Sete
anos de governos de direita desfizeram sonho de país justo e aberto.
Desigualdade e violência policial crescentes atiçaram revolta dos
imigrantes
Por Tom Peck, no The Independent | Tradução: Vila Vudu
A partir do instante em que Henrik Sedin controlou o puck,
ainda bem atrás no próprio meio-campo, começou uma noite terrível em
Estocolmo. Faltava pouco para as 22h, domingo passado, quando o time de
superstars milionários conseguiu enfiar o puck no
fundo da rede vazia do adversário: 5-1. Pela primeira vez em sete anos,
e em casa, frente à própria torcida, a equipe sueca era campeã mundial
de hóquei sobre o gelo.
O Ericsson Dome, na parte sul da cidade, foi ao delírio. Nos pubs irlandeses, nos elegantes quarteirões de Södermalm, rolaram rios de pints de cerveja Guinness.
Mas em Husby, subúrbio
no norte da cidade, distante do centro, região superpopulosa onde vivem
imigrantes, começava uma conflagração, em tudo diferente do que se via
entre os suecos brancos ricos. Um shopping centre foi
vandalizado e uma garagem incendiada, o que causou a evacuação dos
moradores de um bloco de apartamentos. Quando a polícia chegou, foi
recebida a pedradas por mascarados; dois policiais foram feridos. Num
vídeo que chocou o país, um terceiro policial caído aparece sendo
espancado e chutado; os agressores chutaram também a pistola que se vê
no coldre do policial.
Quando o dia clareou,
havia mais de cem carros incendiados; e quando os jogadores campeões
erguiam a taça, em confraternização com o rei Carl XVI Gustaf no
Kungsträdgården, à vista de 20 mil fãs, a Suécia já entrara na primeira
manhã dos piores tumultos urbanos de toda a moderna história do país,
que continuam.
Centenas de carros e
dúzias de prédios foram incendiados, e há mais de 100 presos. Imagens
dos policiais feridos e prédios em chamas, na rica, pacífica e
igualitária Suécia, surpreenderam o mundo. Mas, para outros muitos, não
foi surpresa. Há anos os sindicatos, trabalhadores dos serviços sociais,
cientistas políticos, rappers,
em confronto com número crescente de extremistas de direita, já contam o
Conto das Duas Estocolmos – duas sociedades que coexistem numa mesma
cidade dividida e não integrada. Mas nunca se vira oposição e contraste
tão declarados quanto naquela primeira noite de fogo nas periferias, que
sitiaram a festa do hóquei-sobre-o-gelo do centro.
Para quem estave em
Londres há dois anos, os tumultos em Estocolmo são assustadoramente
familiares. Há duas semanas, começaram a circular notícias da morte de
um imigrante português, 68 anos, atacado pela polícia dentro do
apartamento onde morava em Husby, depois levado ao hospital, onde
morreu. Ele teria sequestrado uma mulher, refém no apartamento, e teria
recebidos os policiais com um cutelo de açougueiro na mão.
Mas Megafonen, grupo
que milita por mudanças sociais nos subúrbios de Estocolmo publicou
fotos de um saco do tipo que a Polícia usa para remoção de cadáveres
sendo retirado do mesmo apartamento, num carro que parte em seguida. Não
uma ambulância: um carro. Mais tarde se soube que a dita “refém” era,
de fato, o cadáver da mulher do imigrante português, de 30 anos. Segundo
seu cunhado, o homem tinha na mão uma faca de cozinha, não um cutelo de
açougueiro; e que tentava defender-se contra uma gangue de mascarados
que dias antes perseguira ele e sua mulher. Quando a Polícia bateu à
porta do apartamento, a mulher contara ao cunhado, o marido supôs que
fossem os mascarados da gangue que os seguia; gritou para assustá-los,
talvez um pouco assustadoramente demais; e foi morto a tiros pela
polícia.
Ativistas de esquerda,
alvo preferencial, hoje, da Polícia sueca, que os acusa de insuflar os
tumultos de rua, dizem que quando essa versão dos eventos chegou aos
subúrbios, ajudou a incendiar quatro anos de ressentimento contra a
brutalidade policial – queixa já antiga e muito repetida nos subúrbios,
onde já praticamente não se veem suecos brancos – e contra o desemprego
alto e crescente, a sempre crescente desigualdade, a falta de
oportunidades para todos.
