Por Marco Mondaini
Publicado em fevereiro de 1844 no primeiro e único número dos Anais Franco-Alemães, junto à Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica representa o ato de fundação da crítica marxista aos direitos humanos. Escrito por Karl Marx no ano de 1843 quando tinha apenas 25 anos de idade, o ensaio é um texto de polêmica contra o jovem hegeliano Bruno Bauer em sua análise da religião judaica [1].
Então, o jovem Marx realiza duas distinções que acabariam se tornando recorrentes dentro da tradição teórico-política por ele fundada no decorrer do século XIX: 1) emancipação política e emancipação humana; 2) direitos do homem e direitos do cidadão.
Por meio da primeira distinção, busca-se mostrar que a separação entre Estado e religião, isto é, a ultrapassagem da religião de Estado por meio da edificação de um Estado laico (a emancipação política da religião), não acarreta a libertação do ser humano em relação ao sentimento religioso (a emancipação humana da religião), da mesma forma que a diminuição do peso da propriedade privada na formação do corpo eleitoral, o amolecimento do sufrágio censitário, não torna o homem livre da propriedade privada.
O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre [...] Portanto, o Estado pode ter se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E agrande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado (MARX, 2005: 19).
Assim, o problema da democracia conquistada por meio da emancipação política estaria localizado exatamente no fato de manter o homem como um ser alienado já que a emancipação do Estado político em relação à religião ou à propriedade não acarreta a emancipação do homem real em relação a estas duas, que são devidamente mantidas em pé no interior da sociedade civil burguesa.
Dentro desse contexto, devido à falta de radicalidade que a move, a emancipação política sempre estaria envolta por contradições não resolvidas, diferentemente da emancipação humana, única realmente capaz de transformar o homem num ser livre, já que não recorreria ao subterfúgio da transferência do problema da religião ou da propriedade do mundo público para o mundo privado, pois que, libertando o homem no campo público e mantendo-o preso privadamente, mesmo sendo eliminadas politicamente, religião e propriedade continuariam sendo pressupostos da vida social burguesa real, não sendo suprimidas dessa esfera.
A cisão do homem entre a vida pública e a vida privada, levada a cabo através da emancipação política, encontra-se na base da segunda distinção estabelecida pelo jovem Marx – aquela realizada entre os direitos do homem (droits de l’homme) e os direitos do cidadão (droits du citoyen), ou seja, por um lado, os direitos do homem burguês que não passa de uma mônada isolada dobrada sobre si mesma, os direitos do homem egoísta, os direitos do interesse pessoal, os direitos do homem separado do homem e da comunidade, enfim, os direitos do membro da sociedade civil burguesa, e, por outro lado, os direitos do membro da comunidade política, a aparência política da sociedade civil burguesa, que, como tal, se submete à essência social burguesa.
Desse modo, para Marx, os direitos do homem acabam submetendo os direitos do cidadão à medida que o citoyen é declarado servo do homme egoísta, do bourgeois. Com isso, a revolução política levada a cabo pelos direitos humanos realiza a dissolução da vida burguesa sem criticá-la radicalmente, isto é, sem questionar o fato de que o cidadão na democracia política é apenas uma abstração submissa ao burguês, um ser alienado, não um ser genérico real, que não consegue ter consciência do fato de que o cidadão abstrato é a forma que mantém velado o homem egoísta.
[...] Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa é considerado como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, sob a forma do citoyen abstrato” (MARX, 2005: 41).
Daí a conclusão de Marx de que, por meio da emancipação política, o homem é apenas e tão somente reduzido, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro lado, a cidadão do Estado, a pessoa moral, cabendo à emancipação humana a tarefa histórica desalienante de fazer com que o homem individual real recupere em si o cidadão abstrato, convertendo-se assim, como homem individual, em ser humano genérico.
Marx retomaria a polêmica contra Bruno Bauer e a análise crítica dos direitos humanos no primeiro livro escrito junto a Friedrich Engels, no ano de 1845: A Sagrada Família. Nessa ocasião, em conformidade com o que havia sido argumentado dois anos antes em A Questão Judaica, indica-se que o reconhecimento da livre personalidade humana, já contida nos direitos gerais do homem, nada mais seria que o reconhecimento do indivíduo egoísta burguês, o que significa, por conseguinte, que:
[...] os direitos humanos não emancipam o homem da religião, senão que lhe outorgam liberdade religiosa; não o emancipam da propriedade, senão que lhe conferem a liberdade de propriedade; não o emancipam das redes de lucro, senão que lhe outorgam a liberdade industrial (MARX, 2005: 78-9) [2].
