quinta-feira, 26 de abril de 2012

Aculturação pela fé



Por Douglas Naegele

A fé, sempre foi e sempre será, sob nosso ponto de vista, a maior força de convencimento da humanidade. Usada como arma de dominação e aculturação levou ao fim inúmeras seitas, cultos e religiões primitivas. Portanto, podemos afirmar que, muitas vezes onde as armas convencionais não penetraram, a fonte inesgotável de consolo e amor fez porto e assegurou a criação de um novo mercado de consumo e fornecimento de mão-de-obra barata, e até escrava. Os nativos brasileiros, os africanos escravizados, e outras tantas civilizações, são prova irrefutável dessa prática.

Conflitos iniciais

No Brasil, como em todo o globo terrestre, antes da chegada dos europeus, os povos nativos mantinham sua cultura própria, bem como seguiam rituais totêmicos ancestrais. A dominação européia os fez, pela força das armas e da fé, abandonar sistematicamente suas origens. Os povos africanos escravizados, chegados posteriormente, sofreram a mesma intervenção. Entretanto, a prática dos rituais ancestrais, tanto nativos, quanto africanos, resistiu a todas as tentativas de extermínio, pois até mesmo os afro-descendentes que se cristianizaram, através da conversão forçada, ou não, mantinham singela relação com os deuses ancestrais. Tanto que nasce dessa relação, somada às praticas dos cultos totêmicos dos nativos brasileiros, o sincretismo entre os deuses ancestrais e o panteão de santos católico-romanos.
O candomblé, apesar de duramente combatido, assim como os cultos sincréticos (umbanda, quimbanda, macumba e xangô), sobreviveu e, de certo modo, se fortaleceu. Tanto o é que, na soma de inúmeras personificações divinizadas, os orixás, por fim, se tornaram unânimes nos terreiros em todo o território brasileiro. Sendo assim, os rituais ancestrais africanos que eram comuns nas senzalas, eram mais livremente praticados nos quilombos, sendo de conhecimento de todos os afro-descendentes escravizados, com isso, ao menos podemos suspeitar, e talvez até afirmar, que, os fugitivos do cativeiro, mesmo cristianizados, tendo como destino os quilombos, poderiam esperar o conforto espiritual de seus deuses ancestrais, os orixás.
Ao longo do tempo, séculos a fio, comunidades afro-descendentes se constituíram nas encostas dos morros e em alguns casos fixaram-se nas periferias. Primeiramente como quilombos (nas encostas dos morros), depois, acrescidas de famílias brancas e miscigenadas, pobres e desabrigadas pelos interesses dos mais abastados, transformaram-se no que ficou conhecido com o nome de “favelas”. Tais comunidades, invariavelmente, comportavam em suas vielas um terreiro de candomblé, ou da sincrética umbanda, quando não dois ou três desses templos. Apesar do culto aos deuses ancestrais, a Igreja Católica, através do processo de aculturação, acabou por se fixar também nessas comunidades, nem tanto pela solicitação dos moradores, mas pela imposição e a perseguição às seitas afro-brasileiras.
No final do século XIX, as denominações protestantes desembarcaram no Brasil, em número expressivo. Sem encontrar eco junto às classes mais abastadas, profundamente arraigadas às crenças católicas, elas acabam por atingir um público originário, em sua maioria, das classes trabalhadoras. Operários de origem européia, pequenos comerciantes (ingleses e estadunidenses), agricultores (principalmente alemães), profissionais liberais e trabalhadores autônomos formarão o núcleo desenvolvedor que irradiará as idéias protestantes no solo brasileiro. Os primeiros adeptos fora do círculo de fiéis originais foram os vizinhos e empregados, mas principalmente esses últimos. Moradores de comunidades de pouco poder aquisitivo, ou das periferias, os empregados convertidos transmitem a “verdade” protestante aos seus amigos, parentes e vizinhos. E deste modo as denominações reformadas espalham-se por estas comunidades e periferias, sem, contudo, causarem um grande impacto na freqüência da Igreja Católica ou dos terreiros.

