Por Wallace Faustino da Rocha Rodrigues
Dizem que fim de ano é tempo de festa, de alegria, harmonia, de superação. Pode ser verdade que este espírito iluminado pela bondade, existente no fundo de cada ser humano, aflore com toda a força nesta época. Mas é fato comum percebermos na grande mídia, às vésperas do Natal, notícias sobre vestibulares e, principalmente, sobre os mais concorridos programas de ingresso no ensino superior. Drama para milhões de brasileiros e um grande teste para os nervos. Mais do que nunca, a alegria, a harmonia e a superação são bem vindos. Por motivos óbvios, uma atenção maior é dada à Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), o vestibular da USP (Universidade de São Paulo), cuja prova é realizada, em 2013, no dia 24 de novembro. Porém, um incômodo se faz presente na maneira como o tema é abordado pela mídia.
Cássia Lima, 17 anos, moradora de um bairro de classe média baixa na Zona Norte de São Paulo, ganhou destaque recentemente no G1 (“Pela Fuvest, aluna encara 3 h de transporte e 11 h de estudos por dia”) por fazer um esforço colossal na tentativa de realizar o seu sonho: estudar engenharia química na USP. Horas de ônibus e metrô até o colégio preparatório, horas diárias sentada no banco da escola, novamente, horas de ônibus e metrô para o retorno e outras horas mais com os estudos em casa. Vive para isso e valoriza seu esforço com a idéia de que muitos gostariam de estar em seu lugar. Seu diferencial está no fato de ser bolsista em uma das escolas mais tradicionais e caras da capital paulista, com mensalidades astronômicas, e possuidora de um dos maiores índices de aprovação na Fuvest, além de boas colocações no Enem – a regra é simples, quanto maior o índice de sucesso nos exames de seleção, maior tende a ser o prestígio e o valor do curso. Cássia não tem dinheiro para pagar a mensalidade da escola, sendo filha de uma professora da rede pública e de um segurança noturno. O que está em jogo é a consciência quanto à impossibilidade (!) de se chegar à USP por meio de um colégio público, como aquele freqüentado pela nossa heroína durante o ensino fundamental ou aquele em que sua mãe leciona.
Enfim, Cássia é tratada, então, como uma lutadora. Brasileira, cheia de possibilidades, uma vez que, em uma escala matemática de anseios humanos, tem vontade suficiente para crescer, para ser alguém (!), e sair do problemático local em que vive, deixando para trás o seu igualmente problemático passado na escola pública da rede municipal de São Paulo, distanciando-se da probabilidade de se tornar, também, uma professora de escola pública, como sua mãe, pois almeja algo melhor, “acima”. Cássia, segundo os nossos jornalistas, é superior, é uma heroína. O discurso incute a idéia de que qualquer pessoa que tenha a mesma “força de vontade” de Cássia conseguiria superar tantas dificuldades, seja na periferia paulistana, na carioca, na recifense etc. “Destaque-se, seja o melhor em sua escola pública e poderá deixá-la para trás, sem sequer precisar voltar o rosto”.
A forma como a notícia aborda o cotidiano de Cássia é, em minha opinião, extremamente problemática. Isso porque temos milhões de Cássias pelo Brasil. Não se trata de fazer uma abordagem das dificuldades do ensino básico público, nem mesmo de perceber problemas como o transporte público. Longe de insinuar a necessidade de se ter um Estado onipresente, presente em todas as instâncias sociais. Mas se trata de permitir ver o outro ângulo da questão, que não seja a da existência de heróis em nossa sociedade. Isso, de um modo geral, a grande mídia não consegue (ou não quer) fazer. Valorizar personalidades individuais como a de Cássia, e toda a sua história de superação, implica colocar outros valores em segundo plano. Aliás, valorizar algo, necessariamente, é fazer sombra em aspectos diversos a estarem diretamente relacionados a este algo valorizado.
Tomar casos como os das Cássias como paradigmáticos não é discutir educação. Sabemos que é um direito constitucional o acesso de todos à educação pública e de qualidade. Certo ou errado, entendemos direito, neste caso, como um fim a ser atingido independentemente das possibilidades de cada um para realizá-lo. Focando na matéria sobre Cássia, a educação tende a ser vista como uma aquisição superior, acima dos mortais, quase um milagre, algo possível somente para privilegiados, escolhidos por uma espécie de Providência Divina e que, portanto, estaria longe do alcance de seres humanos normais – pois Cássias não são “mortais”. Logo, a educação deixa de ser algo comum, tornando-se um universo possível de ser atingido somente por super-poderes. Neste caso, se se pensar na USP, com todo o respaldo que possui no universo acadêmico, isso é elevado à enésima potência. Inconscientemente, forma-se uma perigosa lógica do direito como mérito, como algo superior.
