Giulio Sapelli
Tradução: Josimar Teixeira
Este ensaio faz parte de Gramsci e il Novecento, obra publicada em 1999 na Itália e não traduzida entre nós. Trata-se da compilação dos anais do seminário de mesmo nome realizado em Cagliari em 1997, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte do pensador italiano. Para uma visão global dos ensaios apresentados naquele seminário, recolhidos no livro mencionado e aqui traduzidos, o leitor deve partir da introdução escrita por Renato Zangheri.
Sobre a luta contra o “bloco demográfico reacionário”
Reler Americanismo e fordismo de Antonio Gramsci [1] significa, hoje, refletir sobre a mundialização mais da sociedade, das sociedades, do que unicamente das economias: se o século XX foi o século da mundialização da economia, o século XXI será o século da mundialização dos sistemas sociais.
Este é o primeiro ponto de perspectiva, ao mesmo tempo de continuidade e ruptura, que nos assalta quando voltamos a meditar naquelas páginas:
Mas o problema não é saber se na América existe uma nova civilização, uma nova cultura, mesmo que ainda no estado de “farol”, e se elas estão invadindo ou já invadiram a Europa: se o problema tivesse de ser posto assim, a resposta seria fácil: não, não existe, etc., e, de resto, o que se faz na América é apenas remoer a velha cultura europeia. O problema é este: se a América, com o peso implacável de sua produção econômica (isto é, indiretamente), obrigará ou está obrigando a Europa a uma transformação radical de sua estrutura econômico-social demasiadamente antiquada, o que ocorreria de qualquer modo, ainda que com ritmo lento, mas que, ao contrário, se apresenta desde já como um contragolpe imediato da “prepotência” americana; ou seja, se está ocorrendo uma transformação das bases materiais da civilização europeia, o que a longo prazo (e não muito longo, já que atualmente tudo é mais rápido do que no passado) levará a uma transformação da forma de civilização existente e ao nascimento forçado de uma nova civilização [2].
A profecia de Gramsci surpreende pelo fato de pôr drasticamente o problema: não cross fertilization, mas “contragolpe” e “prepotência” entre dois sistemas sociais. Um — diz o nosso autor —, livre dos entraves do sistema feudal e do enquistamento parasitário de camadas e de classes não diretamente ligadas à produção; outro, ao contrário (e não só a Europa, mas também a Ásia, que hoje está tão perto de nós), no qual a ascensão industrial nas suas várias formas se deu ao lado das raízes do passado e da reatualização forçada do parasitismo estatista dos sistemas de status mais do que de contrato.
A velha e gloriosa formulação de Stuart Maine (from status to contract) era, e é, também uma sinalização invertida da análise de Gramsci (e minha). A história nos demonstra que na grande maioria das nações vai-se, ao contrário, from status to... status, porque a lógica e as relações sociais contratualistas custam a afirmar-se sempre que o achievement é minoritário e a alocação adscrita ao poder é muito sólida.
Em definitivo, a profecia de Gramsci nos ilumina sobre a “revolução passiva” constituída pela resistência europeia e asiática ao predomínio do capitalismo anglo-saxão em escala mundial. Ela se exerceu de vários modos. O mais importante não foi a resistência da cultura europeia, e sim a política militar e econômica de resistência europeia, com apoio norte-americano, ao predomínio do stalinismo em escala internacional, como se revelou dramaticamente com a crise de Berlim, na Coreia e no Vietnã, no Afeganistão.
A lógica do capitalismo de mercado único explicitado (a “prepotência” do capitalismo “americanista”) gramsciano não podia, por motivos precipuamente políticos em escala mundial, explicitar-se enquanto o confronto com a URSS e o sistema reunido em torno dela era o imperativo categórico.
Mas entre o final dos anos oitenta e o início dos noventa do século XX vêm à luz contradições decisivas do sistema político e econômico mundial, e a profecia gramsciana se realiza, está se realizando.
Quais são as condições desta passagem da “revolução passiva”, da resistência oposta por um sistema já exausto, como o europeu, para o avanço irresistível do “americanismo”?