Convencimento

Conservadoras, as igrejas cristãs, tanto católicas quanto reformadas, mantinham-se fiéis ao poder vigente. Fato esse que não se repetia necessariamente entre os cultos de origem africana e sincretistas, por serem combatidos pelas autoridades. Teoricamente, o país era, desde a Proclamação da República, laico. Todavia, a perseguição imposta aos terreiros de candomblé e de umbanda, baseava-se na suposição de que estes eram freqüentados por “capoeiras”, prostitutas e “marginais de toda espécie”, o que, obviamente, era verdade, mesmo porque eram nas favelas e na periferia que os marginalizados encontravam abrigo. Isso não quer dizer, necessariamente, que famílias de trabalhadores não freqüentassem os terreiros, muito ao contrário. A grande maioria das famílias residentes nestas comunidades mantinha o que podemos chamar de “vida dupla”, ou dupla devoção. Portanto, durante as noites de segunda a sexta-feira dedicava a fé ao culto dos orixás, caboclos e guias, e aos domingos faziam suas preces nas igrejas católicas. . Fato marcante, expoente do sincretismo brasileiro, estava no batismo do recém-nascido, pois até mesmo os mais fervorosos devotos, incluindo aí os babalorixás e “pais-de-santos”, insistiam na prática cristã do batismo.
Nesse esteio, sob os auspiciosos olhos da lei, o batuque das senzalas, agora dando o ritmo dos terreiros, dá a luz a uma efervescente vida cultural, festas e reuniões sociais aconteciam nos mesmos lugares dos cultos de origem africana. E é dessa raiz que nasce o samba, o qual também será perseguido pelas mesmas acusações que cabiam aos terreiros de candomblé e de umbanda. E da força do samba, brotam as Escolas de Samba que, mantendo uma estreita afinidade com os terreiros, serão em pouco tempo catalisadoras de toda a vida cultural e social dessas comunidades.
Todavia, num processo que levaria décadas para se finalizar, as favelas e as comunidades periféricas, redutos naturais do samba e dos cultos de origem africana e sincréticos, dariam espaço ao mais lento e gradativo processo de aculturação sofrida por um setor de uma sociedade que desenvolveu seu próprio meio de expressão religioso e cultural.
Na segunda metade do século XX, mais precisamente na década de 1960, as comunidades foram invadidas com a massificação dos ritmos estrangeiros que inundaram as rádios populares. Esses ritmos passaram a dividir o gosto das camadas menos favorecidas de nossa sociedade, principalmente da juventude, já influenciada de certa forma pelo imaginário hollywoodiano do cinema. Coincidentemente, foi no ano de 1960, que o pastor Robert McAlister, passou a ministrar cultos pelo rádio, onde pregava abertamente a cura espiritual e financeira, que ele associava a possessão dos demônios, nascia em território brasileiro o gérmen da Teologia da Prosperidade. Era o início da era dos pastores eletrônicos, que ganharia os lares nacionais nas décadas seguites. Em 1968, McAlister, publica um folheto intitulado: “Mãe-de-Santo: História e testemunho de Georgina Aragão dos Santos Franco - a verdade sobre o candomblé e a umbanda”, em que contava a trajetória de D. Georgina, dos cultos afro-brasileiros até à conversão ao cristianismo neo-pentecostal de McAlister.