Em suma, para Marx, os direitos humanos seriam o instrumento da conquista da emancipação política, mas, enquanto tais, não passariam de um produto da sociedade burguesa, na qual a conquista da liberdade do indivíduo implica sempre a limitação da liberdade dos outros indivíduos e não a sua realização junto a esta última. Os direitos humanos, dentro desse contexto, desempenhariam a função de instrumento de delimitação da individualidade dos homens livres, que, na vida real, estariam envoltos na clássica “guerra de uns contra os outros” hobbesiana. Com isso, a escravidão da sociedade burguesa ganharia a aparência da sua maior liberdade — isso, através da substituição do que antes era privilégio pelo direito.
Mesmo sem tratar diretamente da questão dos direitos humanos e apesar de não ser um texto de natureza filosófica, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky de Lenin ocupa um lugar certo na construção da crítica marxista sobre a temática em questão.
Escrito no ano de 1918, com o escopo de defender a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte pelos bolcheviques e rebater as teses enunciadas pelo líder da social democracia alemã, Karl Kautsky, em A Ditadura do Proletariado, o livro de Lenin foi um dos maiores responsáveis pela afirmação da dicotomia entre democracia burguesa e democracia proletária no interior do pensamento marxista e dos partidos comunistas mundo afora.
Para Lenin, não haveria sentido algum em falar de democracia em geral, de democracia pura, em uma sociedade dividida em classes, podendo-se falar apenas de democracia de classe enquanto existirem classes diferentes. Por conseguinte, seria inevitável a pergunta: democracia, para que classe? Somente assim seria possível a percepção de que a democracia pura não passa de um meio para se esconder o caráter de classe da democracia burguesa.
Dito de outra maneira, à medida que é compreendida como um conceito jurídico e formal, a democracia se reduz a uma aparência responsável pelo encobrimento da dominação das massas pela burguesia, uma expressão ideológica da ditadura de classe burguesa.
O raciocínio desenvolvido pelo líder da Revolução Russa não deixa margem a qualquer espécie de dúvida. Em função da sua essência burguesa, a democracia contemporânea, isto é, capitalista, seria uma democracia para os ricos, sendo a igualdade formal apenas o tipo de igualdade desejado pelos capitalistas.
Nesse sentido, a conclusão a que chega Lenin sobre as instituições representativas parece óbvia. O parlamento é uma instituição burguesa, comandada por uma classe hostil, uma minoria exploradora, sendo um instrumento de opressão dos proletários, inteiramente alheio aos interesses destes últimos, diversamente do instituto revolucionário de participação criado no decorrer do processo revolucionário russo – os sovietes.
A democracia proletária é um milhão de vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa. O Poder Soviético é um milhão de vezes mais democrático que a mais democrática república burguesa (LENIN, 1980: 19) [3].
Antes mesmo de alguns marxismos terem sido arejados pelos ventos que passaram a soprar no pós-Segunda Guerra Mundial, as reflexões levadas a cabo por Antonio Gramsci assinalam a vitalidade de uma cabeça sempre aberta à incorporação dos novos traços presentes numa realidade social em contínuo (e acelerado) movimento, a exemplo da realidade europeia dos anos 1920 e 1930.
O pensador italiano que fundou o Partido Comunista Italiano, em 1921, deu-se conta de que o Estado capitalista não era mais o mesmo que aquele existente nas análises implementadas por Marx durante o século XIX, em particular, aquelas realizadas em torno de 1848. O Estado não se reduzia mais a um aparelho estritamente coercitivo, que se mantinha única e exclusivamente por intermédio do uso da força.
O Estado sofrera um processo de “ampliação”, não sendo mais aquela estrutura “restrita” dos anos mil e oitocentos.
O novo Estado capitalista tornara-se progressivamente um complexo formado por dois planos: a) a “sociedade civil” — plano constituído por instituições responsáveis pela construção da “hegemonia”, do “consenso”; b) a “sociedade política” — plano constituído por instituições responsáveis pela imposição da “dominação”, da “coerção”.
Em suma, o Estado havia se tornado “hegemonia revestida de coerção” (GRAMSCI, 2001: 20-1).
Dessa distinção inicial, Gramsci estabelece, como corolário, uma diferenciação entre duas formas possíveis de Estado na contemporaneidade: aquele típico dos países do “Ocidente”, onde há uma relação equilibrada entre “sociedade civil” e “sociedade política”, e aquele próprio das nações do “Oriente”, onde a “sociedade política” é tudo e a “sociedade civil” é gelatinosa (GRAMSCI, 2000: 262).
Enquanto no “Oriente”, a luta pela transformação social ainda deveria passar por uma “via insurrecional” (“guerra de movimento”), no “Ocidente”, já haveria a possibilidade de uma batalha no campo das ideias, de uma disputa por “hegemonia”, pela “direção intelectual e moral” nas “trincheiras da sociedade civil” (“guerra de posição”) (GRAMSCI, 2000: 24).
Em outras palavras, a existência de uma nova forma estatal trazia consigo a exigência de uma nova maneira de revolucioná-la. A luta pela mudança já poderia ser implementada no âmbito de instituições como a escola, o sindicato, a imprensa etc, tornadas campos de disputa ideológica, de confrontação entre projetos de organização social divergentes.