A primeira delas é o colapso, que não mais se pode deter, da economia burocrático-estatizada de origem leninista e staliniana, que tinha na URSS o seu centro. Só as pequenas áreas da Coreia do Norte e de Cuba, por um lado, e a imensa potência da China ditatorial, de economia mista e predominantemente estatizada, por outro, resistiram até agora a este colapso.
De todo modo, ele livra de qualquer entrave o capitalismo liberista norte-americano e anglo-saxão, que parte para a conquista da reprodução ampliada do capital em escala mundial. Na Europa, isso implica a neutralização definitiva da hegemonia alemã, sob o manto da moeda única — que enfraquecerá o marco — e da liberalização impetuosa do mercado de capitais, que diminuirá imensamente o poder, até hoje enorme, dos bancos centrais europeus continentais, em primeiro lugar do alemão.
Afinal e beneficamente, a longa história da economia europeia, baseada nos Estados nacionais, encaminha-se, portanto, para o seu término.
A segunda condição, paradoxalmente, é a diminuição do crescimento econômico nas áreas em que ele historicamente se adensara, Europa e Estados Unidos, precisamente, e o fôlego que tem, inversamente, nos países da Ásia e do Pacífico. Este crescimento impetuoso é a condição mais favorável a fim de que o “americanismo” como forma social possa se afirmar também na Ásia. Aqui, no entanto, as revoluções passivas a serem efetivadas pelas velhas classes do capitalismo asiático (que defino como ersatz capitalism) serão bastante fortes, e a batalha será cruenta e incessante, até pelo papel que nelas desempenhará, para usar os termos gramscianos de Americanismo e fordismo, com todo o seu peso regressivo e reacionário, a China.
Que o modelo interpretativo gramsciano tenha uma notável capacidade heurística é o que se deduz dos acontecimentos europeus mais recentes.
Na Europa, a diminuição do crescimento coincide com o Tratado de Maastricht, de 1990, que impõe uma disciplina liberal extremada, que impede usar a despesa pública como apoio à produção e aos serviços e, portanto, lança as bases para uma redução drástica da dívida pública, com a derrota da inflação.
Na Europa, a dívida pública foi, e é, a quintessência do neopatrimonialismo (ou seja, do saque do Estado por parte de grupos especuladores e clientelas políticas) e do capitalismo político-fraudulento (ou seja, do oligopólio que se mantém graças ao entrelaçamento perverso da apropriação privada e da socialização das perdas, ao se difundir a corrupção econômica e política). E são precisamente aquelas camadas e classes de que fala Gramsci que se põem à frente do neopatrimonialismo e do capitalismo político-fraudulento. Ele as discute na “composição demográfica europeia” em contraste com a difusão do fordismo e do americanismo “progressistas”. O fato de serem progressistas sempre foi esquecido nos estudos sobre o “americanismo”, uma vez que os exegetas sempre se colocaram ao lado da reação e da regressão de esquerda (tão forte e perniciosa quanto a de direita).
O próprio clientelismo, na ótica que aqui proponho, é um elemento da regressiva e reacionária composição demográfica que tem fortes raízes no domínio das classes dominantes asiáticas e europeias. Elas asseguraram o crescimento — por um tumultuoso e rápido período, as primeiras, e por um longo e estável período, as segundas. Mas sob o peso e também por meio da composição demográfica reacionária: agora dela devem se livrar, sob pena de nova diminuição do próprio crescimento e de contraposição frontal e desastrosa com o capitalismo anglo-saxão, cuja colaboração, por outro lado, é indispensável para todas as classes do velho sistema demográfico regressivo. Basta pensar no que aconteceria nos Bálcãs se os Estados Unidos não tivessem intervindo... e no que aconteceria no Vietnã e no Camboja se eles não desempenhassem, com outros meios, o mesmo papel...