As Escolas de Samba, que funcionavam como pólo aglutinador de cultura e vida social das comunidades periféricas e das favelas, desde a década de 1960, acolheram dentro de seus quadros de associados pessoas oriundas da classe média e que devido ao melhor poder aquisitivo adquiriam as melhores fantasias e os melhores lugares nas “rodas-de-samba”. Contudo, para a mocidade herdeira das tradições do terreiro, da capoeira e do samba, tais heranças não traziam mais maiores significações. Um afastamento, não percebido, ocorreria sem que os próprios envolvidos se dessem conta, e em pouquíssimo tempo, as tradições seriam consideradas coisas velhas e ultrapassadas. 
Na virada da década de 1970 para a de 1980, os herdeiros do samba, da capoeira e dos atabaques dos terreiros, abandonam, gradativamente, suas heranças e aproximam-se do ideal de consumo levado massiçamente às rádios pelos ritmos estrangeiros e aos televisores, que se tornavam cada vez mais populares, pelos seriados enlatados. Os pais dessa geração, não encontrando mais conforto nas missas dominicais, nem nos cultos ancestrais, migram para a nova visão de relacionamento com Deus propiciado pelas igrejas neo-pentecostais que fizeram assento nas comunidades.
As denominações cristãs tradicionais que fincaram bandeira nas favelas e comunidades periféricas, incluindo a Igreja Católica, vivam um acordo tácito com os terreiros e entre si, onde cada uma das orientações religiosas, mesmo com todas as possíveis afrontas, mantinham-se fora dos caminhos umas das outras. No entanto, já não respondiam mais ao anseio dos fiéis e foram perdendo espaço para o novo tipo de igreja, que além de pelejar contra o Diabo, no mundo espiritual, expulsava-o ao vivo e a cores na televisão!
Rompidos com Robert McAlister, três dos seus mais prodigiosos pregadores, fundaram suas próprias denominações. Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, seu cunhado, em 1977, fundam a Igreja Universal do Reino de Deus. Pouco depois, Romildo, agora auto-cognominado R.R.Soares, rompe com Macedo e cria sua própria denominação, a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Miguel Ângelo da Silva Ferreira, considerado por muitos como o sucessor de McAlister dentro da Igreja Pentecostal de Nova Vida, em 1984, funda a Igreja Cristo Vive. Num brevíssimo espaço de tempo as novas denominações invadem as casas através dos televisores e atraem um impressionante número de fiéis dispostos a darem tudo o que têm para conseguirem a “prosperidade”, expulsando os “demônios da ruína financeira” de suas vidas.
Desenvolvendo-se lado a lado com tudo isso outro fenômeno cresce e atinge, como já dissemos acima, a parcela mais vulnerável de uma sociedade, sua mocidade, que influenciada pelos novos ritmos e pela novidade dos videoclipes sexistas, nos quais, invariavelmente, apareciam membros de gangues armados, cercados de mulheres vulgares e muito dinheiro, com letras que exaltavam o crime, a violência, e o assassinato de policiais. Era um estímulo à “vida bandida” e à cooptação pelas “organizações criminosas” que tomaram as favelas e as comunidades periféricas desassistidas pelas autoridades estatais. Era o que a mídia chamaria de “Poder Paralelo”, que se formava e passaria a ditar as normas de condutas em grande parte dessas comunidades, exercendo o papel do Estado ausente.