Dentro desse contexto, nas análises gramscianas, o direito estaria situado ainda no plano da “sociedade política”. Isso fica claro quando Gramsci afirma que o “aparelho da coerção estatal [...] assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’”, que o “‘domínio direto’ [...] se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’” (GRAMSCI, 2001: 20-1).
Claro está, pois, que o direito não seria espaço de luta por “hegemonia”, de uma “batalha de ideias”, já que seu caráter seria de pura legitimação, no nível da construção da legalidade, das estruturas dominantes do poder capitalista.
Eis, aí, o progresso e o limite contidos nas conclusões presentes na obra do pensador sardo. De uma parte, ele avançou na percepção das estruturas políticas do novo Estado capitalista, das novas relações estabelecidas entre governantes e governados, e das maneiras de transformá-las. De outra parte, ele não conseguiu superar a visão tradicional do direito como instrumento auxiliar de dominação de classe.
Porém, se Gramsci não superou tais barreiras, é inquestionável o fato de que conseguiu lançar as sementes para uma nova visualização do direito com a sua renovada teoria política, deixando a colheita dessa nova visão para futuras gerações do pensamento marxista, como veremos mais è frente.
A condicionar a potencialidade valorativa dos direitos humanos contida no pensamento de Gramsci (o ato de lançamento das sementes), não deve ser ignorado o seu reconhecimento, por meio da leitura da obra do historiador italiano Gaetano Salvemini, durante os anos de cárcere, da dimensão popular da Revolução Francesa, reconhecimento este que se encontra na base da possibilidade futura de “adoção de uma perspectiva dos direitos humanos à maneira do ‘olho do pardal’, em vez de os direitos humanos como governo das leis, à maneira do olho olímpico da águia” (DAVIDSON e WEEKLEY, 2003: 84-5).
Assim, parece-me pertinente afirmar que a obra de Gramsci, como potência, é capaz de impulsionar uma “concepção teórica dos direitos humanos a partir de baixo” – isso, não obstante o fato de Gramsci, no período pré-carcerário, ter compartilhado integralmente a crítica feita pelo jovem Marx aos direitos humanos, na Questão Judaica:
Gramsci reitera a crítica marxiana à proteção dos direitos do “indivíduo burguês egoísta” — a figura real subjacente ao indivíduo abstrato —, de forma ainda mais incisiva, num famoso ensaio dos primeiros tempos, “A soberania da lei”, de 1916. Ele insiste que o Estado baseado na “soberania popular” de um corpo de cidadãos estruturado em direitos era apenas uma ditadura disfarçada de “poder legal”; seu objetivo era a proteção da propriedade privada [...] Assim, Gramsci argumentava que a luta da classe trabalhadora para estabelecer laços verdadeiramente humanos numa nova ordem devia substituir o “cidadão-indivíduo” pelo companheiro e as liberdades do primeiro, pela solidariedade do segundo (DAVIDSON e WEEKLEY, 2003: 86-7).
O filósofo francês Claude Lefort assinalou com precisão o ponto central do equívoco cometido por Marx em relação aos direitos humanos, numa análise que, de certa forma, pode ser estendida ao entendimento da questão democrática por Lenin.
Para Lefort, tal equívoco estaria situado na não percepção de que a descoberta dos direitos humanos e da democracia nasce da luta de classes, dos movimentos populares e operários, não sendo uma pura invenção da burguesia.
À luz de Marx, os direitos humanos não seriam mais que uma ilusão política — necessária, mas transitória — existente enquanto a emancipação política não se transformasse em emancipação humana. Com isso, a liberdade de consciência, por exemplo, deixa de ser vista como uma conquista de caráter universal nascida do combate ao Antigo Regime para se transformar em uma simples ficção democrática.
Assim, Marx não se inquieta em demonstrar que os principais enunciados contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão são transgredidos na prática, através de uma interpretação burguesa da lei — pelo contrário, ele rejeita a própria função da lei escrita, apagando a dimensão da lei enquanto tal.
Marx não consegue ver a dimensão exata da mutação histórica acontecida com o advento do Estado de Direito, no qual o político se transforma à medida que o poder passa a ter de conviver com limites, isto é, o poder começa a ter de se relacionar com uma força exterior a ele — a força do direito.
Mais ainda. A partir do momento em que passou a reproduzir a ideia de que forma e conteúdo estabelecem entre si uma relação de oposição, sendo o direito nada mais que uma máscara das relações burguesas, Marx pôs o primeiro tijolo na parede que seria erguida entre uma boa parte dos marxistas e a compreensão da luta e conquista de novos direitos, a compreensão de que é na luta por novos direitos que indivíduos e grupos sociais tendem a modificar a trama da sociedade política, sem esperar por uma solução global dos conflitos ou a hora H da conquista do poder.