Mas, dessa vez, os
tumultos espalharam-se pela cidade, também para os subúrbios a oeste e
ao sul de Estocolmo e para outras cidades – Malmö, Gothenburg, Örebro –
onde escolas, restaurantes e delegacias de Polícia foram incendiadas. É
difícil determinar as motivações originais. Mas, o que quer que fosse,
na origem, o movimento já está hoje invadido por gangues de rua,
pequenos delinquentes, ou grupos de mascarados que, simplesmente,
tomaram conta dos bairros mais pobres. Parece que há algo de podre no
estado sueco.
A escala dos tumultos
não se compara ao que se viu em Paris em 2005 ou em Londres há dois
anos, onde aconteceram em áreas distantes do centro das capitais. Na
Suécia não houve mortos e houve baixo número de feridos. O pequeno
subúrbio de Husby é local agradável de viver, construído para suecos
ricos – que já não vivem ali. Nem de longe se parece com o conjunto
habitacional Broadwater Farm, de Tottenham, marco zero dos tumultos em
Londres.
Hoje, 80% dos que vivem
em Husby, Estocolmo, são imigrantes, a maior parte dos quais ali
chegaram como refugiados, escapados dos mais diferentes cantos do mundo
em guerra – Iraque, Irã, Afeganistão, Somália, Curdistão e, mais
recentemente, da Síria – atraídos pela propagada hospitalidade com que
os suecos recebem refugiados. Mas o desemprego entre os jovens é alto,
pelo menos para os padrões suecos: 6%.
“Estão dizendo que é
por causa daquele homem que foi morto” – disse Sadiya, 13 anos,
somaliana, que faz um curso de arte e artesanato no centro de
Husby. “Acho que querem chamar a atenção da Polícia. O pessoal que está
fazendo essas coisas é pouco mais velho que eu. Por que se preocupariam
com o desemprego? São crianças.”
Na parte externa do
centro onde são dados os cursos, durante o dia, mesmo no auge dos
tumultos, a vida prosseguiu praticamente normal. As floristas
continuaram a vender suas flores, fileiras de pequenos vasos plantados,
alinhados na parte externa da loja. Os prédios de apartamentos, todos de
média altura, têm jardins externos, bem cuidados. Mas todos os vidros
da estação do metrô estão quebrados. As paredes que protegiam um
telefone público foram destruídas. Restou o telefone, preso a um poste,
no centro do que parece ser uma piscina de vidros quebrados. Na rua, um
ônibus articulado foi explodido e incendiado. Há fragmentos de metal e
vidro por todos os lados. Os carros incendiados já foram diligentemente
removidos pelas autoridades, mas a coisa aqui parece grande demais. Uma
colega de Sadiya, Sagal, diz que ninguém ali consegue dormir já há três
noites.
Todas as crianças que
assistem às aulas, cerca de 25, nasceram na Suécia, mas só uma é filha
de pais suecos. Todas as demais são filhas de pais africanos do leste ou
do meio-leste da África.
“É difícil para nós” –
diz Ann-Sofie Ericson, diretora da Escola de Artes da Cidade de
Estocolmo que supervisiona a área. – “19% de nossas crianças abandonam a
escola a cada ano. Vivo a 15 minutos de carro daqui. Meus vizinhos são
iraquianos. Quando as pessoas chegam, vêm para bairros como Husby.
Alguns arranjarão emprego, educação, depois se mudam. Alguns não
conseguem sair.”
Quase não há pobreza
absoluta, mas não é a pobreza absoluta que alimenta os tumultos e
levantes urbanos. A sociedade sueca, afamada por ser igualitária, com
oferta excepcional de bem-estar para todos, foi construída por 40 anos
de governo da democracia social , dos anos 1930s aos anos 1970s. Mas umcrash econômico
no início dos anos 90s, e o governo de centro-direita que está no poder
desde 2006 impuseram inúmeras restrições ao estado de bem-estar, apesar
das condições econômicas relativamente benignas.
Estudo recente da OECD
revelou que a Suécia tem o mais rápido crescimento da desigualdade dos
34 países do grupo – e surpreendeu muita gente. Por isso, foi muitíssimo
citado ao longo da semana que passou.
Como vários lembraram,
os tumultos urbanos em Londres brotaram ao final de 30 anos de economia
neoliberal de linha Thatcherita e da “Terceira Via” – com furiosa
desregulamentação das finanças justificada pela ideia de que pouco
importava aumentar a desigualdade social, se as condições dos mais ricos
continuassem a melhorar.
O que se vê na Suécia é que a desigualdade crescente está gerando indignação e fúria também crescentes.
