domingo, 9 de março de 2014

OS BRASILEIROS ODEIAM O BRASIL

Eu odiava o Brasil. Não há outra maneira de se explicar o que eu sentia pelo meu país até a metade da minha adolescência: era ódio. Detestava que, na minha escola, não tínhamos armários e que não havia um salão de refeições onde todos almoçássemos juntos, com nossas caixinhas de suco e nossos hambúrgueres, antes de voltarmos para casa num ônibus amarelo. Detestava que fazia calor durante o Natal e, consequentemente, ressentia profundamente o fato de a neve ser uma exceção climática no Brasil. Odiava a nossa língua — queria que falássemos inglês, francês ou alemão, qualquer coisa mais ‘sofisticada’. Odiava a música e as festas populares — pura selvajaria, diria eu, “só não gosto”. O Brasil era o meu pior pesadelo. Foi assim que, em poucos anos de vida, eu perdi o melhor do Brasil e, dele, internalizei o que me diziam ser o nosso pior.

'A Descoberta da Terra', de Candido Portinari

Há algum tempo, tenho visto vários compartilhamentos de textos em que estrangeiros enumeram as mazelas do país. É um estadunidense que odiou morar no Brasil, uma revista francesa que ‘resume’ as barbáries tupiniquins — e uma onda de brasileiros a reproduzir discursos alheios indiscriminadamente. Esses discursos, dos quais só citei dois exemplos contemporâneos, não são novidades: desde os primeiros exploradores europeus que ao Brasil chegaram, passando pelos escritores de viagem e antropólogos que dominaram o século XIX, até os atuais filhos da classe média que, financiados com dinheiro público, vão estudar no exterior, existe um padrão de desprezo contra o Brasil.
Mesmo assim, eu prefiro acreditar que a maioria das pessoas que compartilham os textos não deteste deveras seu próprio país. Prefiro pensar que sejam pessoas que, na verdade, simplesmente gostariam de vê-lo melhor. O embrolho, no entanto, em relação a esses discursos de crítica ao Brasil, dá-se por duas razões.
Em primeiro lugar, são discursos situados: a crítica que se aceita e se repassa entre os brasileiros é aquela feita pelo estrangeiro, mas não é qualquer um. Se o francês disse, está dito. Se o estadunidense disse, é lei. Duvido de que fossem tão populares críticas feitas por um cubano ou um vietnamita. Por trás disso, argumentar-se-ia, está o nível de desenvolvimento do país donde se fala. Além do questionamento, aqui, sobre o conceito de desenvolvimento pelo qual se medem todos os países do mundo em relação a padrões estabelecidos pelas potências de sempre, existe um indivíduo cuja procedência é, de fato, uma coincidência que não forçosamente o sobreponha àqueles de outras nacionalidades, tampouco o qualifique para criticar quem quer que seja.
Em segundo lugar, as críticas estrangeiras ao Brasil têm uma significação dupla sobre as identidades nacionais e sobre a autoestima tanto de quem critica quanto de quem é criticado. De lá, no caso de um dos textos citados, os franceses se elevam a um patamar olímpico donde muito convenientemente se esquecem da contribuição de seu próprio país à miséria globalizada que desponta nos problemas que eles agora enumeram. De cá, os brasileiros consomem a crítica, mas não são, por sua vez, críticos a ela. O resultado é apavorante: brasileiros que odeiam seu próprio país e, assim, não querem dele fazer parte — se não fisicamente, ao menos simbolicamente. Se não podem deixar o país e suprimir todas suas relações com ele, tentam se distanciar, no plano discursivo, da suposta imagem do Brasil a olhos forasteiros.
Lidamos cá também com uma grande dose de hipocrisia. Uma das imagens usadas nos compartilhamentos desses textos é uma tela do que parece ser o Big Brother Brasil. Junte-se esse programa às novelas, ao futebol, ao Carnaval, ao funk e pronto: temos a receita de um país lascivo, onde se faz muita festa e se trabalha pouco. Enquanto os brasileiros insistem em serem resumidos por um programa de televisão, por exemplo, mal sabem que, só no Reino Unido, já foram ao ar 31 edições do mesmo Big Brother em cinco versões diferentes, que incluem desde uma dedicada a celebridades até uma versão para adolescentes. O compartilhamento do texto da revista francesa falava de como a FIFA teria supostamente se recusado a aceitar a candidatura da China à Copa do Mundo porque é política da organização “não associar-se [sic] a ditaduras”. Mas não teve problema