Outro problema surge a partir disso: os discursos criados no interior do ambiente da educação elitizada. Para ser mais específico, aqueles que estão em determinados colégios, providos de uma formação classificada como privilegiada para encarar competitivamente uma Fuvest, como o colégio em que Cássia é bolsista, tendem a ter uma consciência de exclusivismo quanto à possibilidade de se alcançar a USP, o Páramo Empíreo do Ensino Superior do Brasil. Ou seja, a competição pela vaga não inclui as escolas públicas, mas sim colégios exclusivos. Algo do tipo: “somente nós podemos chegar lá, onde todos gostariam de estar”. Mais do que nunca, Cássia desponta como uma semideusa, com poderes de deus entre os de seu meio, Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, mas que, frente aos seus privilegiados colegas/competidores, do Colégio Bandeirantes, da Zona Sul, mostra-se apenas como humana.
Como a própria matéria relata, a quadrada sala de aula possui um revestimento acústico que, real e simbolicamente, isola seus alunos do universo exterior. Não há nada para fora de suas paredes com o que se preocupar. Aliás, a única preocupação que se deve ter, neste caso, é a aprovação na Fuvest. Portanto, concentre-se. Isso, processado na mente dos leitores de matérias jornalísticas como esta, adquire uma lógica impressionante a ponto de impedir concatenar idéias e elaborar problematizações acerca do tema, como, por exemplo, a atuação do poder público mencionada em parágrafos anteriores. Estes alunos, restritos a alguns metros quadrados de um ambiente próprio, autônomo, são vistos unicamente pela lente da Fuvest e da desejada possibilidade de aprovação. Novamente, para os que estão dentro e fora, é um privilégio.
Bem, Cássia conseguiu perfurar a barreira e penetrar na sala de aula para poucos. Sua capacidade é louvável e deve ser vista com muita estima. Mas, e se ela não passar? Devemos ter pena. O esforço de três anos – desde a sua matrícula no Colégio Bandeirantes – é jogado no lixo. Pena, pena, pena. Quando o herói falha, resta apenas o lamento por sua missão não cumprida. O extremo da personalização, neste caso, tende a gerar pena, um sentimento que pode funcionar como uma espécie de barreira à capacidade de perceber algumas insatisfações. Insatisfação quanto ao sistema de transporte público, para que Cássia se canse menos em sua trajetória; insatisfação quanto à ineficiência do ensino público básico, que não é capaz de proporcionar reais condições para a sua competitividade na Fuvest; e insatisfação até mesmo com o vestibular da Fuvest, por ser tão competitivo.
Cássia, neste caso, pode ser considerada como um exemplo da maneira como a grande mídia aborda problemas candentes na sociedade. O artifício midiático da personalização é assaz comum, valendo-se justamente da idéia de meritocracia. Por conseguinte, veladamente, encontram-se em casos como este posições a enaltecerem ações classificadas como de inserção social, cujo critério é absolutamente econômico. Nos olhares da mídia, a atitude do Colégio Bandeirantes, classificada como bondosa, na verdade, seria uma espécie de microcosmos de políticas públicas com o objetivo de inserção social a pautarem-se puramente na lógica de mercado, referendando ameritocracia cassiana. O importante é o mérito e juntamente com ele há toda uma construção idealizada quanto a fatos modelares como os de Cássia: a menina esforçada que, pelas próprias capacidades, conseguiu galgar dificuldades sociais já naturalizadas, que não devem ser superadas senão pela própria meritocracia.
Por fim, a pouca envergadura do olhar da grande mídia para fatos cotidianos, por exemplo, para as milhões de Cássias – não as semideusas, mas as puramente humanas, incapazes por motivos diversos de percorrer a mesma trajetória –, pode impedir que se veja com clareza uma série de outras questões. Mais, tende-se a promover a valorização de fatos que deveriam ser tomados como corriqueiros, normais, como o acesso a uma educação de qualidade. Isso somente acentua o caminho da desigualdade dentro do próprio Brasil, mas uma desigualdade reconhecida pelos próprios brasileiros – não mais somente pela OCDE, OMC, OMS etc – e, pior, legitimada por eles mesmos. Enquanto essa desigualdade existir, o que resta é se apegar às Cássias.
Fonte: Revista Pittacos
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