segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Virando o Mito da Corrupção de Cabeça Para Baixo

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Por Jason Hickel

A Transparência Global publicou recentemente seu último Índice de Percepção da Corrupção (IPC), apresentado num atraente mapa mundial no qual as nações menos corruptas são alegremente marcadas em amarelo e as mais corruptas numa mancha vermelha estigmatizante. O IPC define corrupção como “o mal uso do poder público para benefício privado”, e baseia suas informações em 12 instituições diferentes, incluindo o Banco Mundial, a Freedom House e o Fórum Econômico Mundial.
Quando vi o mapa pela primeira vez fiquei chocado com o fato de a maioria das áreas em amarelo ser de países ocidentais ricos, incluindo os EUA e a Inglaterra, enquanto que o vermelho cobre quase todo o Sul global, com países como Sudão, Afeganistão e Somália marcados em tons ainda mais escuros.
Esta divisão geográfica encaixa-se perfeitamente com as opiniões dominantes, que vêem a corrupção como a praga do mundo em desenvolvimento (por exemplo, as imagens clichês de ditadores na África e subornos na Índia). Mas esta narrativa estaria correta?
Muitas organizações internacionais de desenvolvimento afirmam que a persistência da pobreza no Sul global é em grande parte causada pela corrupção entre funcionários públicos. Em 2003, este debate deu origem à criação de uma Convenção na ONU que afirmava que, apesar da corrupção existir em todos os países, este “fenômeno do mal” é mais destrutivo no Sul global, onde seria um “elemento chave da má performance da economia e um enorme obstáculo à melhoria da pobreza e ao desenvolvimento”.
Só há um problema com esta teoria: ela simplesmente não é verdade.
Corrupção, Estilo, Superpoder
Segundo o Banco Mundial, a corrupção na forma de suborno e roubo por membros do governo, que é o alvo principal da Convenção da ONU, custa entre 20 e 40 bilhões de dólares por ano aos países em desenvolvimento. É bastante dinheiro. Mas é uma porção extremamente pequena – apenas 3% – do total de fluxos ilícitos que vazam dos cofres públicos. Sonegação de impostos, por outro lado, soma mais de 900 bilhões por ano, dinheiro que corporações multinacionais roubam de países emergentes através de práticas como a avaliação incorreta de preços [trade mispricing].
Este enorme fluxo de saída de riqueza é facilitado por um obscuro sistema financeiro que inclui paraísos fiscais, empresas fantasmas, contas anônimas e fundações falsas, com a Cidade de Londres no coração disso tudo. Mais de 30% do investimento global estrangeiro é agenciado através de paraísos fiscais, que escondem atualmente 1/6 do total da riqueza privada mundial.
Esta é uma causa gigantesca – fundamental, na verdade – da pobreza no mundo em desenvolvimento, e no entanto não consta na definição usual de corrupção. Está ausente da Convenção da ONU, e raramente aparece na agenda de organizações de desenvolvimento internacional, se é que alguma vez apareceu.
Com a Cidade de Londres no centro de uma rede global de paraísos fiscais, como a Inglaterra pode ser vista como limpa pelo IPC?
O fato de que Londres seja imune a muitas das leis democráticas da Inglaterra, e livre da vigilância do Parlamento, torna a questão ainda mais problemática. Como resultado deste status especial, Londres manteve diversas tradições antiquadas e plutocráticas. Considere o seu processo eleitoral, por exemplo: mais de 70% dos votos para as eleições nos Conselhos não são de moradores, mas de empresas – bancos e empresas financeiras em sua maioria. Quanto maior a corporação, mais votos ela possui, com as maiores chegando a ter 79 votos cada. Isto eleva a “personalidade corporativa” tipo norte-americana [US-style corporate personhood] a um outro patamar.
Sejamos honestos: este tipo de corrupção não é totalmente fora de lugar num país em que a família real é dona de 120 mil hectares de terra e consome cerca de 40 milhões de libras dos fundos públicos a cada ano. E há também o Parlamento, no qual a Casa dos Lordes é preenchida não por eleição, mas por indicação, com 92 assentos herdados por famílias aristocratas, 26 reservados para os maiores líderes religiosos do país, e dúzias de outros à venda para multi-milionários.
Nos EUA, a corrupção é só um pouquinho menos evidente. Embora os assentos do Congresso ainda não estejam disponíveis para compra, a decisão Cidadãos Unidos vs FEC permite às corporações gastar quantidades ilimitadas de dinheiro em campanhas para certificarem-se de que seus candidatos serão eleitos, uma prática justificada sob o manto Orwelliano da “liberdade de expressão”.
O Fator Pobreza
