem as seis séries primárias é maior do que a nossa.
Não nos iludamos pensando que os dados globais referentes ao Brasil como um todo sejam negados quando se focalizam as áreas mais ricas e desenvolvidas, incluindo as grandes cidades. Mesmo na cidade do Rio de Janeiro, considerada, sem sombra de dúvida, aquela em que houve historicamente, maior investimento na educação, e em que se construiu uma rede escolar frondosa e um professorado multitudinário, mesmo aqui o nosso desempenho educacional é menos do que medíocre. Na verdade, a educação que o Rio de Janeiro provê à sua população é de tão baixa qualidade como a que se ministra nas áreas mais pobres do país. A situação de São Paulo é semelhante, uma vez que, lá também, metade das crianças não está passando da primeira para a segunda série e que a progressão, daí por diante, é igualmente precária. Como se verifica, o mal é generalizado e constitui, sem dúvida, uma doença nacional: não fomos capazes, até hoje, de criar uma escola pública honesta, adaptada às necessidades da população brasileira.

Uma escola pública antipopular
Tamanho fracasso educacional não se explica, obviamente, pela falta de escolas - elas aí estão, numerosíssimas - nem por falta de escolaridade, uma vez que estão repletas de alunos, sobretudo na primeira série, que absorve quase metade da matrícula. Muitos fatores contribuem para estre fracasso, como procuraremos demonstrar a seguir. Só queremos adiantar agora que a razão causal verdadeira não reside em nenhuma prática pedagógica. Reside, isto sim, na atitude das classes dominantes brasileiras para com o nosso povo.
Um fator importante do nosso baixo rendimento escolar reside na exigüidade do tempo de atendimento que damos à criança.
Este ângulo da questão merece especial atenção. A criança das classes abandonadas que têm em casa quem estude com ela, algumas horas extras, enfrenta gahlardamente esse regime escolar em que quase não se dá aulas. Ele só penaliza, de fato, a criança pobre oriunda de meios atrasados, porque ela só conta com a escola para aprender alguma coisa. Aqui está o fulcro da questão: nossa escola fracassa por seu caráter cruelmente elitista. Alguns educadores alienados, envoltos nas névoas da sua pedagogia pervertida, estão dispostos a firmar que o fracasso escolar da criança pobre se deve a deficiências que ela traz de casa. A escola não teria nada a ver com isso. Os professores enfrentariam, neste caso, uma situação carencial insuperável, em conseqüência da qual a maioria da população brasileira seria ineducável.
A criança popular urbana, que vive em condições precárias, nas favelas ou nos bairros pobres da periferia, como em tantas outras regiões do Brasil, é essencialmente diferente da criança afortunada que vive nas áreas ricas. O pequeno favelado, comendo pouco e mal, cresce raquítico. Às vezes é até prejudicado por malformações, se a fome ocorre muito cedo ou se é demasiada. Sua afla é também peculiar e atravessada, aos ouvidos da professora. Toda a sua inteligência está voltada para a luta pela sobrevivência autônoma, em esforços nos quais alcança uma eficácia incomparável. A criança afortunada se desenvolve bem fisicamente, fala a língua da escola, é ágil no uso do lápis e na interpretação de símbolos gráficos e chega à escola altamente estimulada pelos pais, através de toda espécie de prêmios e gratificações, para aprender rapidamente. Uma e outra têm incapacidades específicas: o favelado, para competir na escola; o afortunado, para sobreviver solto na cidade. Ocorre, porém, que todos vão à escola e ali competem; mas o menino rico não tem, jamais, de lutar pelo sustento, nem de 

cuidar dos irmãos, e raramente cai na delinqüência. Nessas circunstâncias, um desempenho natural e inevitável é valorizado e premiado pela escola; o outro é severamente punido.
Frente a esses fatos, precisamos começar a reconhecer e proclamar que temos uma escola primária não só seletiva, mas elitista. Com efeito, ela recebe as crianças populares massivamente, mas, tratando-as como se fossem iguais às oriundas dos setores privilegiados, assim as peneira e exclui da escola. Vale dizer que nosso pendor elitista começa na escola primária. Ela, de fato, se estrutura para educar as classes abonadas e não o povo, que constitui a imensa maioria de sua clientela.
Como negar, diante destas evidencias, que temos uma escola desonesta, uma escola inadequada? O fato irretorquível é que ela funciona, tomando como sua clientela própria, normal, uma minoria. Ela é, pois, uma escola para os 20%, não é uma escola para os 80% da população. Uma escola desvairada que vê como desempenho normal, desejável e até exigível de toda criança, o rendimento "anormal" da minoria de alunos, que têm quem estude com eles em casa mais algumas horas, e que vivem com famílias em que alguns membros já têm curso primário completo. Como na imensa maioria das famílias brasileiras não há esta pessoa, desocupada e pronta para tomar conta das crianças e estudar com elas, a escola não tem o direito de esperar isto. Funcionando na base dessa falsa expectativa, ela é uma escola hostil à sua clientela verdadeira, por que, sendo uma escola pública, a sua tarefa é educar as crianças brasileiras, a partir da condição em que elas se encontrem. 
