Joãozinho do Rio
Há alguns dias atrás os cariocas foram
surpreendidos por um episódio no mínimo curioso, no qual o prefeito da
cidade, Eduardo Paes, agrediu com socos um cidadão conhecido pelos seus
como Botika. A motivação para a agressão, segundo veiculado nos jornais e
pelo próprio Botika em seu perfil numa rede social, se deu em virtude
de alguns xingamentos – o mais notório “bosta” – proferidos por ele
contra o prefeito, que estava jantando com amigos no mesmo restaurante
japonês que o seu desafeto-relâmpago. Não se sabe se ambos pediram o
mesmo prato. Sabe-se, no entanto, que divergiam sobre a forma como a
cidade do Rio de Janeiro deveria ser governada e, alguns saquês mais
tarde, deu-se as vias de fato.
Na grande mídia, a “cisma do bosta” ficou
entre o obscurecido e o minimizado, na cor marrom que também define
nossa imprensa. Já nas redes sociais o tratamento dispensado ao episódio
se situou dentro do velho padrão maniqueísta que costuma caracterizar
as intervenções/opiniões na internet: preto ou branco. O artista, para
alguns, se tornou herói. Para outros, um moleque que não tinha o direito
de fazer o que fez, da forma que fez, no lugar onde fez. No geral, o
debate, se é que podemos chamá-lo assim, parece concentrado na ideia de
certo ou errado. Ou de quem está menos errado.
Qualquer um já deve ter experimentado
algo semelhante na infância. “Ele me bateu”. “Não, pai, ele que começou
com o xingamento”. Eu passei por isso inúmeras vezes quando era garoto.
Meus pais sempre colocavam os dois de castigo. Mas não estamos falando
de crianças. E eu, particularmente, não quero falar nem mesmo de adultos
com posturas infantis, como são ambos os “meninos mimados” e bem
nascidos da zona sul carioca que protagonizaram esse patético episódio.
Meu ponto é outro, que não trata do entrevero entre indivíduos privados,
mas da vida pública e alguns de seus aspectos simbólicos.
Em virtude dos megaeventos que
acontecerão no Rio de Janeiro em futuro próximo, a cidade tornou-se
objeto de grande interesse político e empresarial. Até aí, nada a
declarar – afinal, a reestruturação da cidade é uma demanda centenária
e, sob os auspícios dos megaeventos, uma oportunidade salutar. Contudo,
vê-se muito pouco acontecendo nos termos de um legado para a cidade e
sua população. Ou melhor, até se vê, mas não da forma imaginada pelos
cariocas regulares que não pertencem à família de Eike Batista ou que
não são acionistas da Odebrecht. O desapontamento daqueles que,
tardiamente, se deram conta da orgia especulativa que tomou conta do
Rio é evidente. E esse desapontamento, no geral, quando ganha corpo sob a
forma de protestos, é respondido com truculência ímpar. O Rio tem sido,
à duras penas, mantido calado à força. Na base do spray de pimenta pra
classe média e das armas empunhadas contra os favelados durante as
remoções.
Apenas a título de ilustração, no início
de maio acompanhei uma pesquisadora canadense que estuda os megaeventos
no mundo. Visitamos uma série de lugares afetados direta ou
indiretamente por esse processo. O grau de obscurantismo é
inacreditável. A ponto de sermos impedidos de tirar uma simples
fotografia de um canteiro de obras, situado próximo à Central do Brasil,
onde estão erguendo prédios para alocar parte dos moradores que serão
removidos do morro da Providência. E estávamos numa via pública. Isso
não impediu que fôssemos violentamente embarreirados pelos seguranças da
obra – segundo os quais tinham ordens superiores para assim procederem.
A episódios como esse somam-se inúmeras denúncias de superfaturamento e
corrupção, que não vêm ao caso serem comentadas. Não aqui. Independente
disso, parece evidente que o processo de reestruturação da cidade é
imposto de cima pra baixo, sem qualquer tipo de reflexão, diálogo ou
preocupação com a coisa pública.
Nesse contexto, algumas esquizofrenias
acabam por emergir. A Aldeia Maracanã foi uma delas. Quem mora no Rio e
conhece aquela região sabe que o prédio não tem nada de indígena. Estava
simplesmente abandonado. Caindo aos pedaços. Ninguém reclamaria de sua
derrubada em uma situação normal – embora a arquitetura do prédio, de
grande beleza, ainda pudesse ser resguardada com uma reforma. Mas então
por que fizeram tanto estardalhaço por uma construção quase em ruínas?
Seriam aquelas pessoas ingênuas? Ou maldosos oposicionistas políticos?
Para mim, Joãozinho do Rio, flâneur por
opção e pitaqueiro por esporte, tanto a Aldeia Maracanã quanto as
reações sobre a “cisma do bosta” espelham uma necessidade da cidade
falar. Uma vocação nossa. As pessoas não lutaram por um prédio, mas por
um símbolo. As pessoas não defenderam uma agressão verbal contra o Dudu,
sujeito privado, mas um grito público contra sua administração
particular. Gritaram contra o silêncio que vem sendo imposto goela
abaixo dos cariocas e que, mês a mês, tem sido de cada vez mais difícil
digestão.
É por isso que, no caso específico da
discussão no restaurante chique do Jardim Botânico, as reações, em sua
maioria favoráveis ao Botika, espelham apenas superficialmente uma
opinião sobre o episódio em si. A “cisma do bosta” tem um quê de
vingança, de revolta – não sobre sujeitos privados, mas públicos,
encarnados nas duas figuras que digladiaram num domingo tedioso. A
transformação do xingamento de um cidadão nos socos do prefeito não diz
respeito apenas a Botika e Paes. O episódio espelha dramaticamente o
modelo de Rio de Janeiro em que atualmente vivemos. O modelo do
silêncio. O modelo da força. O modelo da grana. O modelo em que um
“princípio de desentendimento físico” – segundo as palavras de Eduardo
Paes – é principiado pelo próprio poder público toda vez que uma voz
dissonante se faz ligeiramente ouvir. A “cisma do bosta” foi um desses
eventos espetaculares em que o micro traduz o macro. A infantilidade
etílica do protesto, num momento de baixa autocensura e, ao mesmo tempo,
da possibilidade de se fazer ouvir diretamente por uma autoridade que
se recusa a ouvir algo mais que o tilintar das moedas no cofrinho,
retrata, de forma triste, lamentável e caricata, um problema muito
sério.
Se Botika agiu como um menino mimado,
chamando o prefeito de bosta, ele está duplamente errado. Eduardo Paes
não é um bosta. Provavelmente é um verme. Uma Taenia solium que
parasita um Rio de Janeiro cansado da carne do porco orwelliano gordo e
burguês. E esse verme, que se alimenta do vigor da nossa cidade,
insiste em nos tornar politicamente anêmicos. É por isso que
manifestações tristes e pálidas como as de Botika ganham cor, mas não a
cor marrom da mídia, tampouco o preto-ou-branco da internet. A cor é
vermelha – vermelho-sangue – da indignação pública, mas também da
violência com que a indignação pública é tratada por essa bosta de
prefeito que saiu do nosso próprio rabo – não esqueçam – nas últimas
eleições.
Fonte: Revista Pittacos
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