Ora, de acordo com Lefort, as lutas sociais dos trabalhadores deitam raízes exatamente na consciência do direito e não no objetivo da tomada do poder do Estado, são lutas de minorias políticas diferentes que se percebem unidas em torno da luta por seus direitos, o que atesta a eficácia simbólica da noção de direitos.
Dito de outra maneira, o que une indivíduos e grupos sociais diversos entre si, sem fundi-los num corpo só, é a luta por novos direitos e não a luta pela construção de um poder Uno, a luta pela indeterminação do social, isto é, pela democracia e pelos direitos humanos.
Política dos direitos do homem, política democrática, duas maneiras, pois, de responder à mesma exigência: explorar os recursos de liberdade e criatividade nos quais se abebera uma experiência que acolhe os efeitos da divisão; resistir à tentação de trocar o presente pelo futuro; fazer o esforço ao contrário para ler no presente as linhas de sorte indicadas com a defesa dos direitos adquiridos e a reivindicação dos direitos novos, aprendendo a distingui-los do que é apenas a satisfação do interesse. E quem disser que a tal política falta audácia, que volte os olhos para os soviéticos, para os poloneses, os húngaros, os tchecos ou os chineses em revolta contra o totalitarismo: são eles que nos ensinam a decifrar o sentido da prática política (LEFORT, 1983: 69).
O filósofo do direito espanhol Gregorio Peces-Barba também localizou o núcleo do equívoco da recusa dos direitos humanos pelo pensamento marxista no interior da própria obra de Marx, tendo sido Lenin aquele que realizou concretamente tal recusa por meio da sua crítica ferrenha ao sistema político liberal do Estado parlamentar representativo, em nome da ditadura do proletariado, que, na prática, representou a ditadura do partido-vanguarda do proletariado.
Porém, o equívoco original de Marx teria raízes históricas à medida que, quando da redação de A Questão Judaica, o processo de generalização dos direitos humanos encontrava-se apenas nos seus inícios, estando a nascente classe operária desprovida de direitos políticos essenciais para a construção da luta posterior pelos direitos sociais, a exemplo do sufrágio universal e da liberdade de associação, o que obviamente acarretava a sua marginalização dentro do sistema parlamentar representativo.
Por conseguinte:
[...] O núcleo do erro de Marx é a sua ligação com o modelo histórico dos direitos do homem, que considera como o único possível, a sua incapacidade de compreender o sentido capaz de transformar o conceito e o seu dinamismo, através do qual os direitos escaparam da dependência da classe burguesa que os criou (PECES-BARBA, 1993: 76).
Dentro desse contexto, estando a gênese do equívoco marxista em relação aos direitos humanos situada no próprio Marx, devido a razões históricas, resta indagar como um tal ponto de vista continua a pairar sobre a cabeça de certos marxistas (ou de pensadores situados no campo da esquerda radical, de maneira geral), ao invés de estar definitivamente depositada no museu do passado como uma relíquia a ser contemplada.
Neste início de século XXI, o filósofo esloveno Slavoj Zizek já pode ser considerado um dos grandes responsáveis pela tentativa de manter atual a extemporânea forma de pensar os direitos humanos construída pelo jovem Marx na primeira metade do século XIX, através de uma operação intelectual que confunde os direitos humanos e a democracia com o uso instrumental que as grandes potências do planeta — tendo à frente os Estados Unidos da América — fazem dos direitos humanos e da democracia.
Assim, para Zizek, a política dos direitos humanos na contemporaneidade não passaria de uma ideologia do intervencionismo militar a serviço de objetivos econômicos e políticos muito precisos. Em termos marxistas-leninistas, os direitos humanos dos povos sofridos do Terceiro Mundo representariam, efetivamente, nada mais que o direito dos poderes ocidentais de intervir política, econômica, cultural e militarmente nos países do Terceiro Mundo.
[...] os “direitos humanos” são, enquanto tais, uma falsa universalidade ideológica, que esconde e legitima a real política do imperialismo ocidental, as intervenções militares e o neocolonialismo [...] (ZIZEK, 2005: 63) [4].
Na verdade, como o próprio Zizek faz questão de tornar explícito, para ele, tal qual no Marx de A Questão Judaica, os direitos humanos continuam tendo uma específica orientação ideológica burguesa, onde a existência concreta da universalidade é o indivíduo sem um lugar preciso no edifício social:
[...] os direitos humanos universais são na realidade os direitos dos brancos, masculinos e ricos, de realizar trocas livres no mercado, de explorar os operários e as mulheres e de exercitar o predomínio político [...] (ZIZEK, 2005: 67).
Recentemente, o filósofo brasileiro Ruy Fausto teceu considerações importantes acerca de um determinado discurso de esquerda que, a partir da última década do século XX, começou a realizar a crítica da democracia e dos direitos humanos, reivindicando para si o anti-humanismo, o que acabou dando forma a um discurso regressivo similar ao anti-humanismo de inspiração althusseriana.