A Nova Estrutura

A grande massa de jovens que tomam a atitude de se unirem ao dito “crime organizado”, são em sua maioria, advindos não de famílias desestruturadas pelas drogas ou pelo crime como se pode pensar a princípio, mas são de famílias, de conformação comum, pai, mãe, irmãos, com pouca ou nenhuma instrução, em que o pai “provedor” não recebe o suficiente para dar à família o “conforto” mínimo “necessário”, para os padrões de consumo impostos pelos videoclipes e ostentados pelos “olheiros”, “soldados”, “vapores” e “gerentes” do tráfico.
A oferta de trabalho no “exército do tráfico”, muitas das vezes melhor remunerado que uma profissão sem exigência mínima de escolaridade, fez muitos meninos e meninas das comunidades sonharem em cerrar fileiras com a força impositiva que se assenhoreava dessas localidades. Soma-se a isso, o “respeito” causado pela exibição de forte armamento e a “autoridade” exercida pela hierarquia do tráfico. “Fama, poder e dinheiro” formam a tríade de aliciamento que servirá como pilar das facções criminosas chamadas pela mídia de “Poder Paralelo”.
Ao som do miscigenado “funk”, mistura do batuque afro dos terreiros e da música “Black” estadunidense, recheado por letras enaltecendo os feitos das facções criminosas e de seus líderes, posteriormente conhecido como “Proibidão”, ou apregoando a vulgaridade feminina, uma geração inteira cresce nas vielas. Em contrapartida, a desilusão com as denominações tradicionais, em todos os campos religiosos, levam os pais dessa mesma mocidade em busca de soluções imediatas para seus problemas, como as oferecidas pelas denominações neo-pentecostais. O que irá acontecer paulatinamente é uma migração religiosa jamais vista até então. Cristãos católicos e protestantes de denominações tradicionais, bem como, praticantes e freqüentadores das “tendas espíritas”, claramente motivados pela necessidade econômica, “viram casaca” e convertem-se às denominações neo-pentecostais. Líderes espirituais, ou seja, babalorixás, ialorixás, “pais e mães-de-santos”, surpreendendo até seus fiéis abandonam seus “guias” e orixás para tornarem-se “ovelhas” de um rebanho sedento por milagres financeiros, disposto a doar tudo para receber uma migalha de benção.
No auge dessa onda migratória, incontáveis pequenas denominações brotam nas vielas das comunidades de baixa-renda e favelas. Uma enxurrada de “assembléias de Deus” espraia-se e onde quer que houvesse gente faminta de consolo, uma nova “casa de Deus” surgia.  A década de 1990, período em que a ideologia política e econômica neoliberal toma as rédeas do país, serviu de palco para o que podemos chamar de uma grande inversão de valores, ao menos, nos dois aspectos aqui abordados, o cultural e o religioso.

Conclusão

Motivadas por aquilo que lhes era proposto pelas igrejas neo-pentecostais, ou seja, nova relação com Deus, na qual o fiel tem o “direito” de exigir que Deus lhes abençoe em todos os campos de suas vidas, com maior ênfase na vida financeira. Segundo essa corrente do pensamento teológico, se a vida do crente, em algum momento não estiver plena, isso significa que há uma presença demoníaca “amarrando-a”, com o consentimento de Deus, a fim de que o fiel seja provado em sua devoção ao divino, fazendo um sacrifício, obviamente financeiro, o fiel dá de bom grado o que pode e o que não pode, a fim de sensibilizar a Deus para suas necessidades imediatas. Esse ato de fé cria de imediato as condições para que o crente exija de Deus seus direitos.
Essa nova relação fez com o número de adeptos das denominações neo-pentecostais crescesse ao ponto de fazer com que correntes da antiga teologia pentecostal se “adequassem” e usassem dos mesmos artifícios estratégicos de crescimento apregoados pelas novas denominações. A maior e mais significativa ruptura se deu dentro do seio das Assembléias de Deus, com a saída do Pr. Silas Malafaia das hordas da setuagenária Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil (CGADB), justamente por sua ligação, não somente com as denominações neo-pentecostais, mas principalmente pela adesão total e completa às idéias da Teologia da Prosperidade.
A prosperidade, ou seja, a necessidade econômico-financeira, por fim, suplantou a tradição ancestral mantida desde os tempos coloniais. Os terreiros que haviam sobrevivido às perseguições da Igreja Católica durante os anos da colônia, do Brasil Imperial e dois terços do século XX, sucumbiram à aculturação da fé.
Obviamente, os criadores da Teologia da Prosperidade e seus disseminadores, sequer por algum instante, imaginaram o estrago que suas ideias causariam. Nesse sentido, o terreno propício para a implantação de uma ideologia política e econômica conhecida como “neoliberalismo, ao menos no Brasil, pode ter se iniciado, entre tantos outros fatores sócio-econômicos, também, pela absorção de uma nova fé estrangeira, em que novas tradições e releituras de outras desbancaram os orixás e introduziram um “deus” estimulador da ganância e do individualismo.


Douglas Naegele é teólogo e psicanalista, responsável pelo site: Douglas Naegele: Psicanálise e Teologia - Um olhar junguiano (www.douglasnaegele.com)

Um comentário: