domingo, 1 de abril de 2012

Cultura livre não é mercadoria




Republico no blog um manifesto produzido pelo coletivo Epidemia sobre as relações entre cultura livre e mercado. Num momento em que iniciativas não antagônicas com o mercado começam a defender abertamente um “pós-mercado” parece adequado retomar essas ideias.


"Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que oprime e a lei que liberta."
Lacordaire


A cultura é livre quando os sujeitos que com ela se relacionam também são livres. Produtores, apreciadores, críticos e todos aqueles que criam, opinam, acessam e difundem a cultura não podem ter suas ações limitadas pela lógica de mercado ou por decisões de Estado. A fruição cultural não deve estar restrita àqueles que por ela podem pagar. Da mesma forma, o fato de poder ser vendida ou estar associada a algum serviço vendável não deve ser determinante para a sua existência. Mas afastar-se dessa lógica mercantil não pode, tampouco, significar a subordinação a algum controle estatal de conteúdo. A diversidade e a abrangência que o desenvolvimento cultural livre exige dependem de um ambiente em que haja autonomia, acesso universal e livre manifestação, sem direcionamentos e restrições mercantis, sem a vinculação com a sobrevivência material do autor e sem qualquer controle externo. Não é, portanto, uma característica apenas do produto cultural. Trata-se de libertar todo seu processo de criação e difusão garantindo uma ampla participação para os sujeitos sociais criarem e acessarem livremente os bens culturais. A cultura livre é, assim, um passo na construção de uma sociedade livre.
O movimento de cultura livre foi constituído por uma ambiguidade fundamental da palavra ‘free’, desde os primeiros tempos do software livre. Quando Stallman lançou o conceito de software livre, nos anos 1980, livre foi definido como o direito do usuário de executar o programa, estudar o código, modificá-lo e copiá-lo, na forma original ou modificada. Stallman sempre enfatizou que ‘free’, termo ambíguo em inglês, não se referia à gratuidade, mas à liberdade. O direito de vender o programa estava contido na liberdade de ser livremente copiado, inclusive com fins comerciais. Mesmo assim, criava-se uma contradição, já que ‘free’ indiretamente apontava para um acesso gratuito à cultura – não era fundamentalmente ‘free as in free beer’, mas era também. Podendo ser livremente copiado, estava garantido o acesso gratuito e, portanto, a não necessidade de ser comprado. Além dessa liberdade, ‘free’ expressava o direito de livre modificação do bem cultural, fosse ele um software (nos primeiros tempos do Stallman) ou uma base musical (na era do Creative Commons) – era neste sentido que se aproximava de ‘free as in free speech’.
O direito de vender a cultura, de toda maneira, estava garantido, embora essa venda não pudesse restringir o direito de livre cópia. Foi a partir desse direito fundamental de ser vendida, sempre contido na definição do livre (seja do software, seja da cultura) que se desenvolveram os ‘novos modelos de negócio’, nos quais as liberdades são mantidas, mas o circuito de produção mercantil se recompõe. Essa recomposição da produção de mercado se apóia não mais na venda do bem cultural, mas em serviços ligados ao livre acesso ao bem (serviços de instalação, adaptação e manutenção de software; serviços de distribuição; serviços de publicidade ligados ao acesso aos bens; agenciamento de performances ao vivo; etc.). Gerando dividendos não com a venda do bem, que restringe o direito de cópia, mas com serviços relacionados, parte da indústria cultural se adaptou ao fato consumado da ‘livre’ cópia digital distribuída por CDs, DVDs e a Internet.
No entanto, esses novos modelos de negócio ainda subordinam a produção da cultura à lógica mercantil. A cultura continua precisando gerar dividendos, só que eles não proveem mais das vendas de CDs e DVDs, mas da publicidade e dos shows. Como era necessário que dessem lucro aos produtores dos novos modelos de negócio, a cultura foi mais uma vez submetida aos padrões bem sucedidos do mercado, que por reproduzirem esquemas do que foi vendido no passado, dão certa garantia ao investidor de boas vendas no futuro. Dessa maneira, o rebaixamento cultural do modo industrial de produção da cultura continua prevalecendo, ainda que formalmente a cultura seja ‘livre’.
Um movimento de cultura que seja substantivamente livre, precisa fugir efetivamente dos controles do mercado e do Estado. Essa cultura livre, deve, por um lado, ser uma cultura que garanta a diversidade sem se subordinar à lógica de valorização do capital, que é a lógica da indústria cultural e, por outro, ser uma cultura que garanta o livre acesso, o acesso gratuito e não mercantil a esses bens culturais. No contexto de uma sociedade capitalista, que cria todo tipo de constrangimento a esse ideal, a cultura livre se manifesta de forma limitada e antagônica, por meio de táticas com resultados incompletos. Em todas elas, buscam-se formas de subsidiar a produção cultural tentando garantir a liberdade de criação e o livre acesso: Uma dessas táticas é semelhante a dos novos modelos de negócios, só que em pequena escala, com menor intermediação, sofrendo assim menos pressão do mercado. Nessa tática, o criador garante o acesso universal à sua obra por meio de uma licença livre e tenta garantir sua subsistência por meio da venda de serviços ou performances, como a instalação e personalização de um software, shows e apresentações musicais ou aulas e conferências. A maioria desses serviços é organizado em pequena escala, sem recorrer a um intermediador, de modo que o próprio criador controle o conjunto do processo;
Outra tática consiste em buscar o financiamento público, garantindo a emancipação do mercado ainda que sob o risco do controle do Estado. Há experiências relativamente bem sucedidas de financiamento público das atividades culturais, que oferecem fomento ao exercício da atividade e não à entrega de produtos específicos, como livros, apresentações ou shows. O controle político da criação também pode ser mitigado por meio de instrumentos de “controle social”, como conselhos não estatais de seleção de beneficiários;
Uma terceira tática consiste na "desprofissionalização" da cultura, que não sendo uma atividade profissional e não precisando gerar dividendos, pode ser livremente exercida e ofertada ao público. Essa tática tem também a vantagem de, uma vez difundida, democratizar a produção, embora tenha a notável desvantagem de não poder se estender àqueles que não dispõe de tempo ou de recursos próprios e de impedir a dedicação integral à produção artística;
Por fim, há também a tática que consiste em estimular uma espécie de mecenato público por meio de doações voluntárias. Nela, os bens são livremente ofertados, mas solicita-se uma contribuição voluntária, uma doação, que não sendo obrigatória, não impede o acesso universal. É, portanto, um meio de desvincular o apoio à arte e à cultura da possibilidade ou não de seu acesso. Essa tática tem como conseqüência adicional fomentar a solidariedade ativa. Como desvantagem, quando por qualquer motivo é mal-sucedida ela pode impedir ou punir iniciativas de qualidade que dependam financeiramente dela para se manter.
Todas essas táticas não são livres num sentido pleno. Elas são limitadas e constrangidas pelas formas atuais do mercado e do Estado. Elas só podem ter um potencial emancipatório se se colocarem como experimentos parciais de novas relações sociais, antagônicas à produção cultural dominante baseada na mercantilização, na reprodução de esquemas e no controle político. Uma cultura livre, no sentido substantivo e pleno, só é possível numa sociedade livre. Mas a cultura livre que está sendo desenvolvida nas novas táticas que enumeramos e ainda noutras pode ser um gérmen fecundo da sociedade que queremos, se estivermos comprometidos em separar esses experimentos de liberdade substantiva, da liberdade mercantil dos novos modelos de negócio.

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