Para Ruy Fausto, Slavoy Zizek (e também Alain Badiou) seria um exemplo paradigmático dessa tendência surgida há pouco no interior da tradição filosófica e política de esquerda, que busca indicar a presença incontestável de um inumano no homem, sem definir a modalidade de tal presença.
[...] Se se quiser, a dificuldade está em interpretar a expressão — que é de Zizek — “o núcleo inumano do ser humano”. Ninguém duvida de que o homem, individual ou coletivamente, é capaz dos piores horrores nem de que, no interior de cada um de nós haja (ou possa haver) algum impulso desta ordem. Mas esses impulsos constituem o “núcleo” do ser humano? O que me autorizaria a fazer essa afirmação? [...]” (FAUSTO, 2009: 59).
Assim, um dos principais problemas da crítica anti-humanista deste filósofo do excesso que é Zizek estaria situado no fato de não perceber a distinção existente entre potencialidade, que é universal, e efetivação da potencialidade, que é histórica, isto é, o ser humano pode até mesmo ser potencialmente violento, mas isso não implica afirmar que ele seja sempre violento no decorrer da história.
Neste ponto da discussão, creio que seja oportuna a lembrança de um dos grandes nomes da historiografia marxista e, também, do pensamento de esquerda contemporâneo. Alguém que, nas décadas de 1970 e 1980, polemizou com o estruturalismo anti-humanista althusseriano em nome do princípio da historicidade, da mesma forma que criticou o reducionismo de classe a fim de defender uma das grandes bandeiras dos direitos humanos — o pacifismo. Falo aqui do historiador britânico Edward Thompson.
Em 1975, Thompson daria uma contribuição decisiva para a formação de um novo ponto de vista sobre o direito dentro da tradição marxista — conflitante com a linhagem marxista-leninista —, ao publicar o livro intitulado Senhores e Caçadores [5].
Então, seu objeto de estudo foi a lei criada na Inglaterra, em 1723, que passava a punir com a pena capital cinquenta novos delitos. Conhecida como “Lei Negra”, a nova lei punia com a pena de morte as pessoas armadas, com o rosto pintado de preto, que fossem flagradas nas florestas, reservas de caça, parques ou cercamentos do território inglês, dando forma a uma clara tentativa do Estado britânico de radicalizar a punição em relação a todos aqueles indivíduos que tentassem afrontar o caráter privado da propriedade.
Nas conclusões desse estudo, Thompson elabora uma concepção do direito divergente em relação às visões liberal e marxista-leninista. Por um lado, questiona-se a ideia liberal de lei como algo imparcial, que paira acima de todos os interesses sociais, reinante dentro de uma sociedade marcada pelo consenso generalizado. Por outro lado, critica-se a percepção marxista-leninista de lei como um simples instrumento de dominação de classe, uma parcela da superestrutura determinada pelas necessidades da infraestrutura.
Assim, o equívoco central desse marxismo estaria localizado na redução da lei a um fenômeno estrutural responsável apenas e tão somente pela realização da dominação de classe da burguesia.
[...] Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. Não conseguirá parecê-lo sem preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes sendo realmente justa [...] (THOMPSON, 1987: 354).
A alternativa apresentada por Thompson em relação ao liberalismo e ao marxismo-leninismo encontra a sua síntese na ideia de que o direito é um campo de conflito, no qual, na mesma medida em que os dominantes necessitam da lei para oprimir os dominados, estes últimos dela necessitam para se defender da fúria opressora dos primeiros, constituindo assim uma autêntica luta em torno da lei.
Fruto direto da investigação das lutas travadas contra o poder absolutista desde os séculos XVII e XVIII, o ponto de vista construído por Thompson sobre o direito desdobra-se em duas conclusões ao mesmo tempo complexas e contraditórias.
Em primeiro lugar, à medida que a lei mediava as relações de classe existentes para proveito dos dominantes, ela também mediava essas mesmas relações de classe impondo restrições às ações dos dominantes, ou seja, se as leis podem disfarçar as realidades do poder, elas também podem refrear esse poder e conter os seus excessos.
Em segundo lugar, existe uma abissal diferença entre o exercício de um poder extralegal arbitrário e a existência do domínio da lei. A regulação e reconciliação dos conflitos por intermédio do domínio da lei representam, por conseguinte, uma conquista cultural de significado universal, pois que não há comparação, para aqueles que se encontram situados nos setores mais subalternos da sociedade, entre o exercício da força pelos opressores sem mediações legais, por um lado, e o uso da mediação através das formas da lei, por outro lado, ainda que tal mediação possa legitimar as relações de classe existentes, cristalizando-as e mascarando-as [6].