Uma degradação tão grande e tão perversa do sistema educacional só se explica por uma deformação da própria sociedade. Nosso desigualitarismo cruel, que conduz ao descaso pelas necessidades do povo, leva à incúria também no campo da educação, permitindo que viceje esse monstro que é uma escola pública antipopular.
Suas causas, a nosso juízo, residem nas camadas mais profundas do nosso ser nacional e dizem respeito ao caráter mesmo de nossa sociedade. Tememos, até, que nós brasileiros, pela sociedade que somo e pela forma como ela está organizada, estejamos estruturados de maneira pervertida. Somos uma sociedade deformada que carrega dentro de si cicatrizes e malformações históricas profundas que teremos muitas dificuldades em superar. Dificuldades tanto maiores quanto mais tardemos em reconhece-las e em denunciá-las.

Causas profundas
Estamos, como se vê, diante de um fenômeno que precisa ser explicado: como é que o Brasil consegue ser tão ruim em educação? Quem quisesse organizar um país com o objetivo expresso de alcançar, com tantos professores e com tantas escolas, um resultado tão medíocre, teria que fazer um grande esforço. Um país monolíngüe como o nosso, em que não há nenhuma barreira de ordem étnica ou cultural, conseguir ser tão medíocre no seu desempenho educacional é realizar, sem dúvida, uma façanha incomparável. Ainda que nada invejável.
Um certo objetivismo sociológico dá explicações copiosas, expressas em numerosas teses doutorais sobre as causas deste fracasso, tratando-o sempre como natural e até necessário. Notoriamente, a função social desse objetivismo é nos consolar, demonstrando que tudo isto decorre dos processos de urbanização e de industrialização. Processos que, transladando a população trabalhadora do campo para a cidade - por força do próprio progresso que afinal nos alcança - perturba as instituições sociais, inclusive as educacionais, compelindo-as a se transfigurarem tão precariamente. Advertem, nesta altura, que o problema é ainda mais complicado porque à urbanização caótica se seguiu um processo de industrialização intensiva que, exigindo mão-de-obra moderna e disciplinada, reclamaria uma nova escola ideológica, capacitada a domesticar os camponeses urbanizados e proletarizados, através de uma indoutrinação que os convença de que são pobres porque são burros.
Essas seriam as causas do desastre para os liberais. Desastre, aliás autocorrigível, dizem eles, uma vez que a modernização das cidades brasileiras, criando pólos de progresso, iria dissolvendo os bolsões de atraso, até que a civilização industrial a todos homogeneizasse, num assalariado capitalista moderno. Alguns sociólogos esquerdistas aderem a estas teses acrescentando triunfalmente que só a revolução socialista dará aos brasileiros a escola primária que a revolução burguesa deu por toda parte. Toda essa literatura não ensina nada. No máximo fotografa algumas situações sem explica-las. Para tanto, precisamos fazer uma crítica história da razão sociológica.
Seria verdade que nosso desastre educacional se deve a tais processos, se o ensino houvesse sido bom antes da urbanização caótica e da industrialização intensiva. Se ao menos ele fosse comparável, ao que fizeram em matéria de educação, outros países latino-americanos após a independência, como a Argentina, o Uruguai e o Chile. Como nada disso ocorreu entre nós, cevemos concluir que nosso descalabro educacional tem causas mais antigas. Vem da Colônia que nunca quis alfabetizar ninguém, ou só quis alfabetizar uns poucos homens para o exercício de funções governamentais. Vem do Império que, por igual, nunca se propôs educar o povo. A República não foi muito mais generosa e nos trouxe à situação atual de calamidade na educação.
Nós propomos, como explicação, que estamos diante de um caso grave de deficiência intrínseca da sociedade brasileira. Nossa incapacidade de educar a população, como a de alimenta-la, se deve ao próprio caráter da sociedade nacional. Somos uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população. Assim é, porque aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma merda força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção. É preciso ter coragem de ver este fato porque só a partir dele, podemos romper nossa condenação ao atraso e à pobreza, decorrentes de um subdesenvolvimento de caráter autoperpetuante.
