Em seu artigo, Agamben explica que, segundo Benjamin, “o capitalismo
não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé
protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve
de modo parasitário a partir do cristianismo”. Ao refletir sobre a
desmaterialização da moeda, Agamben afirma que “o dinheiro é um crédito
que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si
mesmo”.
Por Giorgio Agamben | Tradução e intro. Selvino J. Assmann
Publicado originalmente no site do Instituto Humanitas da Unisinos, em 13/5/13.
Original da revista italiana Lo Straniero, de 29/4/13.
—
Há sinais dos tempos (Mt.16,2-4) que, mesmo evidentes, os homens, que
perscrutam os sinais nos céus, não conseguem captar. Eles
cristalizam-se em eventos que anunciam e definem a época que vem,
eventos que podem passar despercebidos e não alterar em nada ou quase
nada a realidade a que se juntam e que, no entanto, precisamente por
isso valem como sinais, como indicadores históricos, semeia ton kairon.
Um destes eventos ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o governo
norte-americano, sob a presidência de Richard Nixon, declarou que a
convertibilidade do dólar em ouro estava suspensa. Embora tal declaração
marcasse de fato o fim de um sistema que havia vinculado por longo
tempo o valor da moeda a uma base em ouro, a notícia, comunicada no
coração das férias estivas, suscitou menos discussões do que
legitimamente se poderia ter esperado. Mesmo assim, a partir daquele
momento, a inscrição, que ainda se lê em muitas cédulas (por exemplo,
sobre a libra esterlina e sobre a rúpia, mas não sobre o euro), “prometo
pagar ao portador a soma de…”, assinada pelo presidente do Banco
Central, havia perdido definitivamente o seu sentido. Esta frase
significava agora que, em troca daquela cédula, o banco central
ofereceria a quem o pedisse (admitindo que alguém fosse tão tolo para o
pedir) não uma certa quantidade de ouro (por um dólar, trinta e cinco
avos de uma onça), mas sim uma cédula exatamente igual. O dinheiro
esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente
autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que
foi aceito o gesto do soberano norte-americano, que equivalia a anular o
patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi
sugerido, o exercício da soberania monetária por parte de um Estado
consiste na sua capacidade de induzir os atores do mercado a empregarem
os seus débitos como moeda, agora também o débito tinha perdido toda
referência real, tornando-se puramente de papel.
Desmaterialização da moeda
O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos
antes, quando as exigências do mercado levaram a vincular à moeda
metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras de câmbio,
cédulas, juros, goldschmith’s notes, etc. Todas estas moedas de papel,
na realidade, são títulos de crédito e, por isso, são chamadas de moedas
fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria valer –
pelo seu conteúdo de metal precioso (aliás, como se sabe, inseguro: o
caso limite é o das moedas de prata cunhadas por Frederico II, que logo
depois de ser usada deixava aparecer o vermelho do cobre). Contudo,
Schumpeter (que vivia, sim, numa época em que a moeda de papel já havia
superado a moeda metálica) pôde afirmar, e com razão, que, em última
análise, todo o dinheiro é apenas crédito. Depois de 15 de agosto de
1971, deveríamos acrescentar que o dinheiro é um crédito que se funda
unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo.
Benjamin e o capitalismo como religião
O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes
fragmentos póstumos de Benjamin. Já foi observado mais vezes que o
socialismo era algo como uma religião (entre outros autores, para
Schmitt, “o socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para
os homens dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o
cristianismo para os homens de dois mil anos atrás”). Segundo Benjamin, o
capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma
secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno
religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do
cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por
três características:
1.- É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que
jamais tenha existido. Nela tudo só tem significado se for referido ao
cumprimento de um culto, e não a um dogma ou a uma ideia.
2.- Este culto é permanente, é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”.
Não é possível, aqui, distinguir entre dias de festa e dias de
trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa-trabalho, no qual o
trabalho coincide com a celebração do culto.
3.- O culto capitalista não está destinado a trazer redenção ou a
expiação de uma culpa, mas destinado à própria culpa. “O capitalismo é
talvez o único caso de culpa não expiante, mas culpabilizante. Uma
monstruosa consciência culpada que não conhece redenção transforma-se em
culto, não para expiar nisso a sua culpa, mas para a tornar universal… e
para, no final, capturar o próprio Deus na culpa… Deus não morreu, mas
foi incorporado no destino do homem”.
Precisamente porque tende com todas as suas forças não à redenção,
mas à culpa, não à esperança, mas ao desespero, o capitalismo como
religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a sua
destruição. E o seu domínio é, em nosso tempo, tão total que até os três
grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram,
segundo Benjamin, com ele, são solidários, de algum modo, com a religião
do desespero. “Esta passagem do planeta homem pela casa do desespero na
absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este
homem é o Sobre-homem, ou seja, o primeiro homem que começa
conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria
freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o que foi
removido, a representação pecaminosa… é o capital, sobre o qual o
inferno do inconsciente paga os juros”. E, em Marx, o capitalismo, com
os juros simples e compostos, que são função da culpa… transforma-se
imediatamente em socialismo”.
Em que crê o capitalismo?
Tentemos tomar a sério e a desenvolver a hipótese de Benjamin. Se o
capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de fé? Em
que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a decisão de
Nixon? David Flüsser,
grande estudioso de ciência das religiões – existe também uma
disciplina com este estranho nome – estava trabalhando sobre a palavra pistis,
que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam como “fé”. Naquele
dia achava-se por acaso numa praça de Atenas e a uma certa altura,
erguendo os olhos, viu escrito em caracteres cubitais diante de si Trapeza tes pisteos.
