segunda-feira, 10 de março de 2014

Giuseppe Cocco: "A esquerda não deve ter medo do conflito social"



Por Nuno Ramos de Almeida

Para Giuseppe Cocco, a esquerda no poder na América Latina não fez nada do que se propunha, mas apesar disso é responsável pela criação de condições que levaram às manifestações no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Parecem enquadrar-se naquela frase de “Fausto”: “aquelas forças que sempre quiseram o mal e sempre fizeram o bem”. Nuno Ramos de Almeida faz de advogado de Diabo numa conversa com o acadêmico para quem o poder não passa pelos governos.

Participou numa das conferências da Gulbenkian abrigadas pelo nome comum de "Próximo Futuro", num painel que tinha como tema, bastante atual: "A economia dos movimentos sociais urbanos - Protesto e Revolta em Maputo e no Rio de Janeiro de Hoje". Este acadêmico italiano que esteve exilado em França vive e trabalha no Brasil. Autor de várias obras, a mais conhecida é um livro que escreveu a meias com o filósofo italiano Antonio Negri: "Global - Biopoder e Lutas Numa América Latina Globalizada", a conversa partiu deste trabalho e foi até à revolta na rua que eclodiu em Junho de 2013 no Brasil.

Há mais ou menos dez anos escreveu em colaboração com o filósofo Antonio Negri um livro em que tinham uma perspectiva positiva do advento dos governos de esquerda na América Latina. O que é que falhou?

[Risos.] O que é que falhou? É uma boa pergunta, a gente poderia dizer que, dez anos depois, o que está acontecendo no Brasil, nomeadamente esta revolta de Junho de 2013 que continua até hoje e que se anuncia dinâmica e poderosa, pelo menos até à Copa de 2014, poderia ser um sinal que erramos na análise. Eu acho que não. O Negri e eu apoiávamos em artigos de imprensa o governo Lula, mas também o do Néstor Kirchner, na Argentina, e o de Evo Morález, na Bolívia...

E também o do Chávez?

Não, em relação ao Chávez nunca tivemos uma grande expectativa. Contrariamente ao pessoal que era crítico do Lula e do Kirchner e que era mais favorável ao Chávez como modelo, a gente achava estarmos perante um modelo demasiado dirigista. Apesar disso, visitei a Venezuela uma vez com Negri, Michael Hardt e Sandro Mezzadra. O nosso apoio era muito particular, a gente apoiava estes governos na imprensa, o que os deixava agradados, mas com argumentações que deixavam incomodadas as forças de esquerda que hegemonizavam estes governos.
Em que medida aquilo que aconteceu em Junho de 2013 pode confirmar a nossa análise? Se nós estivéssemos errados no que escrevemos, isso podia significar que as manifestações de Junho eram um movimento de revolta contra o PT [Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula, que está no poder no Brasil], em segundo lugar, essa revolta contra o Partido dos Trabalhadores deveria estar a dar um prémio à oposição de direita - como paradoxalmente o governo desejava para poder estigmatizar o movimento.

Mas não houve uma inflexão dos grandes grupos de comunicação ligados à direita? Na "Veja" e na "Globo" começaram por dizer que os manifestantes eram uns selvagens para passar a dizer que se assistia a uma revolta da classe média contra a corrupção do PT...

Esse fenómeno foi marginal e correspondia a uma expressão de um desejo por parte da direita, mais que uma realidade. Mas repare, se não foi a direita que capitalizou o movimento, nós poderíamos dizer que seria a extrema-esquerda, a chamada esquerda de oposição ao PT, e isso não aconteceu. Pelo contrário, a esquerda da oposição que sempre tinha criticado o PT, quando ela se apresentou nas ruas, no momento mais massificado do movimento, ela apanhou mesmo.

Mas isso não o preocupa, nós chamamos em Portugal a este discurso mais populista "o discurso do taxista", que é contra os políticos em geral, põe tudo no mesmo saco e se confunde com uma expressão antidemocrática...

Todo o momento de violência pode ser inquietante, aí a gente fica ou com a ordem, com o Tocqueville, dizendo que a tradição ou a cultura se vai e todos os valores desaparecem, ou a gente fica com o sorriso da criada [alusão a uma historieta contada por Tocqueville, em que o dono da casa, e os seus convidados, estavam a comentar assustados o barulho dos tumultos contra os ricos, que se escutavam ao longe, e descobrem com pavor o sorriso cúmplice com os revoltosos da criada da casa]. A esquerda não deve ter medo do conflito social. Deve estar dentro. O que aconteceu em Junho não foi nem uma conspiração de direita, nem um movimento da extrema-esquerda, o que significa que nós (eu e o Negri) não estávamos errados. Nós apoiamos o governo Lula não por causa do seu reformismo ou o seu projeto para uma estratégia de desenvolvimento nacional. Pelo contrário, nós apoiamo-lo pelos limites que ele tinha.