nenhum em escolher a Rússia e o Qatar para sediarem as duas próximas edições dos jogos. Ainda cita-se que o Brasil vai gastar 400 milhões de euros em compras de armas para a polícia. Crítica feita e, dentro de seus limites, cabível. Entretanto, uma rápida visita ao site do Instituto de Pesquisas sobre a Paz de Oslo, onde se apresentam dados sobre comércio internacional de armas, podemos ver que a mesma Suíça que abriga a FIFA exportou pouco mais de US$198 milhões em armas no ano de 2011 — inclusive ao Brasil, à Rússia, ao Qatar e à China. Isso para não falar da preguiça de quem escreveu que o Romário deve ser um péssimo político já que ele era jogador de futebol. Dizem que o deputado só busca se promover, mas nem se importaram em digitar ‘Romário projetos’ no Google.
Ou seja, muitas das críticas feitas por estrangeiros ao Brasil são válidas. Existe violência? Existe. Os investimentos em educação e em saúde são parcos? Ainda são. Mas dizer isso e só isso e, a partir daí, construir a representação de um país inteiro, ignorando sua complexidade histórica e sua diversidade cultural é, no mínimo, incoerente. O mesmo Brasil que, em 2014, usará sílfides 3,44% de seu orçamento em educação é o mesmo Brasil que desembolsará 42,42% em juros e amortizações de uma tradição em dívida externa que começou lá na independência política do país em 1822 e que se estende, até hoje, com os mesmos países donde agora importamos opiniões. A questão não é negar a crítica, não é tapar os olhos para os problemas do Brasil, mas saber traçar as origens dessas críticas, seu contexto e seus interesses para, então, projetar soluções que sejam — oxalá! — radicais; isto é, que solucionem os problemas pela raiz.
A gota d’água foi, para mim, dizer que “brasileiros se identificam com analfabetos”. Isso foi dito logo depois de se mencionar a eleição de Tiririca como deputado federal com a segunda maior votação na história do Brasil, mas nem parecia apontar àqueles que — vá lá — votaram no candidato. A frase diz que nós nos identificamos com analfabetos. Nada mais do que uma paráfrase: no fim das contas, os brasileiros são burros. Logo, não sabem levar seu próprio país. São burros e, como tais, agem estupidamente. É puro desprezo, racismo, eurocentrismo, colonialismo e tantas outras coisas que, juntas, sacam dos brasileiros seus múltiplos devires e sua incrível riqueza intelectual e cultural. Não, não é só música clássica que é cultura. Não, não é só no Brasil que se assiste ao Big Brother. Não, não é só no Brasil que se elegem políticos desqualificados. Não é uma especialidade brasileira ‘identificar-se com analfabetos’.
O Brasil que compartilha esses textos precisa saber interpretar as críticas e não as internalizar. Se há problemas, em primeiro lugar, que nós os reconheçamos e lhes procuremos soluções efetivas. Se há problemas, em segundo lugar — e eu diria, aqui, de vital importância —, que saibamos que não foram os brasileiros que inventaram os problemas, tampouco os países ‘desenvolvidos’ que inventaram as soluções. Gostar do Brasil e dele sentir orgulho, bem o contrário do que comentam muitos por aí, não significa andar fantasiado de bandeira ao invés de enojar-se com o acidente geográfico que foi seu nascimento. Querer que o Brasil melhore é, em primeiro lugar, desejar o próprio Brasil. Ao se negar o país como ele é, usando suas expressões culturais e seu cotidiano como justificativas para um movimento de bestialização da nação, negam-se também todas as possibilidades de mudança que poderiam surgir das críticas. Enfim, não se trata de recusar críticas estrangeiras, mas de reconhecer nelas suas origens e suas contradições e não as encarar como instruções sagradas. O francês que critica muitas coisas no Brasil constata o mesmo que um brasileiro insatisfeito que sempre foi às ruas protestar. A diferença é que o primeiro ganha notoriedade como sábio e o outro é tachado de vagabundo-vândalo.
O Brasil nunca será um país melhor se, antes, não o soubermos aceitar sem armários, sem neve e sem ônibus amarelo, mas com uma infinidade de soluções latentes próprias. Para o Brasil melhorar, precisamos desejá-lo — como país, como origem, como comunidade. Se não, juntemos nossas trouxas e zarpemos para Miami. Ou algum outro lugar já que tampouco neva por lá.


Fonte: O Viés

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