Por Antonio Engelke
Há algo de significativo quando perspectivas políticas conflitantes convergem acerca de uma determinada questão. Criticada à direita e à esquerda com argumentos semelhantes, ainda que as razões de fundo possam variar, a internet é ora apresentada como o lugar por excelência da boataria e da insegurança (O Globo), ora como o espaço que favorece brucutus cujos “soluços de presunção opinativa” espalhariam estupidez e ódio, impedindo a reflexão ponderada e a construção de diálogos frutíferos (Carta Capital). A imprensa brasileira não está sozinha. Suas críticas ecoam pesquisas de searas tão distintas quanto psicologia cognitiva, crítica literária, sociologia e ciência política. O argumento foi bem colocado pelo jurista Cass Sunstein: se uma cultura política democrática depende, entre outros fatores, de um amálgama entre a diversidade de perspectivas e a sobreposição de consensos – o que significa dizer que indivíduos precisam ser expostos a pontos de vista e ideias que não teriam procurado por conta própria, e possuir um conjunto compartilhado de crenças e experiências comuns –, então a grande imprensa desempenharia um papel muito mais importante para a manutenção da saúde da democracia do que a internet, precisamente porque oferece um cardápio de perspectivas variado e proporciona uma base comum de compreensão mútua, indispensável à formação da agenda pública. A internet, ao contrário, seria o espaço dos nichos, da navegação customizada, feita sob medida para as preferências de cada um, e os mecanismos de filtragem de sites como Google e Facebook contribuiria para aprofundar ainda mais esta tendência à personalização e ao isolamento.
Contra Sunstein, pode-se sempre observar que a própria definição do que conta como radical não é neutra, dado que pressupõe um padrão arbitrário de normalidade a partir do qual tudo o que se afasta dele aparecerá então como extremado. Mais ainda, Sunstein cai vítima dos pressupostos normativos do deliberacionismo, pois enxerga a diferença como um problema a ser superado, não como um aspecto positivo e mesmo essencial à democracia, desconsidera o papel do poder no processo de deliberação, e falha em conceitualizar adequadamente a base intersubjetiva do sentido e da racionalidade, supondo uma noção ingênua de sujeito autônomo-racional. Quando Sunstein diz que a internet favorece o extremismo, esquece-se de que o ato de denominar uma posição como extrema já é uma operação ideológica, e também de que “a via mediana” não é por definição sempre a mais adequada. E há evidências empíricas que parecem contradizer a tese da fragmentação/polarização. Uma pesquisa do Instituto Pew Center sobre a campanha presidencial norte-americana de 2004, para ficarmos apenas em um exemplo, mostrou que usuários de internet estavam expostos a mais tipos de informações políticas do que leitores de jornais.
Mas e se deliberação e participação não forem co-extensivos, como tradicionalmente se supõe? Eis o dilema diante do qual nos coloca o trabalho de Diane Mutz: embora a diversidade de redes políticas fomente o entendimento de perspectivas múltiplas e favoreça a tolerância, ela ao mesmo tempo desencoraja a participação política, sobretudo entre pessoas avessas ao conflito. Ou temos uma massa razoavelmente bem informada, exposta a perspectivas conflitantes, porém apática e pouco participativa, ou grupos mais homogêneos e auto-referidos, porém politicamente muito mais atuantes. O preço a ser pago pela polarização é o acirramento de conflitos, por certo. A alternativa – uma população que, por apática, cumpre à risca o roteiro neoliberal, aprofundando inadvertidamente o processo de despolitização da política –, entretanto, não parece exatamente animadora.
Resta apreciar o sujeito desta radicalização, o brucutu ou troll. Se é verdade que o distanciamento e o anonimato propiciados pela internet transformam-na em solo fértil para a boçalidade auto-referida, deveríamos então reconhecer que é justamente o caráter ficcional da rede que permite ao self ser fiel a si mesmo e expressar-se verdadeiramente. Afirmar que blogs, fóruns de discussão e redes sociais constituem, em sua baixeza, farto material etnográfico que nos permitiria desnudar a mentalidade política de nossos concidadãos, é repisar o óbvio. Podemos ir além, e perguntar se a própria ênfase no aspecto tecnológico do problema não seria uma forma de fetichismo. Não se trata de negar os possíveis a que a internet dá ensejo. Tecnologias podem estimular a adoção de certos comportamentos; se são tornados mais fáceis, tendem a se disseminar. Mas será que o protagonismo da tecnologia, aliado ao lamento diante da rarefação das virtudes republicanas, são as bases a partir das quais deveríamos pensar o problema das interações em rede, e de seus efeitos políticos?