Estupefato pela coincidência, olhou melhor e após alguns segundos se
deu conta de se encontrar simplesmente na frente de um banco: trapeza tes pisteos significa em grego “banco de crédito”. Eis o sentido da palavra pistis
– fé – é simplesmente o crédito de que gozamos junto a Deus e de que a
palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que cremos
nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição, que a “fé é
substância de coisas esperadas” (1): ela é aquilo que dá crédito e
realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e temos
confiança, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Creditum é o particípio passado do verbo latino credere:
e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa fé, quando
estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa
proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou
tomando de empréstimo dele algum dinheiro. Na pistis paulina
volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia que Benveniste
reconstruiu, a “fidelidade pessoal”: “Aquele que detém a fides
posta nele por um homem mantém tal homem em seu poder… Na sua forma
primitiva, esta relação implica uma reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia e a sua ajuda”.
Capitalismo: religião fundada sobre a fé
Se isso for verdadeiro, então a hipótese de Benjamin
de que há uma estreita relação entre capitalismo e religião acaba
recebendo uma nova confirmação: o capitalismo é uma religião
inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide
(unicamente da fé). E se, segundo Benjamin, o capitalismo é uma
religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se
emancipou de todo pecado, e, portanto, de toda possível redenção. Então,
do ponto de vista da fé, o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no
puro fato de crer, no puro crédito (believes on the pure belief),
ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé –
o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o
dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o
dinheiro.
Isso significa que o banco, que nada mais é do que uma máquina para
fabricar e gerir crédito (Braudel, p. 368), tomou o lugar da Igreja e,
ao governar o crédito, manipula e gere a fé – a escassa e incerta
confiança – que o nosso tempo ainda conserva em si mesmo.
Crédito: ser imaterial
O que significou, para esta religião, a decisão de suspender a
convertibilidade em ouro? Certamente constituiu uma espécie de
elucidação do próprio conteúdo comparável à destruição mosaica do
bezerro de ouro ou à fixação de um dogma conciliar – em todo caso,
trata-se de uma passagem decisiva para a purificação e a cristalização
da própria fé. Esta – na forma do dinheiro e do crédito – emancipa-se
agora frente a toda referência externa, cancela o seu nexo idolátrico
com o ouro e se afirma na sua absolutidade. O crédito é um ser puramente
imaterial, a mais perfeita paródia da pistis, que nada mais é
do que “substância das coisas esperadas”. A fé – assim dizia a célebre
definição da Carta aos Hebreus – é substância – ousia, termo
técnico por excelência da ontologia grega – das coisas esperadas. O que
Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis
em Cristo, toma a palavra de Cristo como se fosse a coisa, o ser, a
substância. Mas é precisamente este “como se” que a paródia da religião
capitalista cancela. O dinheiro, a nova pistis, é, agora
imediatamente e sem resíduos, substância. O caráter destrutivo da
religião capitalista, de que falava Benjamin, aparece aqui na sua plena
evidência. A “coisa esperada” não existe mais, e foi aniquilada e deve
sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia
no sentido técnico. E dessa maneira elimina-se o último obstáculo para a
criação de um mercado da moeda, para a transformação integral do
dinheiro em mercadoria.
A sociedade condenada a viver de crédito
Uma sociedade cuja religião é o crédito, que crê apenas no crédito,
está condenada a viver de crédito. Robert Kurtz ilustrou a transformação
do capitalismo do século XIX, ainda fundamentado na solvência e na
desconfiança com relação ao crédito, no capitalismo financeiro
contemporâneo. “Para o capital privado do século XIX, com os seus
proprietários pessoais e com os relativos clãs familiares, valiam ainda
os princípios da respeitabilidade e da solvência, à luz dos quais o
recurso cada vez maior ao crédito aparecia quase como algo obsceno, como
o início do fim. A literatura popular da época está cheia de histórias
em que grandes estirpes caem em ruína por causa da sua dependência do
crédito: em algumas passagens dos Buddenbrook, Thomas Mann fez disso até
mesmo um tema que mereceu um Prêmio Nobel. O capital produtivo de juros
era naturalmente, desde o início, indispensável para o sistema que se
estava formando, mas ainda não tinha importância decisiva na reprodução
capitalista no seu conjunto. Os negócios do capital “fictício” eram
considerados típicos de um ambiente de trapaceiros e de pessoas
desonestas, à margem do capitalismo propriamente dito… Além disso, Henry
Ford rejeitou por muito tempo o recurso ao crédito bancário,
obstinando-se em querer financiar os seus investimentos unicamente com o
próprio capital” (R. Kurz, La fine della politica e l’apoteosi del denaro, Roma, 1997, p. 76-77; Die Himmelfahrt des Geldes, em “Krisis”, 16, 17, 1995).
A hipoteca antecipada do trabalho
No decurso do século XIX, esta concepção patriarcal dissolveu-se
completamente, e o capital das empresas hoje recorre em medida crescente
ao capital monetário, tomado de empréstimo junto ao sistema bancário.
Isso significa que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem
por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores
do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias
alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em
coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que
não pode nem deve ser extinto. Mas não são apenas as empresas que vivem,
neste sentido, sola fide, a crédito (ou a
débito). Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo
crescente, estão da mesma forma religiosamente envolvidos neste
contínuo e generalizado ato de fé sobre o futuro. E o Banco é o sumo
sacerdote que ministra aos fiéis o único sacramento da religião
capitalista: o crédito-débito.
Notas:
1.- Cf. Carta aos Hebreus 11,1 (Nota da IHU On-Line).
Fonte: Uninomade
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