Mas vocês escreveram duas coisas contraditórias: diziam que o apoiavam pelo poder que eles iam dar às pessoas...

Mas foi isso que aconteceu, foi melhor que a encomenda.

Vocês afirmaram que haveria uma democracia em que as pessoas seriam sujeitos da política e não apenas apoiados com subsídios e afirmaram que esses governos expressavam a construção de uma realidade pós-nacional.
O que se verifica não é exatamente o contrário?

Quando a gente dizia que o governo Lula era interessante porque ele vai acabar dando mais participação. E o PT olhava-nos com simpatia, até nos convidando para falar mas sem perceber absolutamente nada do que dizíamos, o que a gente previa é esse tipo de participação que aconteceu. Ninguém mais previa aquilo que aconteceu em Junho de 2013 e, sobretudo, a forma como aconteceu.
Mas o que era para vocês positivo nesse governo?

O que nos interessava era em primeiro lugar a ausência do modelo. O neoliberalismo mais que a causa de todos os males aparece como o resultado da transformação do capitalismo do ponto de vista do seu regime de acumulação e das suas características globais. Você muda o governo e você continua preso a isso. A Europa que o diga. Depois de ter mudado o governo do Brasil, não dá para argumentar que a conciliação e o oportunismo do PT o tenham transformado num partido neoliberal, isso é absurdo. O que aconteceu é que eles tiveram de conciliar com uma dinâmica material que não conseguiam mudar. Foram obrigados a respeitar os contratos e velar para que não houvesse nenhuma ruptura de política econômica. Mas isso provocou que eles entrassem num total descompasso em relação ao seu discurso de esquerda neodesenvolvimentista.

Mas os que é que os impedia de tentarem fazer algo de diferente?

Eles só tentaram fazer algo dentro de um determinado pacto de regime sem o qual nunca o poder brasileiro teria transigido com a eleição do PT. E fizeram alguma coisa: tentaram fazer crescer a economia e melhorar a distribuição de renda. Fizeram programas sociais e de acesso ao crédito. Isso teve um resultado quantitativo ridículo em relação à dívida social brasileira, mas conseguiram que pela primeira vez no Brasil o PIB crescesse e a desigualdade diminuísse. Segunda mudança que o governo Lula fez foi criar políticas de acesso e de quotas nas universidades e expandir os politécnicos e as próprias universidades públicas. Coisa que nós achamos superinteressantes. Essas políticas mereceram duas espécies de críticas: a da direita, dizendo que estão dando um subsídio que não estimula o trabalho. Para eles, a única emancipação é o emprego - "deixem a gente continuar a explorar as pessoas em termos neoesclavagistas, os pobres". E a crítica da extrema-esquerda que por coincidência era igual, apenas com a diferença que via o trabalho em termos de emancipação pela luta, dizendo que estes apoios não resolviam as desigualdades. Pode-se dizer que estes últimos, em termos estatísticos, tinham razão. Você pega aquilo que foi gasto com "a bolsa família" e com os outros programas sociais e obtém menos de 1% do PIB. Bastante menos que os 6% que são gastos com a taxa de juros da dívida.

E em termos estruturais também tinham razão, porque esses subsídios não alteram o facto de o poder econômico se manter centralizado numa elite muito pequena...

Este 1% não é meramente quantitativo. Juntando o crescimento da economia, mais a alteração do ensino, verificamos uma mobilização dos pobres que não se resume à mobilidade vertical da composição social. Para nós o que há de bom nisso é uma outra mobilização subjectiva, em que os pobres podem afirmar a riqueza dos pobres e a sua centralidade. O PT, em particular com Dilma, só pensava na necessidade de transformar o pobre em rico, formar um nova classe média: o valor estava sempre do lado da riqueza e do capitalismo. As manifestações de Junho vêm dizer que existe uma outra riqueza, que não é a mobilidade estatística, que é a mobilização. Quer dizer, o processo de produção de subjetividade. O capitalismo contemporâneo e cognitivo mobiliza os pobres enquanto pobres, faz isso nas cidades, entre as redes [sociais] e as ruas, mas também estas mobilizações se fazem entre as redes e as ruas. Havia montes de movimentos menores de resistência e de multiplicação de críticas no Brasil: dos índios, dos operários, da gente contra as barragens, dos estudantes, dos professores, dos favelados removidos por macroeventos, todos esses movimentos menores não incomodavam eleitoralmente o PT. Em 2013 se juntaram na luta pelos transportes criando uma nova centralidade.

