Ecletismo e Marxismo
Carlos Marighella
1967
A falha capital das "Teses" (em debate) é preferir o ecletismo e deixar de lado a concepção filosófica marxista. O ecletismo é a junção de tendências filosóficas discrepantes: o materialismo ao lado do idealismo, a dialética mesclada à metafísica. O pensamento evolucionista fundido ao pensamento revolucionário e assim por diante.
A tática marxista, entretanto, não permite a substituição da teoria do proletariado por outra, nem mesmo a mistura de teoria.
Ao expor a teoria do socialismo científico, no trabalho que escreveu para o dicionário Granat, em 1913,Lenin afirmou o seguinte:
"Marx determinava a tarefa essencial da tática do proletariado de modo rigorosamente baseado nas premissas de sua concepção materialista-dialética".
A tática marxista é incompatível com qualquer evolucionismo. Ela tem em conta — no dizer de Lenin — a "dialética objetivamente inevitável da história da humanidade". A tática marxista utiliza e desenvolve a consciência, as forças e capacidade de luta do proletariado. Ao mesmo tempo orienta todo o trabalho preparatório no sentido do objetivo final visado pelo proletariado, capacitando-o a resolver na prática as tarefas que lhe estão reservadas pela História.
O que distingue a tática marxista é ser exata e rigorosamente uma tática da classe de vanguarda, uma tática de combate.
A tática marxista jamais pode ser uma tática a reboque da burguesia. Ao contrário, caracteriza-se pelo fato de que o proletariado pode e deve assumir a liderança do movimento democrático de todo o povo contra a ditadura atual.
Fatores relacionados com causas ideológicas levaram, porém, a que as "Teses" traçassem uma tática baseada não na hegemonia do proletariado, mas na hegemonia da burguesia.
Tornou-se, assim, impossível para as "Teses" a formulação clara de uma tática marxista. E as coisas são ali apresentadas sob uma forma dúbia, condicional e incerta, ou sob o efeito de uma opção.
Submissão à Burguesia e Ilusões
As "Teses" submetem-se à inconseqüência da burguesia. Em vez de apresentar a questão da saída decisiva contra a ditadura, com o trabalho prioritário do partido apoiado nas forças fundamentais da frente única antiditatorial (classe operária, camponeses, pequena burguesia urbana) — teoria que de resto já encontramos sustentada por Lenin antes de 1905 — as "Teses" preferem destacar o papel do MDB [Movimento Democrático Brasileiro] e da oposição burguesa (Tese 54).
O partido aparece diluído ou quase diluído na burguesia, é chamado a trabalhar de pés e mãos atadas diante dela, e com isto a iniciativa e a energia dos militantes são inapelavelmente rebaixadas. Esta sujeição à "débil e tímida" oposição burguesa ajudará as classes dominantes brasileiras a encontrar uma saída de conciliação depois do caminho aventureiro empreendido com o golpe de abril.
A força capaz de obter a vitória completa e decisiva sobre a ditadura, sejam quais forem as conseqüências futuras, é o povo, e não a burguesia.
A identificação das "Teses" — nesse particular — ainda agora serve de estímulo às repetidas declarações de nossos documentos combatendo o revanchismo, como se o partido devesse ter a preocupação burguesa de salvar os criminosos golpistas, em vez de chamar o povo concretamente a uma luta; querem que o proletariado seja dócil e moderado para não assustá-la, querem negociar com a burguesia sua benevolência e seu consentimento à ação. Tudo isso sob o pretexto de que não somos fortes, de que a hegemonia ainda está em mãos da burguesia. É a teoria da inevitabilidade e do fatalismo histórico da liderança burguesa.
Conseqüência dessa teoria são as ilusões nos líderes políticos burgueses. Tais ilusões não estão sepultadas e, após o golpe de abril, foram passando de Mauro Borges a Juscelino Kubitschek, Justino Alves, Amauri Kruel, Adhemar de Barros, até chegar a Carlos Lacerda e sua pretendida "frente ampla".