Nosso atraso educacional é uma seqüela do escravismo. Nós fomos o último país do mundo a acabar com a escravidão, e este fato histórico, constitutivo de nossa sociedade, tem um preço que ainda estamos pagando. Com efeito, o escravismo animaliza, brutaliza o escravo, arrancado de seu povo para servir no cativeiro, como um bem semovente do senhor. De alguma forma, porém, ele dignifica o escravo porque o condena a lutar pela liberdade. Desde o primeiro dia, o negro enfrente a tarefa tremenda de reconstruir-se como ser cultural, aprendendo a falar a língua do senhor, adaptando-se às formas de sobrevivência na terra nova. Ao mesmo tempo, se rebela contra o cativeiro, fugindo e combatendo, assim que alcança um mínimo de compreensão recíproca e de capacidade de se situar no mundo novo em que se encontra.
Este é o lado do escravo, na escravidão. O lado do senhor é o exercício do papel de castigador do escravo, de explorador, condenado ao opróbrio, porque seu combate é para eternizar o cativeiro. Uma classe dominante feita de senhores de escravos ou de descendentes deles é uma classe enferma que carrega em si, no mais recôndito de seus sentimentos, a herança hedionda dos gastadores de gente. Para este patronato, o negro escravo e, por extensão, o preto forro e ainda todo o povo, é uma mera força de trabalho, é uma massa energética desgastável, um carvão humano que se queima na produção.
Alguém poderia argumentar que estes ancestrais estão muito longe de nós. São nossos avós, é verdade, distantes de nós, é certo; mas nem tanto que não sejamos dignos netos deles, guardando em nossos genes e em nosso espírito, sua herança tão legítima como hedionda.
O fracasso brasileiro na educação - nossa incapacidade de criar uma boa escola pública generalizável a todos, funcionando com um mínimo de eficácia - é paralelo à nossa incapacidade de organizar a economia para que todos trabalhem e comam. Só falta acrescentar ou concluir, que esta incapacidade é, também, uma capacidade. É o talento espantosamente coerente de uma classe dominante deformada, que condena seu povo ao atraso e à penúria para manter intocada por séculos, a continuidade de sua dominação hegemônica e as fontes de seu enriquecimento e dissipação. Uma dominação infecunda, que nos põe na retaguarda das nações e nos afunda no retrocesso histórico, porque isso é o que corresponde aos interesses imediatistas da nossa classe dominante. Quem duvidar, cuidando que a culpa é do capitalismo, veja o que os capitalistas fizeram na América do Norte. Às vezes penso que nós somos o que seriam os Estados Unidos se o Sul vencesse a Guerra de Secessão. Aqui a escravidão venceu, e mesmo depois de estirpada pela lei, foram os líderes do Império Escravista que passaram a reger a República.
A esta luz se vêem como façanhas elitistas o que são fracassos sociais. Assim se entende que tenhamos um vastíssimo sistema educacional que não educa, bem como portentosos serviços de assistência e previdência social que funcionam de mentira. Em resumo, que em tudo que serve ao povo, sejamos campeões de ineficácia.

A revolução educacional do Rio
A eleição de Leonel Brizola para Governador do Rio de Janeiro ensejou o primeiro programa sério de reforma do sistema escolar público de primeiro grau. Existiram tentativas anteriores, é certo, mas não passaram de meros ensaios de breve duração, apesar de ser muito antiga entre nossos educadores uma aguda consciência crítica sobre a gravidade do problema educacional brasileiro.

Agora, um Estado da Federação, com 14 milhões de habitantes, e cerca de 2,5 milhões de crianças nas escolas públicas assume expressamente o compromisso de fazer da educação popular sua meta prioritária. Cria, para isso, uma Comissão Coordenadora, a cargo do Vice-Governador, armando-a de poderes para elaborar um Plano Especial de Educação e dotando-a de recursos que ultrapassam US$ 400 milhões para custear sua execução.
Essa deliberação histórica foi tomada com base na consciência de que numa sociedade de cultura letrada o analfabeto e o insuficientemente instruído são marginais. E mais ainda, de que quando eles formam uma grande massa, tal como ocorre no Brasil, é a própria nação que se vê condenada a existir à margem da civilização do seu tempo.
A escolha da educação como a prioridade fundamental responde, essencialmente, à ideologia socialista-democrática do 
Partido Democrático Trabalhista de Leonel Brizola. Essa ideologia é que, contrariando uma prática antiqüíssima de descaso em matéria de instrução pública, nos deu a coragem de abrir os olhos para ver e medir a gravidade do problema educacional brasileiro e sobretudo a ousadia de enfrenta-lo com a maior massa de recursos que o Estado pôde reunir.