O que o capitalismo anglo-saxão agora quer é a vitória do contrato e a declinação minoritária das relações sociais baseadas no status. Isso tem reflexos imediatos sobre a composição demográfica da sociedade. É a relação de status que está na base do financiamento do gasto improdutivo e assistencial menos em apoio aos pobres e desempregados do que às rendas financeiras, em detrimento do trabalho produtivo. Ostatus é o sustentáculo para financiar o gasto público sem limite algum, obtendo um enorme consenso em todas as classes sociais, que, no aumento das taxas de juros da dívida pública, veem uma renda constante e sem riscos, de modo a fazer render as poupanças acumuladas com muito esforço, ou então, fenômeno social bem diferente, a aumentar as especulações e os lucros que fazem florescer fortunas repentinas.
Aqui está a raiz do grande conflito com o “americanismo”, que agora, desmantelada a URSS, pode se explicitar plenamente. Tudo isso explodiu no conflito dilacerante em nível mundial nos anos oitenta, mascarado pela disputa sobre as taxas de rapidez da abertura dos mercados mundiais. Diante de um crescimento econômico ainda sustentado, em vez de usar os recursos deste crescimento para modernizar o sistema capitalista na sua reprodução ampliada, as classes dominantes políticas, industriais e financeiras do velho bloco demográfico regressivo se enredaram na gestão de um poder oligopolista e oligárquico, que aumenta os privilégios corporativos e desarruma as finanças do Estado. Alimenta-se, em lugar da iniciativa empresarial baseada no risco, uma cultura da renda e do lucro a curto prazo que tem efeitos devastadores sobre a sociedade e as próprias empresas, que veem aumentar suas já fortes tendências ao puro rendimento financeiro imediato, em detrimento de iniciativas corajosas voltadas para criar ao mesmo tempo lucro e trabalho.
Mas, certamente, as potências financeiras e estatais internacionais anglo-saxãs que guiam o processo mundial da globalização não podem se permitir tolerar que uma parte das grandes potências do epicentro histórico e recente da industrialização mergulhem na regressão social e demográfica.
Isso é evidente na Europa. Ela não só é um grande mercado, mas é também, e sobretudo, um continente que tem um papel essencial no Mediterrâneo, no “flanco Sul” da Otan. Papel que é cada vez mais decisivo, como o demonstraram as crises que explodiram, pelo controle das fontes de provisão petrolífera, no Oriente Médio, e mais recentemente na ex-Iugoslávia, pelo surgimento de fascismos bárbaros das classes dominantes balcânicas com base de massas.
Eis o tratamento imposto a partir de fora à economia europeia e às suas classes que, ao contrário, pensavam poder continuar o crescimento com o modelo reacionário.
Agora as autoridades invisíveis do capitalismo financeiro internacional — que substituiu o industrial e bancário de matriz nacionalista — impõem aos governos um caminho diverso de crescimento.
Ele é bastante semelhante, em alguns pontos, ao que marcou o crescimento rapidíssimo dos anos cinquenta e sessenta: diminuição do consumo privado e dos rendimentos, abertura ao exterior, gasto público reduzido, baixa inflação. As novidades são, agora, o aumento da pressão fiscal para conter a dívida pública e a diminuição do gasto público, junto com um programa de privatização que começa com muita dificuldade, mas que não se interrompe. Trata-se de uma autêntica virada.
As consequências foram devastadoras.
De fato, há uma diferença ainda mais profunda em relação ao passado: agora o crescimento do emprego industrial e dos serviços é rarefeito e, em geral, é muito rarefeito o novo emprego. O desemprego se espraia com índices elevadíssimos entre os jovens em busca de um primeiro emprego, com uma acentuação das desigualdades territoriais.
A questão historiográfica, sociológica e antropológica é compreender, de fato, como e por que a sociedade europeia foi ao encontro destes dramáticos e imensos desafios quase sem se dar conta, acreditando no mito da modernização indolor e baseada no desperdício, na ilegalidade difusa e no abandono de toda e qualquer responsabilidade pessoal e coletiva.
As classes dirigentes políticas, por exemplo, foram destruídas, na Itália mais do que em outros lugares, pela sua incapacidade de se revelarem como tais, antes do que pelos juízes que perseguiram a corrupção e, com ela, o sistema de poder que se mostrou incongruente com os imperativos da globalização: subordinaram-se à incivilidade da sociedade, em vez de serem o melhor guia emancipador desta.