Integrante da mesma tradição historiográfica a que pertenceu Edward Thompson, Eric Hobsbawm afirmou certa feita que os direitos implicam sempre o seu reconhecimento por outras pessoas, sendo que os mesmos nunca podem deixar de ter a possibilidade de serem assegurados pela ação do homem. Ao contrário de serem abstratos, universais e imutáveis, os direitos estão situados sempre dentro de uma determinada sociedade, que, como todas as sociedades realmente existentes, os reconhece apenas para alguns dos seus integrantes, rejeitando as reivindicações dos outros. Assim, para a visão do historiador, os direitos não existem pairados abstratamente, mas somente onde as pessoas os exigem, ou elas estão conscientes de sua falta.
Nesse sentido, ao serem constituídos por pessoas desfavorecidas dentro da ordem capitalista, os movimentos operários sempre tiveram de se preocupar com a exigência de proteção individual e social dos seus integrantes, desempenhando, com isso, um importante papel no desenvolvimento dos direitos humanos — isso, acrescentando ao conteúdo individual originário dos direitos do homem elementos de natureza coletiva.
De toda forma, claro está para o historiador britânico que nem mesmo o núcleo originário individual dos direitos do homem, construído no curso do século XVIII, pode ser denominado de exclusivamente burguês.
[...] Não os tratarei somente como direitos “burgueses”, tanto porque eles tiveram nítida influência que ultrapassou os limites de apoio ao liberalismo burguês – um bom exemplo é o Rights of Man, de Tom Paine – quanto também porque muito dos direitos formulados no contexto final do século XVIII ainda corresponde ao que a maioria das pessoas nas sociedades modernas desejam e precisam (HOBSBAWM,1987:415).
A abolição dos direitos dos trabalhadores pré-revolução industrial durante o século XIX, direitos estes que faziam parte daquilo que Thompson denominou de “economia moral”, no bojo da ofensiva do modo de produção capitalista, explica em parte o fato de os teóricos do movimento operário do período — incluso aí com destaque Marx — não apenas não terem falado a linguagem dos direitos humanos, mas terem sido abertamente hostis em relação a estes. No entanto, permanece inexplicável o posicionamento daqueles socialistas, marxistas em particular, que, após tudo aquilo que aconteceu de positivo (a edificação do Estado democrático de direito e do Estado social em inúmeras partes do mundo) e de trágico (as experiências nazista, fascista e comunista) no decorrer do século XX, continuam a ignorar ou questionar asperamente os direitos humanos.
Duplamente inexplicável se levarmos em consideração o fato de que, ainda no século XIX, a maioria dos movimentos operários “ainda funcionava dentro da estrutura das Revoluções francesa e norte-americana”, isto é, “lutavam pelos direitos dos trabalhadores à plena cidadania, mesmo que esperassem continuar a lutar por algo mais”. Ademais:
[...] Eles deram força especial a esta luta pelos direitos do cidadão porque sua maioria era composta de pessoas que não usufruíam desses direitos, e porque mesmo aqueles direitos legais e liberdades civis, que eram aceitos na teoria, eram contestados na prática pelos adversários dos trabalhadores [...] Entretanto, como sabemos, o verdadeiro direito de expressão e reunião [...] teve de ser obtido através de uma série de “lutas pela liberdade de expressão” ou manifestações de massa. Foram semelhantes as lutas pelo efetivo direito a uma livre imprensa popular, ou radical. A contribuição mais importante dos movimentos operários do século XIX aos direitos humanos foi demonstrar que eles exigiam uma grande amplitude e que tinham de ser efetivos na prática tanto quanto no papel. Esta foi, naturalmente, uma contribuição importante e crucial (HOBSBAWM, 1987: 419).
Concomitantemente, o movimento operário conseguiu levar os direitos humanos para além dos seus limites iniciais, fazendo com que fosse rompida a camisa-de-força individualista de natureza político-jurídica que os mantinha confinados desde o século XVIII.
Foi assim que o movimento operário acabou por realizar uma luta tanto no sentido individual como no social, tornando-se o verdadeiro herdeiro do iluminismo racionalista do século XVIII, pois que passaram a levantar, mais do que qualquer outra força social, a bandeira revolucionária da liberdade, igualdade e fraternidade, junto a da emancipação dos homens.
Com isso, o movimento operário acabou forçando, na teoria e na prática, o repensar dos direitos humanos dentro da nova sociedade capitalista, já que os modernos sistemas de bem-estar social surgiram em função da existência e exigências das classes trabalhadoras [7].
O historiador estadunidense Geoff Eley compartilhou e levou adiante a análise de Hobsbawm sobre as relações existentes entre o operariado e os direitos humanos ao defender a tese de que os mais importantes ganhos das sociedades em termos democráticos, durante a moderna história europeia, deram-se por meio de processos revolucionários liderados pelas forças de esquerda.
[...] A história da esquerda sempre foi a luta pela democracia contra sistemas de desigualdade que limitam e distorcem, atacam e reprimem, e por vezes chegam mesmo a tentar liquidar completamente o potencial humano (ELLEY, 2005: 17).