A escolha da educação como meta prioritária decorreu também do fato da maior parte das áreas de ação governamental estar na órbita do Poder Federal, enquanto as escolas públicas de 1º e 2º graus estão na jurisdição dos governos estaduais e municipais. Assim é que se oferecia não só a possibilidade de uma atuação autônoma e enérgica, como também a de concentrar os esforços governamentais numa ação social transformadora da maior importância econômica, cultural e política.
Assim que assumiu o Governo, Leonel Brizola tomou várias medidas de emergência na área da educação. Algumas delas de enorme importância, tais como a reconstrução da rede escolar, que se encontrava em estado precaríssimo, a transformação da merenda escolar de forma a assegurar diariamente 2 milhões de refeições completas às crianças das escolas públicas; e, ainda, o transporte gratuito de alunos que vistam o traje escolar.
O grande feito do governo Leonel Brizola foi elaborar o Programa Especial de Educação com a participação de todo o professorado do Rio de Janeiro. Com esse objetivo, realizou-se um verdadeiro anticongresso destinado a debater e revisr um corpo de teses elaborado pela Comissão Coordenadora. Participaram diretamente desses debates 52 mil professores, em reuniões locais, que elegeram mil representantes seus para os encontros regionais, de que surgiram os 00 que discutiram a redação final das bases do Programa Especial de Educação junto com a Comissão Coordenadora. O interesse despertado por esses debates foi tão vivo e intenso que mais de 30000 professores escreveram cartas dando sua opinião sobre as teses. Desse imenso esforço participatório resultou um diagnóstico e um corpo de teses desafiantes e provocativas, que serão apresentadas detalhadamente no decorrer deste livro. 
Com base nesse documento autocrítico é que se fixaram as metas fundamentais do Programa Especial de Educação. A primeira dessas metas é expandir a rede pública com o objetivo de extinguir o terceiro turno, garantindo pelo menos 5 horas de aula a todas as crianças e, simultaneamente, criar um milhar de Casas da Criança que estão sendo implantadas onde a população é mais densa e mais carente para acolher crianças de 3 a 6 anos no programa de educação pré-escolar. Para levar à prática essa meta foi implantada uma Fábrica de Escolas que, operando com a tecnologia de argamassa armada, seta construindo cerca de 600 m² de obras diariamente.
Outra meta fundamental do Programa Especial de Educação é instituir progressivamente uma nova rede de escolas de dia completo - os Centros Integrados de Educação Pública - CIEPs - que o povo passou a chamar de Brizolões. Eles também estão sendo implantados nas áreas de maior densidade e de maior pobreza. Projetados por Oscar Niemeyer, são edificações de grande beleza que constituem orgulho dos bairroes onde se edificam. Cada um deles compreende um edifício principal, de administração e salas de aula e de estudo dirigido, cozinha, refeitório e um centro de assistência médica e dentária. Num outro edifício é destinado à biblioteca pública que serve tanto à escola como à população vizinha. 
No edifício principal se integram também instalações para abrigar 24 alunos-residentes.
Os Brizolões atendem a 1000 crianças de 1ª a 4ª série ou de 5ª a 6ª série, separadamente. Em uns e outros, elas são atendidas de 8 da manhã às 5 horas da tarde e ali recebem, além das aulas, da recreação, da ginástica, 3 refeições e um banho diário. Á noite, o Brizolão se abre para 400 jovens de 14 a 20 anos, analfabetos ou insuficientemente instruídos. Cada Brizolão abriga 12 meninos e 12 meninas escolhidos entre crianças abandonadas e que estejam sob a ameaça de cair na delinqüência.
Outra meta do PEE é o aperfeiçoamento do magistério, tanto o que está em serviço quanto o que está ingressando agora, na carreira. Isso se faz nos CIEPs e em Escolas de Demonstração, especialmente criadas com esse objetivo, através de programas de Treinamento em Serviço e de Seminários de Ativação Pedagógica. O programa produz, ainda, um vastíssimo material de apoio didático, tanto para os CIEPs quanto para a rede comum.
Ao fim do Governo Leonel Brizola, em março de 1987, estarão inaugurados e funcionando 500 Brizolões no Rio de Janeiro e mais de um milhar de escolas menores de vários tipos que atenderão, em melhores condições, perto de um milhão de crianças e jovens.
Através de todo este esforço, o que se busca é criar uma escola pública honesta, por que adaptada às condições e às necessidades do alunado popular. Como era de esperar o Programa tem o apoio da população do Rio de Janeiro e está despertando a consciência do Brasil inteiro para a gravidade do nosso problema educacional.
A grande conquista do Programa Especial de Educação do Rio de Janeiro é, por um lado, essa mobilização da consciência nacional e, por outro lado, a preparação de equipamentos capazes de levar à prática por todo o País soluções experimentalmente comprovadas para a criação da Escola Pública de que necessitamos (Artigo escrito em 1986).

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