No entanto, o problema desta grande “ilusão” coletiva permanece.
E muitas são as razões disso. Mas este não é o lugar para enfrentar este tema.
A nova produção e a nova “composição demográfica”
Mas, ao lado deste tema decisivo, há um outro núcleo decisivo do pensamento de Gramsci que se reflete em Americanismo e fordismo. Ele convida, antes de tudo, a refletir sobre a chamada experiência fordista, a qual era caracterizada pela forte integração entre normas de regulação social (estilos de vida e práticas de trabalho), processos tecnológicos de fabricação e modelos organizativos.
O fordismo foi capaz de estabelecer uma espécie de convergência virtuosa entre estes paradigmas, ou seja, entre estes processos de organização da sociedade e das pessoas que nela elaboravam seus universos simbólicos e suas práticas de trabalho. É importante sublinhar que neste sentido o que se costuma chamar de fordismo abrangeu, com suas regras e seus costumes, seja a ordem social globalmente entendida, seja a ordem produtiva. Esta última se pôs no centro da primeira, submetendo as pessoas não só às regras da parcelarização e da racionalização instrumental do trabalho, mas oferecendo a elas novos níveis de consumo e de ampliação do teor de vida mais geral. Esta convergência entre produção e ordem social se realizou nos pontos mais altos do desenvolvimento industrial capitalista, com formas e medidas bastante desiguais: se nos EUA se efetiva no transcurso da Primeira Guerra Mundial, na Itália, por exemplo, somente se realiza nos anos sessenta, ao passo que os novos países industrializados de que hoje tanto se fala só agora experimentam, em especialíssima e excepcional medida, suas circularidades que ligam a economia à sociedade e ao poder.
Esta circularidade ou esta convergência era assegurada pela excepcional correspondência que se realizara entre a expansão dos mercados e a programação rígida da produção em grande massa. Ela era típica do fordismo, que é, não o esqueçamos, o taylorismo a que se acrescentam níveis mais ou menos elevados de consumo típicos de sociedade em rápido crescimento.
Este modelo se rompe na época da grande depressão de 1929, para em seguida se reconstituir com a conjuntura coreana de 1951, com altíssimas taxas de crescimento do comércio mundial e da industrialização, que duram até a nova crise de 1973. Esta última não se explicita no colapso da economia descentralizada, como ocorreu em 1929, mas na sua reestruturação global, com forte redefinição das relações que gradualmente se instituíram depois da grande depressão entre mercado, Estado (com a ampliação crescente da sua intervenção) e produção.
Em definitivo, o fordismo veio se constituindo como um sistema de convergências rígidas entre estes fatores, convergências garantidas pela estabilidade do crescimento, a baixa turbulência dos mercados, o papel fortíssimo do Estado no tocante quer aos financiamentos às empresas, quer às transferências de renda para as famílias, ou então aos serviços universalistas de apoio típicos do Welfare State — “não à italiana”, ou seja, não assistencial e corporativo.
Como demonstra eficazmente a reflexão científica, o novo modelo de fabricação que, em vez disso, emerge das vísceras da produção industrial mais avançada é a resposta que do mundo do trabalho e da direção das empresas é dada à crise daquele modelo de convergências, quando aquela rigidez se torna insustentável. De fato, na base do novo modelo de fabricação está a chamada “produção flexível”, ou seja, uma produção que resolve o problema perene da redução de custos com um uso “frugal” da automação e um uso “impiedoso” do tempo. O uso frugal da automação deriva das falhas da fábrica completamente robotizada: falhas impostas pela não mais existente convergência entre solvência da demanda e produção de massa. Agora ela opera com escassíssima intensidade de trabalho humano e altíssima intensidade de capital fixo — as turbulências dos mercados e os níveis competitivos impõem um grau de flexibilidade que não é possível obter com nenhuma automação integral até agora, a não ser com custos altíssimos. O uso impiedoso do tempo, ao contrário, é derivado do fato de que a nova flexibilidade se baseia na integração dos sistemas com escassíssima redundância e escassíssima produção de rejeitos de qualquer tipo: dos produtos ao tempo, exatamente, porque o imperativo da redução de custos é agora o da redução dos desperdícios numa integração cada vez mais perfeita e obstinadamente perseguida entre os diferentes sistemas da fabricação e, pois, da produção. A variabilidade dos mercados e, portanto, da massa produzida deve ser enfrentada com uma flexibilidade global alcançada através de um processo de criação de flexibilidades locais igualmente importantes e igualmente decisivas. Tais flexibilidades são necessárias porque se opera, ontem e hoje, sempre sob o íncubo da sobrecapacidade produtiva e da universalidade do pressuposto stigleriano de que as formas da divisão do trabalho e as formas da ampliação dos mercados estão estreitamente interligadas.