A resposta começa por reformular a pergunta: de onde viria este nosso assombro, ou que características deve necessariamente ter o pano de fundo perante o qual o comportamento do brucutu irá sobressair de modo a gerar repulsa? O diagnóstico a respeito de sua atuação é também uma condenação, erigida sobretudo pelo fato de que ele ousa fazer algo hoje praticamente impensável, portanto quase interditado – ser radical. O típico troll das caixas de comentários é alguém que atropela dois dos códigos que em larga medida definem nossa sensibilidade atual, cujas afinidades eletivas talvez não tenham sido ainda inteiramente observadas: a norma multicultural da tolerância e correção política, e a ironia tornada ethos.
Num conhecido ensaio, o escritor David Foster Wallace observou que a ironia extrapolara seus limites naturais de figura de linguagem negativa para se transformar em norma cultural, um ethos escorado na recusa em levar a sério qualquer posição, inclusive e sobretudo a do próprio ironista. Escondida atrás da muralha maleável do não comprometimento com coisa alguma – uma espécie de vacina para qualquer possibilidade de crítica: como atacar aquilo que se assume, desde a saída, um pastiche satírico de si mesmo? –, a atitude irônica inviabiliza pouco a pouco o estabelecimento de relações humanas significativas. Implica num modo de vida defensivo, esvaído de sua própria substância, como se o ironista quisesse se ver livre da gravidade que todo vínculo social inevitavelmente acarreta. “De algum modo”, diz Christy Wampole, “tornou-se insuportável, para nós, lidar com as coisas de maneira direta”. A ironia aparece então como o escudo atrás do qual podemos nos proteger da interação sincera com o Outro, e Foster Wallace acertou quando viu nisso reflexos da lógica cultural do capitalismo tardio, para usarmos os termos de Fredric Jameson. Como observou o crítico Miguel Conde, a ironia ajusta-se perfeitamente ao tipo de formação cultural necessária ao bom funcionamento do capitalismo, na medida em que dissolve tudo aquilo que não for consumo e entretenimento superficiais. Daí podermos entendê-la não apenas como uma questão de “escolha individual, mas também de [uma] necessidade histórica”. De qualquer forma, o movimento da ironia, observa Conde, “é tanto uma recusa à fixidez quanto incapacidade de encontrar um ponto firme”.
A incapacidade de encontrar um ponto firme – não seria justamente o ethos irônico um operador do desmanche das coisas sólidas no ar e, ao mesmo tempo, um de seus efeitos? Se o ironista evita assumir um lugar de fala, colocando-se fora ou acima das perspectivas em diálogo, o típico liberal multiculturalista arroga para si próprio um lugar supostamente neutro. Cada qual a seu modo, ambos expressam uma recusa do sujeito em reconhecer-se implicado em alguma posição. O multiculturalismo, “forma ideológica hegemônica do capitalismo neoliberal” segundo Zizek, pressupõe uma distância que lhe garantiria posição privilegiada porque carente de qualquer conteúdo positivo: esta posição converte-se no ponto vazio de universalidade a partir do qual o multiculturalista esclarecido poderá então avaliar e julgar a alteridade. Somente o outro asséptico é tolerado, no entanto; diante do verdadeiro Outro em sua dimensão de antagonismo radical, a tolerância cessa. O paradoxo, evidentemente, é que a sociedade que provê o horizonte para um tipo de subjetividade que tem como valor central a identidade fluida, aberta e contingente, projeta o próprio sucesso como redundando na realização de uma realidade livre de qualquer limitação imposta pelo antagonismo do real – um mundo inteiramente povoado por multiculturalistas tolerantes liberais. Mas o sujeito que despeja abertamente na internet todo o peso de seu preconceito e provincianismo denuncia, em ato, a falácia do pressuposto multicultural. Não fala a partir de um lugar supostamente neutro; escarnece dele. Aliando narcisismo cognitivo com a ausência de qualquer hesitação, o brucutu absolutiza a própria posição, que, dogmaticamente fechada de antemão para o contraditório, solapa tanto o imperativo de “ouvir o outro lado” que jaz na base da tolerância multiculturalista, quanto a ausênciablasé tipicamente irônica. Toda vez que intervém em alguma caixa de comentário, otroll de internet embaralha as coordenadas que fornecem a localização da linha que separaria bárbaros de civilizados, e o incômodo que causa provem também do fato de que isto nos obriga a puxar a linha para cá, para mais perto do que estaríamos dispostos a conceder.
Fonte: Revista Pittacos
Nenhum comentário:
Postar um comentário