A Convenção da ONU tem razão em dizer que a pobreza em países em desenvolvimento é causada pela corrupção. Mas a corrupção com a qual nós deveríamos estar mais preocupados tem suas raízes nos países marcados em amarelo no mapa do IPC, não em vermelho.
Os paraísos fiscais não são o único culpado. Sabemos que a crise financeira de 2008 foi causada pela corrupção sistêmica de funcionários do governo dos Estados Unidos intimamente ligados aos interesses de Wall Street. Além da transferência de trilhões de dólares dos cofres públicos para bolsos privados através dos socorros aos bancos [bailouts], a crise varreu um naco enorme da economia global. Teve um efeito devastador nos países emergentes, secando as demandas por exportações, causando ondas massivas de desemprego.
Uma história similar pode ser contada sobre o escândalo Libor na Inglaterra, quando grandes bancos londrinos conspiraram para fraudar as taxas de juro de modo a tragar, muito além do litoral britânico, cerca de 100 bilhões de libras. Como poderia qualquer um destes escândalos não ser definido como “o mal uso do poder público para benefício privado”? Subornos e desvios de verba no mundo em desenvolvimento parecem provincianos quando comparados ao alcance global deste tipo de corrupção.
Mas esta é somente a ponta do iceberg. Se nós realmente quisermos entender como a corrupção impacta a pobreza em países emergentes, precisamos começar observando as instituições que controlam a economia global, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
Durante as décadas de 1980 e 1990, as políticas que estas instituições impuseram ao Sul global, na esteira do Consenso de Washington, causaram uma queda de quase 50% no crescimento da renda per capita. O economista Robert Pollin estimou que, durante este período, países emergentes perderam cerca de 480 bilhões de dólares por ano em PIB. Seria difícil exagerar a devastação humana que estes números representam. No entanto, corporações ocidentais se beneficiaram enormemente deste processo, ganhando acesso a novos mercados, mão-de-obra barata e matérias-primas, e novas aberturas para a circulação de capital.
Estas instituições disfarçam-se como mecanismos de governança pública, mas são profundamente anti-democráticas; por isso conseguem safar-se mesmo que suas políticas violem o interesse público de forma tão direta. O poder de voto no FMI e no Banco Mundial são distribuídos de modo que, juntos, os países emergentes – a vasta maioria da população mundial – possuem menos de 50% dos votos, enquanto o Tesouro dos EUA tem poder de veto. Os líderes destas instituições não são eleitos, mas escolhidos pela Europa e os EUA, e entre eles há muitos oficiais militares e executivos de Wall Street.
Invertendo a Culpa
Se estes padrões de governança fossem adotados em qualquer nação do Sul global, o Ocidente logo gritaria “corrupção!”. Mas esta corrupção é normalizada nos centros de comando da economia mundial, perpetuando a pobreza nos países em desenvolvimento, enquanto a Transparência Internacional desvia a nossa atenção.
Mesmo se decidirmos nos concentrar na corrupção localizada em países emergentes, temos que reconhecer que ela não existe num vácuo geopolítico. Muitos dos ditadores mais famosos da história – como Augusto Pinochet, Mobutu Sese Seko, e Hosni Mubarak – foram sustentados pelo constante fluxo de ajuda do Ocidente. Hoje, não são poucos os regimes entre os mais corruptos do mundo que foram instalados ou apoiados pelos EUA, entre eles o Afeganistão, o Sudão do Sul, e os guerreiros da Somália – três dos lugares mais escuros no mapa do IPC.
Isto levanta uma questão interessante: o que é mais corrupto, a ditadura miúda ou o superpoder que a instala? Infelizmente, a Convenção da ONU ignora, de forma conveniente, estas dinâmicas, e o mapa do IPC nos leva a acreditar incorretamente que a corrupção de cada país está restrita às suas fronteiras nacionais.
A corrupção é com certeza uma das maiores causas da pobreza. Mas se quisermos levar este problema a sério, o mapa do IPC não nos ajuda muito. A maior causa da pobreza em países emergentes não é o suborno e a roubalheira localizada, mas a corrupção que é endêmica ao sistema de governança global, a rede de paraísos fiscais, e os setores bancários de Nova York e Londres. É hora de virar o mito da corrupção de cabeça para baixo e começar a demandar transparência onde ela é realmente necessária.

N.E.  Tradução por Antonio Engelke. Original em inglês http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2014/01/flipping-corruption-myth-201412094213280135.html

link para o “mapa da corrupção”: http://cpi.transparency.org/cpi2013/results/

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