Na ruptura do velho cenário geral (agora o crescimento não é mais sustentado e contínuo, mas baixo e inconstante), permanece o princípio de continuidade entre velho e novo modelo: o trabalho e suas regras devem ser prescritos, ou seja, programados e incorporados na tecnologia e no sistema de normas que os homens que trabalham tomam como suas.
No entanto, hoje, uma prescrição técnica altamente difusa está substituindo a prescrição simultaneamente burocratizada e pessoal, típica do controle taylorista e delegado (os departamentos de tempo e métodos e de pesquisa operativa). Tão difusa, que se torna autocontrole e autopreservação dos tempos e dos ritmos, uma vez que sejam definidos os objetivos.
A produção “flexível” emerge de um princípio geral de convergência entre tecnologia, organização e regras sociais que corretamente se chama de “sincronismo adaptativo”. Sublinha-se assim a contínua busca da própria convergência, não mais deterministicamente estabelecida e predeterminada. Convergência que deve basear-se na simplificação das operações e, ao mesmo tempo, na alta flexibilidade do desempenho dos homens e das máquinas.
Enquanto no fordismo prevalecia um princípio homeostático, ou seja, de contiguidade e homogeneidade de longo prazo, o “sincronismo adaptativo” propõe-se realizar continuamente a integração da empresa com o mercado, desafiando a turbulência deste último. Se no modelo da precedente produção de massa era possível separar a produção do mercado e do ambiente por meio do sistema de estoques e proteção diante dos mercados, agora esta separação não só não é mais possível, mas sequer é buscada, graças às novas possibilidades oferecidas pelas prescrições técnicas e pelas performances tecnológicas.
Naturalmente, esta sincronização entre empresa e mercado a partir da nova fabricação impõe a realização de algumas profundas modificações do contexto social em que tal preconizada sincronização deve se realizar. Enumero algumas delas. No nível das instituições, implica uma integração bastante estreita entre Estado e mercado, com o Estado que não ocupa, mas regula os mercados e sustenta as empresas no plano da obtenção dos imensos recursos financeiros necessários aos grandes investimentos em capital fixo e em formação dos recursos humanos que são indispensáveis para fazer progredir o novo modelo.
No que se refere à política econômica, é necessário garantir quotas de crescimento do comércio mundial e de expansão dos mercados capazes de sustentar a convergência entre empresa, produção e mercado. Se ela não se determina certamente num nível tão alto como no caso do fordismo, em todo caso é ainda hoje um requisito indispensável para fazer com que o novo modelo se realize: o “sincronismo adaptativo” funciona a partir de certos níveis de avanço dos percentuais de crescimento do comércio mundial, senão se interrompe e pode ser substituído pela desordem.
As regras institucionais que sobredeterminam a fabricação e a produção devem cumprir uma passagem decisiva da lógica conflitiva para a lógica cooperativa, quer em nível operário, quer em nível sindical. No primeiro caso, realizaram-se a este propósito importantes pré-requisitos com a redução do esforço, do mal-estar no trabalho provocado pela fumaça e a poeira. Mas ao mesmo surgem novos obstáculos: pede-se ao operário que participe da ampliação das suas tarefas de trabalho e de responsabilidade, muitas vezes diante de um abaixamento dos níveis salariais e de uma ainda confusa identificação dos perfis de carreira. Eles eram muito mais evidentes na rígida, mas certamente menos insegura, organização taylorista. A desierarquização é um custo e não somente uma oportunidade para aquele que se vê alcançado por ela: o que muito frequentemente se esquece.