Não sendo uma dádiva, nem algo assegurado para sempre, a democracia traz em si a exigência de conflito. No último quartel do século XIX, no continente europeu, tal conflito pela democracia foi forjado e impulsionado pelos partidos populares democráticos, em particular os partidos socialistas de massas, que desafiaram a ordem político-social capitalista reinante.
Não obstante as insuficiências das bandeiras socialistas — como, por exemplo, em relação às questões ambientais e de gênero —, os alicerces da democracia europeia foram implantados por esta esquerda histórica que construiu as suas lutas ao redor da defesa dos interesses classistas dos trabalhadores.
Porém, por estarem sempre em movimento as fronteiras da democracia, a esquerda socialista acabou vendo a sua política de classe ser ultrapassada pela imaginação da esquerda pós-1968. Dito de outra maneira, para além da crítica socialista ao capitalismo, as esquerdas expandiram as fronteiras da política, inventaram novos territórios da prática democrática, após a entrada em cena dos movimentos pós-1968: feministas, ambientalistas, militantes gays, etc. Por meio da democracia participativa e das ações diretas extraparlamentares, as energias liberadas em 1968 tanto empurraram a democracia para novos territórios de luta como jogaram as esquerdas socialistas para o berço do tradicionalismo.
Portanto, para Elley, nas conclusões do livro significativamente intitulado Forjando a Democracia, neste início de século XXI, mais do que se identificar com o socialismo, a esquerda se identificaria com as exigências mais amplas de democracia, o que não implica a desconsideração dos argumentos socialistas para a construção de uma democracia radical.
[...] o livro tenta situar essa tradição — o socialismo em suas várias formas entre os anos 1860 e o presente — no contexto maior das lutas pela democracia, porque esse contexto mostra melhor as grandes conquistas e as angustiantes limitações da tradição socialista. Ademais, ao identificar “a esquerda” não com o socialismo, mas com a estrutura maior e mais exigente da democracia, em todas as suas peculiares dimensões sociais, econômicas, culturais e pessoais, talvez seja possível controlar as implicações restritivas das crises do socialismo durante o último terço do século XX. Se o socialismo foi essencial para as melhores conquistas da democracia, insisto, o fato é que as possibilidades da democracia sempre superaram o alcance do socialismo. Isso se torna especialmente claro no período que se inicia em 1968 (ELLEY, 2005: 571-2).
À guisa de conclusão, talvez seja oportuno retornar às análises empreendidas por Marx acerca dos direitos humanos, por meio da competente interpretação levada a cabo pelo filósofo húngaro István Mészáros.
Num texto escrito no final dos anos 1970 sobre a relação existente entre marxismo e diretos humanos — texto este no qual a Questão Judaica não é citada uma única vez! —, o discípulo de Lukács afirma que o núcleo central da crítica marxiana aos direitos humanos residiria na “contradição fundamental entre os ‘direitos do homem’ e a realidade da sociedade capitalista, onde se crê que esses direitos estejam implementados” — contradição esta inscrita na própria estrutura social capitalista, sendo, pois, insolúvel nos marcos da ordem do capital.
Assim, o alvo principal da polêmica de Marx seria a “ilusão jurídica liberal”, responsável pela construção de um “postulado legalista-formal”, reconhecedor do direito de acesso igualitário à propriedade, mas que, em última instância, estaria assentado no vazio. De fato, ao invés de direcionados aos direitos humanos em si, os canhões de Marx estariam voltados contra a noção de que, na base de todos os direitos humanos, encontrar-se-ia o direito à propriedade privada:
[...] Não há, portanto, uma oposição apriorística entre o marxismo e os direitos humanos: pelo contrário, Marx na verdade nunca deixou de defender “o desenvolvimento livre das individualidades”, em uma sociedade de indivíduosassociados e não antagonicamente opostos (condição necessária para a existência tanto da “liberdade” quanto da “fraternidade”), antecipando simultaneamente “o desenvolvimento artístico, científico, etc., de indivíduos emancipados e com meios criados para todos eles (condição necessária para a igualdade verdadeira) [...] (MÉSZÁROS, 2008: 161).
Nesse sentido, para Mészáros, Marx não é um “inimigo dos direitos humanos”, da mesma forma que está longe de ser um “determinista grosseiro”, tendo sido capaz de reconhecer a possibilidade dos direitos humanos voltarem-se contra o próprio metabolismo social capitalista. Posto isso, não há como não se chegar à conclusão de que “a legitimação de uma alternativa socialista para a forma capitalista de intercâmbio social não pode ignorar a questão dos direitos humanos”.