Mas isso em que é que confirma as vossas previsões?

Com Lula houve a aceleração de uma outra coisa que aqueles que fizeram as políticas não previam, nem têm a vontade de entender, que é uma mobilização da produção de subjetividades que confirma as teses que Negri e eu tínhamos escrito há dez anos. E mostra que o neodesenvolvimentismo de Dilma é uma ilusão. No período Dilma, quando depois da crise de 2006-2008 ela era ministra da Casa Civil [o equivalente ao primeiro- -ministro], defendia-se que o capitalismo financeiro está em crise, vamos voltar ao capitalismo industrial neodesenvolvimentista, criar uma nova classe média para consumir e desenvolver uma indústria nacional. A receita eram subsídios a empresas, megaobras e megaeventos. Não deu certo. A situação econômica no Brasil demonstra que isso é ilusório. A esquerda do PT, inclusive sectores do PSOL, pensa que a Dilma era mais à esquerda que o Lula, porque está baixando a taxa de juro. Resultado, nós hoje estamos no Brasil com uma taxa de inflação enorme e com as taxas de juro mais altas do mundo. Estamos numa situação pior, do ponto de vista macroeconómico, do que estávamos com Lula.

Mas essa nova produção de subjetividade não altera o facto de o poder econômico continuar na mãos dos mesmos de sempre.

Mas isso não se altera a partir do governo. A questão é a seguinte: há um problema da esquerda em relação às suas concepções dialécticas e positivistas que não é um problema meramente filosófico, mas mesmo como ela funciona. Quando a gente passa do Norte para o Sul, do desenvolvimento para o subdesenvolvimento, este vício de forma aparece de maneira mais nítida. O erro está em pensar que quando você está no subdesenvolvimento devia bater-se por incluir essas massas que o capitalismo não gostaria de incluir. O que é, a meu ver, uma grande estupidez. O capitalismo, desde que ele existe, é um modelo de inclusão. O primeiro grande objectivo do capitalismo é tornar-se sistema-mundo, como diz Wallerstein. Ele organiza em torno da propriedade dos meios de produção, estratificando, fazendo com que até a exclusão permita incluir os excluídos de uma forma ainda mais subordinada. Existe toda uma literatura sociológica que trata as massas urbanas brasileiras como massas descartáveis, como se houvesse quase uma dimensão imoral do capitalismo que quer eliminar essas pessoas.

Mas a exclusão não é historicamente a base da inclusão?

No Brasil, por causa da Guerra Fria, do bloco da elite e da biopolítica, houve um bloqueio do processo da reforma agrária que não tem, em si, nada de revolucionário. A reforma agrária é um processo de racionalização interna que começa na França com a Revolução Francesa. O que aconteceu no Brasil por um conjunto de razões históricas ligadas ao neoesclavagismo e à dimensão racista da sociedade brasileira foi que houve foi um bloqueio a essa racionalização. Aqui a reforma agrária não aconteceu e ela assumiu a forma do êxodo rural. As lutas agrárias que poderiam ter proporcionado a criação de uma pequena propriedade burguesa eficaz, no desenvolvimento de um capitalismo nacional, foram bloqueadas por razões internas e internacionais relacionadas com a Guerra Fria e a luta contra o comunismo. Resultado: todo o mundo foi para a cidade.

E o que é que se passou com estas pessoas?

Foi em grande parte esse processo de êxodo que formou as favelas, que têm essa dupla dimensão: são o fruto dessas relações raciais e racistas de desigualdade de produção de bloco de biopoder esclavagista. E ao mesmo tempo expressam a resistência do êxodo.

E por que é que a perspectiva de esquerda de incluir os favelados é errada?

A perspectiva neodesenvolvimentista é transformar toda essa massa de gente em operários a partir de um processo de proletarização. As várias correntes de esquerda que foram para dentro do PT têm fundamentalmente essa cabeça: criar um capitalismo nacional que absorva os favelados e os torne proletários. O que acontece é quando isso tinha de suceder. Nas décadas de 80 e 90 houve a crise da dívida e toda a expansão econômica promovida pelo regime militar foi por água baixo, impediu essa dinâmica. E não dá para voltar ao passado, o facto é que o capitalismo não é mais industrial. Quanto mais você moderniza, menos você industrializa no sentido tradicional do termo.

Mas essa tese do desaparecimento da classe operária não embate na sua deslocalização para países como a China?

O facto de haver centenas de milhões de trabalhadores nesses países não altera o facto de que a produção de valor se deslocou para as atividades do capitalismo cognitivo. A inserção do Brasil na globalização é irreversível, independentemente da retórica nacionalista da Dilma e de um governo em que o mais nacionalista é o ministro dos Desportos do PC do B (Partido Comunista do Brasil) que organiza a Copa e as Olimpíadas. A grande defesa da nação transforma-se nos interesses da FIFA, que é o que tem de mais ruim na globalização. É o entreguismo aos interesses multinacionais.