E aumenta o risco de que pouco a pouco, em lugar da participação, difunda-se a anomia, ou seja, um distanciamento afetivo, o não reconhecimento emotivo, a substituição das lógicas expressivas pelas práticas instrumentais: o sistema de prescrição técnica e de participação operária seria ferido mortalmente por isso, com o bloqueio do “sincronismo adaptativo” a partir exatamente da sua célula elementar, ou seja, da fabricação.
É dramático observar o que acontece no Japão, com a lenta, mas irreversível, desagregação do modelo, a partir das normas sociais. Isto contradiz finalmente, diante dos olhos de todos, aquilo que haviam assegurado — a quem acreditava piamente... — imprevidentes apologistas à Ronald Dore, e, ao contrário, confirma o que nos haviam dito — sem serem escutados pelos intelectuais e pelos administradores à la page — prudentes cientistas, como Morishima. Por este motivo, como nos ensina o exemplo alemão da participação especializada e negociada, um grande papel para sustentar o modelo e impedir sua desagregação na anomia pode ser desempenhado pelas organizações sindicais, desde que se estabeleçam irreversivelmente nos limites da codeterminação. E pode ser desempenhado, naturalmente, pelos managers, desde que se estabeleçam irreversivelmente na construção social das regras da “lealdade”, em vez da “fidelidade”.
Como se vê, os problemas são múltiplos e as interrogações, ao fim de uma nova meditação sobre Americanismo e fordismo, se multiplicam e se intensificam.
O mais relevante é aquele relativo à possibilidade de realizar o “sincronismo adaptativo”, criando um círculo virtuoso entre as muitas racionalidades “locais” ou de sub-sistema, no nível das unidades produtivas (o que já é bastante difícil de ser realizado), e a racionalidade geral que, ao que parece, deve sustentar um tal modelo de integração.
Ela se explicita na necessária correspondência entre: demanda e oferta; aceitação e prescrição das regras; necessidade de criar continuamente novas competências e necessidade de dispor delas para fazer funcionar o novo modelo. Tal correspondência é um paradoxo: nasce no contexto da revolução liberista ditada pela nova competição, mas, tão logo se realiza, ainda que dessa magmática maneira que vemos se desenvolver sob nossos olhos, reclama uma integração mais forte entre planificação e mercado, entre hierarquia e descentralização, e, pois, uma nova articulação da rede de relações sociais de produção. Uma articulação que não se detém, com sua lógica, nem mesmo diante da presente e consolidada estrutura dos mercados dos direitos de propriedade. É preciso ser até o fundo consciente desta contradição e dos mecanismos que poderia deflagrar, para não evocar forças produtivas e sociais que poderiam ser incontroláveis.
Aqui reside a contradição futura.
A função progressiva do “americanismo” deve ser levada até a discussão dos direitos de propriedade, ou então resulta, de modo involutivo, na penetração absoluta do mercado, que é bastante diferente da benéfica tensão no sentido de mercados menos imperfeitos.
O mercado é providencial para destruir o velho mundo, mas não pode criar sozinho o novo.
O exemplo disso está na incapacidade, que aparece como epifania, por parte do novo mercado de transformar em fonte de valor toda a força de trabalho disponível.
Mas o novo modelo produtivo tem em si mesmo, se for liberado dos arcaicos e pequenos vínculos proprietários, os modos para resolver o problema do desemprego estrutural, que é agora a face dramática da composição demográfica.
Todavia, muito frequentemente se esquece que tal problema não se resolve evitando enfrentar o nexo entre produção e produtividade (segundo, seja-me perdoada a ênfase, quase diria, o modelo não escutado — à esquerda — de Antonio Gramsci e a linha produtivista que lança suas raízes em L’Ordine Nuovo).