Realizadas quando o mundo ainda vivia sob a Guerra Fria, o neoliberalismo iniciava a sua ofensiva e ninguém imaginava o fim do socialismo soviético, as reflexões de Mészáros contidas no artigo aqui citado (ainda que concluídas com o preocupante senão de que, na “fase mais adiantada da sociedade comunista”, “a questão da efetivação de direitos, mesmo que sejam direitos humanos, não pode nem precisa emergir”) servem de incentivo a todos aqueles que conseguem perceber na luta pela afirmação dos direitos humanos (e pela radicalização da democracia) um espaço de resistência anticapitalista.
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Marco Mondaini é professor da Universidade Federal de Pernambuco. É autor dos livrosDireitos Humanos e Direitos Humanos no Brasil (Ed. Contexto & Unesco); e Enrico Berlinguer. Democracia, valor universal e Do stalinismo à democracia. Palmiro Togliatti e a construção da via italiana ao socialismo (Fundação Astrojildo Pereira & Ed. Contraponto).
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Notas
[1] O núcleo central da crítica de Marx a Bauer gira em torno do fato deste último ter limitado a sua análise do judaísmo à questão religiosa, deixando de lado o seu fundamento secular, real, isto é, a vida burguesa e seu apogeu com o sistema monetário.
[2] Em uma passagem muito símile a essa, Marx afirma em A Questão Judaica: “Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial” (2005: 40).
[3] A fim de se contrapor à dicotomia leniniana entre democracia burguesa e democracia operária, o líder comunista italiano Enrico Berlinguer afirmaria ser a democracia um valor universal, quando do discurso feito no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa: “A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista” (MONDAINI, 2009: 116).
[4] Mesmo não tendo se fundamentado na crítica juvenil de Marx, o jornalista italiano Antonio Gambino também acabou sendo levado à crítica dos direitos humanos na contemporaneidade em função da sua instrumentalização pelas potências ocidentais, por intermédio das chamadas “intervenções humanitárias” ocorridas no decorrer da década de 1990, particularmente o “bombardeio humanitário” levado a cabo contra a Sérvia no ano de 1999, durante a crise dos Bálcãs, o que o levou a falar de “imperialismo dos direitos humanos”. De fato, a tese defendida por Gambino é de que política externa e direitos humanos são guiados por critérios opostos e incompatíveis. Nesse sentido, com a desagregação do império soviético, o fim da Guerra Fria e o consequente surgimento do globalismo unilateral, os Estados Unidos sentiram a necessidade de inventar novos inimigos. É então que os direitos humanos entram em cena como instrumento de legitimação de uma política unilateral, isto é, os EUA passam a usar os direitos humanos como instrumento de legitimação das suas ações bélicas, não tendo encontrado para tanto a oposição da Europa ocidental – isso, com base na criação do conceito de “direito humanitário de ingerência” e a remodelação da Otan, a qual substituiu a ONU no papel de estabelecer as regras de convivência internacional, tendo tido a sua primeira concreta manifestação exatamente na intervenção de 1999 na Sérvia. Por fim, recorrendo à afirmação kantiana de que o homem deve ser sempre tratado como um fim e nunca como um meio, Gambino reprova o núcleo da noção de “direito humanitário de ingerência” ao dizer que: “[...] uma ação que se declara inspirada pela vontade de eliminar uma violação dos direitos humanos sofrida por alguns indivíduos não pode em nenhum caso realizar-se produzindo, contemporaneamente, uma violação dos mesmos direitos em outros sujeitos” (Gambino, 2001: 73).
[5] O presente item é uma versão modificada do trecho em que abordo a contribuição de Thompson para o estudo das relações entre sociedade e direito no artigo “O Direito como Campo de Conflito”, publicado por mim no livro: Sociedade e Acesso à Justiça. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2005, pp.67-70.
[6] Em O que é Direito, o jurista brasileiro Roberto Lyra Filho apresentou uma concepção de lei e direito próxima daquela desenvolvida por Thompson, na medida em que ressalta o seu caráter contraditório: “A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Embora as leis apresentem contradições, que não nos permitem rejeitá-las sem exame, como puraexpressão dos interesses daquela classe, também não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós nos deixaríamos embrulhar nos ‘pacotes’ legislativos, ditados pela simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido” (LYRA FILHO, 1999: 8).
[7] Nas palavras do filósofo italiano Salvatore Veca, sob as fortes pressões dos movimentos operários do século XIX, a incompleta versão liberal da cidadania (duramente criticada por Marx devido ao fato de priorizar a constituição da liberdade, sem denunciar a desigualdade social gerada pelo mercado) foi sendo superada progressivamente, ocasionando o surgimento do ideal socialista de emancipação: “Do ponto de vista normativo, a tensão entre igualdade dos direitos na primeira versão definida e desigualdade nas dotações econômicas e sociais e no poder de acesso aos recursos gera, na perspectiva de Marx e na mais ampla família de crenças políticas e morais da tradição operária e socialista, um modelo de sociedade digna de ser vivida, baseado sobre o ideal da emancipação socialista” (VECA, 1990: 29).
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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
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