Por Marcelo Sorrentino
Tradicionalmente, pensamos que a paixão
pelo futebol contrapõe-se à conscientização política. A ideia vem de
longe e remonta, pelo menos, ao “panem et circenses” das Sátiras
de Juvenal — a estratégia de prover comida e divertimento ao povo como
um meio superficial de apaziguar a insatisfação generalizada. No Brasil,
o mesmo expediente para refrear o descontentamento da população foi
explorado pelo governo Médici, que assimilou a lição do século primeiro
substituindo a arena gladiatória pelo estádio de futebol. À época, o
investimento na seleção e a propaganda do futebol, as facilidades para a
aquisição de televisores e a retransmissão dos jogos, parecem ter
cumprido seus papéis entorpecentes do dissenso popular nos Anos de
Chumbo. A teoria marxista também autoriza a equação do futebol com a
deficiência de politização na medida em que se pode considerá-lo uma
instância da “falsa consciência” — um conjunto de ideias que desvia a
atenção das massas e mascara a sua real dominação. É por causa desse
consenso em torno da oposição do futebol à mobilização política que é um
prazer descobrir nas manifestações de junho de 2013, em todo o Brasil,
que esta relação não é necessariamente verdadeira.
Sabemos que os protestos foram
deflagrados pelo aumento das passagens de ônibus feitas em junho, em
pleno período escolar, quando o acréscimo é geralmente, e
estrategicamente, feito em janeiro, durante as férias. Não resta dúvida
de que o MPL de São Paulo encabeçou os protestos, e de que o abuso da
violência policial produziu tanto novas adesões e uma coesão previamente
inexistente naquele grupo, quanto a solidariedade indignada das
populações de outros estados, que não só se somaram ao seu ideal, mas
somaram mais ideais àquele. Logo, os diversos gravames genéricos “Fora
Corruptos”, “Mais Educação”, “Me Cura, Feliciano” e etc., que aparecem
em tantos cartazes, configurando uma espécie de assembleia constituinte
popular. Diante disso, nos protestos, o papel simbólico do futebol em
geral, e a revolta contra os custos nababescos dos estádios em
particular, pode ser comparado ao de um ator coadjuvante, ou mesmo a de
um mero figurante. Mas é possível que esse papel simbólico do futebol
não esteja operando num nível tão subjacente e subliminar — e que,
mesmo se estiver, não seja tão insignificante assim. E mais, é
admissível a suposição de que o tema do futebol tenha, a despeito de sua
associação típica com um efeito despolitizador, catalisado
politicamente e para muito além de uma simples reivindicação (“O Maraca é
nosso!”) ou objeção (ao custo dos estádios, por exemplo, face à falta
de investimentos em Saúde, Educação, e assim por diante). Submeto aqui a
hipótese de que o futebol contrubuiu às manifestações não só com o
conteúdo de algumas exigências, mas com a forma do protesto também.
Vale lembrar que as demonstrações
eclodiram durante a Copa das Confederações, num cenário em que a
presença do evento nos permite calcular alguma relação. Mas a tentativa
de centenas de milhares de manifestantes cariocas, no protesto do dia 20
de junho, de chegar ao novo Maracanã, não deixa dúvidas. Tanto a
intenção de chegar ao estádio, como se fosse uma espécie de Bastilha
reificando a corrupção da licitação e do ganho da futura gestão pelo
mesmo consórcio, OLX/ Odebrecht, quanto a resistência da polícia em
deixá-los seguir ao Maracanã (quando já estavam às portas da Alerj e da
Prefeitura!) é notável. Por que “Vamos ao Maracanã!” e “Ao Maracanã,
não!”? Por que viria a ser essa passagem, justamente, o estopim do
confronto? Na origem de tudo isso parece estar o que o novo Maracanã
representa, a ressignificação forçada de um artefato cultural que tange o
nervo imaginário da própria identidade nacional. Sua relação com o
capital, a gentrificação da cidade, o controle de uma entidade
estrangeira (a FIFA), a desvirtuação do rito nacional pela Lei Geral da
Copa, entre outros que detalharei a seguir, confunde a dicotomia
real/político e ideológico/simbólico que organiza a oposição de
inspiração marxista entre futebol e conscientização política, animando a
tese de que, no caso das manifestações, o tema do futebol transcendeu a
sua inscrição na jurisdição ideológica da “falsa consciência”.
Em primeiro lugar, o elo do novo Maracanã
com a força semi-soberana do capital (Eike Batista, OLX, Odebrecht) que
excluiu a participação popular nos planos de construção, viciou o
processo de licitação, idealizou elevar o preço dos ingressos para
elitizar o perfil de seus frequentadores e demoliu traumaticamente seus
entornos para expor, de forma fulcral, a gentrificação da cidade e do
espaço público — esse elo que associa a cidade-negócio ao
futebol-negócio — parece anunciar, no imaginário popular, a
transformação ameaçadora do próprio futebol jogado dentro de campo, o
aspecto central do rito em si.