Só enfatizando este nexo e deixando a produtividade livre para se manifestar em toda a sua potencialidade criadora, e não só destruidora, se poderá lentamente reagir à destruição do trabalho. É indiscutível que o espírito do capitalismo não conduz inevitavelmente ao pleno emprego, mas à busca de tudo aquilo que pode contrariar a queda da taxa de lucro. Mas tal busca pode se traduzir num novo e colossal crescimento, se o aumento da produtividade e, pois, da competitividade puder se manifestar novamente em todo o seu potencial liberatório. A globalização é uma formidável oportunidade a este propósito, porque permite um caminho de crescimento para as novas empresas e as novas atividades econômicas que a liberalização dos mercados traz consigo. Certamente, se, num mundo já fundamentalmente terciarizado, as resistências mais ferozes à liberalização se manifestam precisamente no setor dos serviços (como demonstram os episódios sobre as telecomunicações, em que o nó górdio foi cortado somente pela espada norte-americana), então aquela relação entre aumento da produtividade e criação de novas oportunidades de desenvolvimento e de emprego não pode ser iniciada.
O fetiche não é a desregulamentação ou a flexibilidade. O problema são os custos sociais que o entrelaçamento de rendas parasitárias, protecionistas e corporativas faz pesar sobre o conjunto dos fatores que, ao contrário, poderiam restabelecer um mecanismo virtuoso entre aumento da produtividade e aumento do emprego. Só deste modo não nos retraímos, paralisados, diante do modelo norte-americano. Certamente, ele produz desigualdade e fissura social; certamente, ele ameaça marginalizar setores inteiros da sociedade, mas, ao mesmo tempo, revela uma excepcional capacidade de reprodução e resistência criativa diante dos desafios tecnológicos e do dumping social que emanam do novo capitalismo asiático. Este último é muito mais regressivo sob todos os aspectos — pensemos exatamente nos direitos sociais, civis, políticos — do que o norte-americano. Este último, em definitivo, responde de forma não desindustrializante ao desafio da abertura dos mercados, que na verdade promove e propugna beneficamente. Deve-se, pois, não só estudá-lo atentamente, mas criativamente adaptá-lo à nossa cultura histórica europeia.
De que modo? Através da cooperação entre empresas e entre instituições em escala internacional para criar novas regras de apoio social e coesão das sociedades. Tais regras deverão ser, no crescimento da competitividade social e econômica, em primeiro lugar, as do Welfare mundial reformado.
A alternativa a isso é a desindustrialização europeia: e, então, não teremos nem mesmo as editoras para imprimir os livros e as revistas nas quais expor o dilaceramento das consciências e dos trajes por causa do desespero que produz em alguns o colapso de um mundo que já não se pode reformar nem mais governar com os velhos critérios do Welfareprotecionista e injusto, que penaliza o trabalho e premia as rendas. Um sistema do qual não se pode escapar socializando não tanto a miséria quanto, ao contrário, a queda da produtividade e, portanto, da capacidade competitiva, como muito frequentemente se obstinam em não reconhecer os respeitabilíssimos protagonistas de toda uma época do conflito social e da construção das burocracias de gestão do mesmo: protagonistas dramaticamente incapazes de compreender o novo que avança.
Nestes tempos, assistimos a muitos testemunhos nobres e altos, intensos e participativos, desta dramática incapacidade. É sob esta luz que o pensamento heterodoxo de Gramsci se revela hoje, mais do que nunca, como um benéfico escândalo.
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Giulio Sapelli é professor de História Econômica da Università degli Studi de Milão. Este ensaio foi originalmente publicado como “Uma reflexão sobre o capitalismo da globalização: relendo Americanismo e fordismo”.
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Notas
[1] Este meu ensaio não tem notas bibliográficas de nenhum tipo. Convidado para um seminário tão importante como este cagliaritano de 1997 sobre Antonio Gramsci, só me resta enviar o testemunho intelectual de um estudioso do capitalismo moderno que considera Gramsci mais um companheiro intelectual do que um interlocutor acadêmico: nada mais do que isso. A única nota que quero aqui aduzir é aquela relativa à ainda insuperada edição crítica de Americanismo e fordismo, com introdução e notas de Franco De Felice, publicada em Turim pela Einaudi em 1975; com seu trabalho, o amigo ainda nos interpela, a nós que ficamos.
[2] Ib., p. 110.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
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