Tática Não-Marxista e Espontaneísmo
A tática atual apresentada pelas "Teses" prevê saídas para as variadas situações criadas no chamado processo de acumulação de forças, indo dos movimentos reivindicatórios às manifestações anti-ditadura e àluta armada (Teses 57). O máximo previsto nessa tática é a combinação de formas elementares e legais de luta com a luta armada. A insurreição armada e a guerra civil são admitidas quando impostas ao povo pela ditadura, com o apoio do imperialismo norte-americano (Teses 58 e 60).
Uma tática que se ocupa fundamentalmente em dar saída a cada uma das situações erradas no decurso do movimento não é uma tática marxista. Essa tática não é subordinada à estratégia revolucionária, não é determinada para um plano marxista. Em um momento político determinado, como é o caso da ditadura atual em nosso país, o marxismo estabelece obrigatoriedade de um plano de atividade sistemática, baseado em princípios firmes e aplicado rigorosamente, único plano que merece o nome de tática — segundo Lenin — e sem o qual é impossível a vitória do proletariado contra o governo.
Tal plano tático exclui subordinar insurreição armada ou a guerra civil a uma imposição da ditadura, sobretudo quando esta, pela violência com que reprime o povo e sufoca as liberdades, já por si justifica a ação revolucionária do partido e das massas.
Fora disso é cair no espontaneísmo: a tática vem a ser um processo do crescimento das tarefas do partido. Tudo passa a obedecer a fórmulas: "é desejável a luta que é possível, a luta que se trava em um momento dado", fórmula que Lenin, já em seu tempo, criticou e rejeitou como ofensa ao marxismo.
Em vez da escolha do caminho direto e decisivo, em vez da mobilização das energias das massas, que não solicitam concessões e aspiram a esmagar a ditadura atual, teremos caminhos enviezados, entendimentos de cúpula à expectativa de uma ação da ala burguesa oposicionista.
De acordo com essa tática, já se apregoa a derrota da ditadura como conseqüência de uma explosão espontânea das massas ou por efeito das contradições entre as classes dominantes.
A propósito de tais questões, seria útil reler agora "Que fazer" e "Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática". Nesta última obra Lenin diz que o erro fundamental é render culto ao espontaneísmo, pois quanto maior e mais poderoso seja o auge espontâneo das massas, tanto mais se exige elevar a consciência do partido. Sem isso não se pode dirigir todo o movimento. E de explosões espontâneas nada se pode esperar, se não há liderança da vanguarda do proletariado.
A Perspectiva Errônea de um Novo Caminho Pacífico
Deixando de estabelecer um plano tático marxista, as "Teses" se omitem quanto aos caminhos da revolução brasileira, talvez porque consideram subentendida sua aquiescência ao caminho pacífico.
A esse respeito é interessante transcrever a passagem do livro intitulado "A Crise Brasileira" (Ensaios Políticos), surgido a propósito do debate.
É do seguinte teor:
"A adoção mais uma vez de um caminho pacífico por parte dos marxistas não lhes permitiria tomar a iniciativa, nem desencadear nenhuma ação decisiva contra a ditadura e sua pretendida institucionalização. E isto porque a ditadura está baseada na força, que é o principal elemento empregado contra o povo e contra a oposição. O único efeito de um novo caminho pacífico, tentado à guisa de solução da crise brasileira, seria impelir os marxistas a um erro de cálculo e a uma inevitável colaboração com a ditadura, em benefício dos interesses das classes retrógradas".
E mais adiante:
"O caminho pacífico da revolução brasileira no momento atual teria o efeito de prosseguir alimentando ilusões no povo, e minaria o moral das forças populares e nacionalistas, que precisam de estímulo revolucionário. Os fatos indicam que o proletariado, em face do tremendo impacto da abrilada, não tem outro recurso senão adotar uma estratégia revolucionária, que leve à derrubada da ditadura. Trata-se da revolução, da preparação da "insurreição armada popular." Trata-se do caminho não pacífico, violento, até mesmo da guerra civil. Sem o recurso à violência por parte das massas, a ditadura será institucionalizada por um período de maior ou menor duração.
Sem uma estratégia revolucionária, sem a ação revolucionária apoiada no trabalho pela base e não exclusivamente de cúpula, é impossível construir a frente única, movimentar as massas e dar-lhes a liderança exigida para a vitória sobre a ditadura".
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