No seu discurso, como do Negri, essa globalização que conduz ao império também cria condições para o desenvolvimento das "multitudes" que se opõem a esse mesmo império. Onde é que isso está a acontecer?

Vamos por partes até chegar aí. A Dilma tem várias declarações caricatas em que diz que gosta muito de engenheiros e pouco de advogados. O que é que ela conseguiu fazer? Um urso bipolar não é um urso polar, é bipolar porque é completamente esquizofrênico: por um lado neodesenvolmentista, megaobras colocando dinheiro público nos grandes empresários e dando subsídios à grande indústria, esquecendo-se que a grande indústria no Brasil é multinacional. E por outro lado a ideia de fazer crescer uma nova classe média que é ultraneoliberal. O conceito de nova classe média é produzido por economistas que citam Milton Friedman. Ao querer tudo isso não conseguiu nada. Quando você tem a dinâmica da inflação ela leva a várias coisas, nomeadamente ao aumento dos transportes. Aí você tem Junho. E Junho é a expressão dessas "multitudes".

As lutas contra o aumento dos transportes que explodem em Junho de 2013 têm alguma hipótese de transformar as coisas e obter algo de novo? Historicamente verifica-se que muitos dos protestos são cíclicos e depois são facilmente integráveis.

Junho é uma bifurcação, pode ir para pior, mas continua a acontecer.

Ok, é uma bifurcação, mas no melhor dos cenários o que é que estarão a fazer daqui a um ano?

Primeiro aconteceu Junho, em si é uma confirmação que não é a afirmação de uma nova classe média, mas nova composição do trabalho, que não é o trabalho da classe operária, nem industrial, mas é um trabalho metropolitano. Fundamentalmente ligado ao que são as dimensões terciárias, do ponto de vista estatístico, ou diríamos ligadas aos trabalho imaterial, numa concepção analítica marxista. Trabalho ligado à educação, aos serviços, etc., e onde a circulação e a questão dos transportes é estratégica. O que fez o PT? Multiplicou na cidade os prédios feios e colocou os pobres na periferia e encheu a cidade de carros, sem fazer investimento nas infra-estruturas. Com uma economia baseada na circulação isso tornou-se uma contradição insustentável, não apenas do ponto de vista abstrato de justiça para os pobres poderem ter um transporte digno, mas no concreto. Por um lado, os pobres são pressionados para serem empregados e terem que circular e do outro ficam duas, três, quatro horas em transportes de merda. É uma contradição material. As pessoas lutam a partir das situações materiais. A questão dos transportes, que teve como espoleta o aumento dos 20 centavos nos transportes públicos, significa que hoje nas cidades brasileiras as pessoas estão saturadas e ninguém aguenta mais. E, finalmente, esta nova composição do trabalho tem hoje a capacidade de se organizar em rede. O movimento de Junho é uma afirmação de autonomia. Sem o MST, os sindicatos e os partidos tradicionais, hoje é possível que se organizem para uma mobilização de grande alcance. E Junho não parou em Junho, continua, são sete meses de mobilizações. Ainda há poucos dias teve entre mil e 10 mil pessoas.

Mil pessoas no Rio de Janeiro é como ter 100 pessoas em Lisboa...

Se fosse isso, como é que o governo estaria aprovando medidas especiais de repressão? A manifestação de dia 20 que no Rio teve dois, três ou quatro milhões de pessoas, ninguém sabe quantas. O que os partidos de esquerda não entenderam é que aquela enorme manifestação era um momento de recuperação da política fora de qualquer liderança. Quando tem dois a três milhões de pessoas a manifestar- -se, você tem na rua a sociedade como ela é. E quando começou o enfrentamento, que durou dias com mais de 100 mil e 50 mil pessoas a sair à rua todos os dias, os mesmo que diziam "sem violência" passaram a dizer "não vai ter Copa". E dizer que "não vai ter Copa" é uma palavra de ordem que mostra o terreno da transformação antropológica dessa massa multitudinária. Durante esse processo de meses, os sectores mais radicalizados dos subúrbios, dos precários, dos Black Bloc e dos estudantes descobriram a bandeira negra como símbolo daquilo que é irrecuperável pelo sistema. São as únicas bandeiras que os jovens vêem como mais radicais perante o apodrecimento da política, para representar algo que não é representável. Mas elas valem o que valem, a questão é ter a capacidade de inventar novas instituições, e isso tem tudo para acontecer.



Fonte: iOnline

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