Em Husby, quando cai a
noite – que em maio dura pouco mais de quatro horas –, grupos de jovens
reúnem-se no centro, todos usando calças e camisetas largas. “Acho que
tenho até sorte, por estar na Europa” – diz Baraar Mohamed, filho de
somalianos, 15 anos, cujos pais garantem que não jogou pedras nem
incendiou coisa alguma. – “Comparado ao pessoal na Somália, talvez seja
sorte. Mas não fiz nada, nem ando com eles, e vivo aqui, e tenho de
conviver com a brutalidade da Polícia, e não tenho a mesma sorte que
outros suecos da minha idade. Eu sou sueco. Sou sueco.”
Ken Ring, rapper sueco
de origem queniana, que cresceu e ainda vive no subúrbio de Valingby,
onde grupos de jovens apedrejaram vagões do metrô e incendiaram carros
na 5ª-feira à noite, concorda.
“Nunca estive em lugar
algum, do mundo, onde as pessoas saibam o que é a realidade de viver na
Suécia” – diz ele. “Quando veem fotos dos nossos subúrbios, dizem ‘não,
não é Estocolmo. Deve ser Londres, Marselha.’ Estocolmo é hoje uma
loucura…”
Hoje com 34 anos, Ring foi nome bastante conhecido nos anos 90s, quando foi preso depois de gravar umrap em
que falava de invadir o Castelo Real e estuprar a princesa Madeleine,
3ª na linha de sucessão ao trono, e que se casaria em duas semanas. Por
causa do casamento, havia mobilização policial extra. Mas, depois, se
reabilitou. “Onde moro vejo crianças de 14, 15 anos usando heroína.
Tenho um filho de 12. Há dois anos, outra criança apontou uma arma para a
cabeça do meu filho e disse ‘olhe só, você, assim, fica mais fraco que
eu’. É a Suécia hoje. E não era para ser assim.”
Não era. O herói do
dia, surgido dos tumultos de rua, é um bombeiro, Mattias Lassen,
atingido por pedradas quando tentava apagar o fogo em casas próximas de
Husby, e que, depois, publicou uma carta aberta aos que o apedrejaram,
pelo Facebook.
“Podem me chamar, se
seu pai bater o carro e precisar de ajuda. Posso ajudar sua irmã, se a
cozinha dela pegar fogo. E nado na água gelada, para salvar seu irmão
pequeno, se ele cair do bote” – escreveu ele. – Também posso ajudar sua
avó, se ela tiver um infarto. E posso até ajudar VOCÊ, se acontecer de
você pisar em gelo fino no lago, num ensolarado dia de março.”
A maré de insatisfação
cresce dos dois lados. Nas eleições gerais de 2010, o Partido Sueco
Democrático – que faz campanha contra os imigrantes, regularmente
descrito como partido de extrema direita, ultrapassou pela primeira vez a
cláusula de barreira dos 4% de votos. Elegeu 20 deputados, para o
Parlamento, de 349 cadeiras.
Na 6ª-feira à noite,
com número extra de policiais nas ruas de Estocolmo, onde as coisas
estavam comparativamente mais calmas, graves tumultos irromperam em
Örebro, a quase 200 quilômetros a leste da capital; e em Tumba, no sul
do país. Pela primeira vez, grupos de ‘vigilantes’ de extrema direita
tomaram as ruas, depois de postarem fotos de membros do grupo, com
rostos mascarados. Em Tumba, a Polícia prendeu 18 deles. A Polícia
também está à caça de “uma pequena claque de agitadores profissionais de
esquerda”, acusados de estarem viajando de cidade em cidade, usando
carros particulares, disseminando táticas que conhecem bem, como
destruir calçadas para soltar as pedras, e provocando agitação por onde
passam.
A grande maioria dos
presos durante os primeiros dias de tumultos de rua já foram libertados.
O primeiro a comparecer ante o juiz foi um arrependido e trêmulo jovem
de 18 anos. “Nunca deveria ter-me juntado a eles” – disse ele. – “Queria
ser bombeiro. Agora, acho que nunca conseguirei.”
Ontem, em Åkersberga,
60 quilômetros ao norte do centro de Estocolmo, ainda havia incêndios de
carros à luz do dia, com a Polícia perseguindo grupos suspeitos, em
helicópteros. Ken Ring, embora condene firmemente a violência geral,
ainda tem esperanças. “Essas coisas ajudam a chamar a atenção. Os
jornais falam, as televisões mostram. O governo não poderá deixar de ver
o que está acontecendo.”
Depois que acabarem os
incêndios provocados, com os ativistas de esquerda, os extremistas da
direita fascista e os imigrados irados já julgados em tribunais justos,
talvez, então, sim, o mundo perceba o que muitos suecos já perceberam:
desde os anos neoliberais, as coisas na Suécia já não são o que parecem.
Fonte: Outras Palavras
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