Em outros aspectos, entretanto, pela Lei
Geral da Copa, já é certo que o futebol perde alguma especificidade
cultural, alterando a experiência ritual total. Na Bahia, foi proibido o
acarajé, no Rio Grande do Sul, a típica cerveja Polar, e nos outros
estados, o churrasquinho e o salsichão na farinha nas imediações dos
estádios; dance music e animadores alteram a experiência sonora,
um aspecto significativo uma vez que atinge o ritmo ritual das torcidas;
a eliminação das gerais e arquibancadas em favor de cadeiras
individuais subvertem a densidade igualitária e a experiência temporária
de atenuação das diferenças privadas, tão centrais à catarse de massa; a
exigência da contagem do tempo em 90 minutos corridos que aliena, como
ouvi num bar “os que não são matemáticos” de “saber quanto tempo tem de
jogo”, e etc. Para não multiplicar exemplos, admitamos que essas
modificações do rito têm ainda um agravante, o de serem ditados por uma
lei imposta por uma entidade estrangeira que visa a controlar diversos
traços essenciais da vivência do rito.
Previsivelmente, o boicote à Copa do
Mundo e a sabotagem do ambiente lúdico durante a Copa das Confederações,
com protestos nas imediações do Mané Garrincha, Mineirão, Castelão e
Maracanã em dias de jogos, tornaram-se objetivos comuns dos
manifestantes. Nessas ocasiões, não surpreende que o choque violento com
a polícia ocorra, precisamente, quando as demonstrações tencionam atravessar
o cordão de isolamento da FIFA em torno dos estádios. Contudo, essa
campanha pelo boicote aos eventos de futebol vai mais longe e inclui
desde exortações em redes sociais a não se assistir às transmissões dos
jogos, aos gritos de “Não vai ter Copa!” que ressoavam antes e depois da
ação da polícia na Presidente Vargas. Dentre seus muitos exemplos
correndo as redes sociais, pode-se destacar o vídeo “No, I’m not going
to the World Cup”, feito por uma brasileira no exterior para dissuadir
turistas de virem à Copa do Mundo, que já conta com mais de 3.500.000
visualizações no YouTube e Deus sabe quantas via Facebook, e tem sido
objeto de diversos artigos e reportagens na mídia brasileira.
Aqui emerge um interessante tour de force
entre a paixão pelo futebol e a mobilização política — no tema do
sacrifício do futebol em favor de benefícios materiais e da melhoria das
condições de vida em geral — que parece reconduzir-nos à oposição
inicial de que nos distanciamos. Mas aqui, também, essa relação
mutuamente excludente entre a presença do futebol e da consciência
política é apenas aparentemente dicotômica. Por exemplo: o grito “Vem
pra rua, vem pra rua”, é entonado pelos manifestantes de todos os
estados como na trilha sonora do comercial da FIAT para a Copa, cantada
primorosamente por Falcão, vocalista da banda O Rappa, em que o povo
toma as ruas para comemorar “a pátria de chuteiras”. Outras partes dessa
letra, como “o Brasil [vai tá] gigante” e “A rua é a maior arquibancada
do Brasil”, figuram em inúmeros cartazes levados pelos manifestantes,
que frequentemente retomam, em uníssono, o coro final do comercial, “Vem
pra rua! Vem pra rua!”. É um caso exemplar de como um artefato
pertencente originalmente a um contexto específico (a paixão pelo
futebol e o objetivo do consumo como motrizes de falsa consciência e
alienação política) é apropriado e deslocado para outro (a
conscientização política e sua mobilização), entrecruzando-se. Outras
interseções, cuja redundância só acrescenta à sua relevância, são as
camisas da seleção brasileira e os cantos típicos das torcidas de
futebol, ubíquos em todos os protestos, onde o “Eu sou brasileiro, com
muito orgulho, com muito amor” substitui o “Eu sou
rubro-negro/vascaíno/são paulino…” das arquibancadas. Em outras
palavras, no fundo dessa disposição ao sacrifício do futebol
vislumbra-se, exatamente, a liturgia, a indumentária e uma legitimidade
emocional oriundos do próprio futebol. O “sacrifício heróico” de uma
paixão por um ideal político-pragmático, portanto, não é completo, e o
imbricamento de falsa consciência e mobilização não se dá num nível tão
abstrato, posto que foi às ruas.
Tudo que vimos até agora evoca uma comparação muito viva com a hipótese central de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,
que inverte a lógica marxista da determinação da “superestrutura” pela
“infraestrutura”, descrevendo como uma forma ideológica familiar (a
religião Calvinista) absorveu e estimulou uma forma infraestrutural (o
capitalismo): nas manifestações recentes, uma outra forma ideológica, o
futebol e sua linguagem, absorveu e estimulou, simultaneamente,
mobilizações por reformas infraestruturais.
Podemos enfim responder à pergunta acima,
por que o diálogo entre policiais e manifestantes cariocas na noite de
20 de junho deu-se nos termos “Vamos ao Maracanã!” e “Ao Maracanã, não!”
— como o mesmo diálogo explosivo entre policiais e manifestantes
mineiros em 27 de junho deu-se nos termos “Vamos ao Mineirão!” e “Ao
Mineirão, não!”. Porque ambos os estádios, recentemente reformados,
simbolizam a colonização de um rito nacional, e enquanto sítios
repositórios desse rito, são res publica, por excelência.
Fonte: Revista Pittacos
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