quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Capitalismo e corrupção

"Corrupt Legislation" de Elihu Vedder

Nem campo democrático-popular, nem a burguesia e o Estado: os trabalhadores devem se organizar de maneira independente econômica e politicamente. 

Por Lucas Carlini e Daniel Lage

Não devemos confundir corrupção, isto é, mecanismos ilícitos de favorecimento das empresas na sua relação com o Estado, com atos que os trabalhadores realizam para tentar burlar regras as quais os prejudicam (não pagar impostos ou não pagar passagem no ônibus, por exemplo). A primeira movimenta bilhões, os outros são apenas tentativas individuais e inócuas de atentar uma ordem que não lhe favorece. Aliás, tais atitudes, longe de resolverem o problema, muitas vezes podem prejudicar outros trabalhadores.

Isto posto, devemos entender que – parafraseando Pedro Henrique Pedreira Campos (2015) – as irregularidades envolvendo empresários e Estado não são um desvio anômalo, mas sim mecanismos de que dispõem os capitalistas na acumulação de capital. Esses mecanismos podem servir tanto para “elevar as margens de lucro, neutralizar a concorrência”, quanto para repartir a mais-valia entre os agentes (públicos e privados) que auxiliaram nas condições para extraí-la.

Entendida sob a lógica da reprodução do capital, a corrupção não deixará de existir sob o capitalismo, por mais democrático que ele seja. A própria imprensa burguesa o atesta:

Algum dia a Lava-Jato terá fim, mas a corrupção não. Aliás, a corrupção é um tema recorrente desta coluna, sempre com a visão de que, em primeiro lugar, ela nunca acaba. Corrupção é como os crimes ou acidentes: é possível diminuí-los, mas jamais zerá-los.(23/12/2015 – O VALOR).


No entanto, vemos que, a depender do Estado-nacional, a forma predominante de relação das grandes empresas com os políticos dos altos escalões muda: com predomínio do ilícito ou do lícito, mais ou menos regulamentada. Em outras palavras, corrupção mais ou menos sofisticada. Ao olharmos para a Lava-Jato e o processo político em curso, tais nuances nos são muito importantes.

Em um artigo para o VALOR, em 17 de dezembro de 2015, o professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV e ex- Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Márcio Holland, se propõe a explicar os ganhos institucionais da Lava-Jato e as vantagens do “combate à corrupção”. O professor Holland defende a tese do economista ganhador do prêmio Nobel, Douglass North, de que o crescimento econômico (leia-se o desenvolvimento capitalista) é expressão direta de melhores instituições. Nas palavras do ex-secretário:

[…]a chave do sucesso econômico está nas regras ou arranjos institucionais que estimulam ou inibem atividades nesse sentido. O que a literatura econômica em geral considera causas do crescimento nada mais são do que consequências do desenvolvimento institucional.

O próprio autor, porém, reconhece a contradição de sua tese:

Deve-se reconhecer que essa causalidade no sentido de instituições para crescimento não é isenta de controvérsia. Afinal, pode-se entender que é por conta do crescimento que uma dada população tem mais incentivos para desenvolver arranjos institucionais mais sólidos, com menos rupturas contratuais e maior estabilidade de regras. Afinal, o que levaria alguém a acreditar que países como Zimbábue, com renda per capita inferior a US$ 1 mil, teria incentivo a aperfeiçoar suas regras de mercado, se o país nem sequer tem mercado razoavelmente desenvolvido? Seus habitantes demandam condições básicas para sobreviver. Contudo, por que países como a Etiópia, com renda per capita de quase a metade de Zimbábue, têm controle da corrupção bem melhor, conforme os indicadores de qualidade das instituições desenvolvidos pelo Banco Mundial? Ou se preferir, por que o Brasil, com renda per capita média de US$ 11.400, em 2014, tem controle de corrupção similar a El Salvador, Zâmbia ou Etiópia, países bem mais pobres?

Tal contradição demonstra que o autor, ao não levar em conta o desenvolvimento histórico do Estado em cada país, a forma pela qual se estabeleceram e avançaram as relações capitalistas e a história particular da luta de classes em cada Estado-nação, não consegue explicar as diferenças superestruturais entre Brasil, países da América Central e da África. Ou seja, não são instituições “melhores” que favorecem o desenvolvimento do capital, mas é o próprio desenvolvimento do capital que exige instituições apropriadas a suas necessidades.

Finalmente, pela força dos dados empíricos, associa a “melhoria” das instituições ao desenvolvimento capitalista no longo-prazo, embora relute em admitir a determinação do segundo:

De fato, até certo nível de renda per capita, grosseiramente algo como até US$ 10 mil, há muita dispersão nos indicadores de controle da corrupção. Os sinais não são evidentes. Mas, a partir deste limite há uma correlação alta e positiva entre controle de corrupção e renda per capita, independente do que causa o quê.

Mesmo não analisando a relação entre superestrutura e infraestrutura econômica corretamente, o autor percebe um fenômeno interessante da realidade, qual seja: a partir do avanço das relações capitalistas nos diferentes países, isto é, a presença de monopólios internacionais e nacionais atuando em seu território e exportando capitais, a superestrutura precisa se desenvolver e arranjar a melhor maneira pela qual as diferentes empresas irão se relacionar com o Estado, pois se isso não ocorrer, pode haver um entrave ao pleno avanço do capital e às disputas entre as grandes empresas. Ora, a este ponto chegou o Brasil.

No final de seu texto, o autor atribui ao combate à corrupção um possível ganho de produtividade na economia brasileira “para as gerações futuras”, o que é óbvio se considerarmos que um arranjo adequado das leis e da forma política permite o pleno desenvolvimento das relações capitalistas. No entanto, essa constatação também corrobora o que notamos, de que em tempos de taxas de lucros estreitas, grandes propinas ajudam a acirrar as disputas imperialistas, além de representarem possíveis investimentos produtivos que acabam como despesas para os capitalistas fazerem negócios.

Mesmo que superestimadas, as quantias são exorbitantes:


Os acontecimentos recentes na Lava Jato suscitaram diversas interpretações. Do ponto de vista dos defensores da indústria nacional – muitos deles no campo político da esquerda -, acusam a Lava Jato de que as multas impostas à Odebrecht pelos atos de corrupção são uma nítida tentativa de destruir os monopólios brasileiros e nos relegar ao subdesenvolvimento, vistas a sua seletividade e as multas (acursadas de serem as maiores da história) aplicadas pelo imperialismo norte-americano.

Para desmontarmos tais argumentos, devemos entender o que é o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) no qual o grupo brasileiro foi enquadrado. É uma lei estadunidense que pune as empresas listadas nas bolsas dos EUA e que tenham se envolvido em corrupção (propina) no exterior. Diferente do que acusam os nacionalistas, tal lei pune grandes empresas há anos (inclusive dos EUA) e a multa ao grupo Odebrecht não é a maior já aplicada, como mostra o ranking no site da FCPA:

1. Siemens (Germany): $800 million in 2008.
2. Alstom (France): $772 million in 2014.
3. KBR / Halliburton (USA): $579 million in 2009.
4. Teva Pharmaceutical (Israel): $519 million in 2016.
5. Odebrecht / Braskem (Brazil): $419.8 million in 2016.
6. Och-Ziff (USA): $412 million in 2016.
7. BAE (UK): $400 million in 2010.
8. Total SA (France) $398 million in 2013.
9. VimpelCom (Holland) $397.6 million in 2016.
10. Alcoa (U.S.) $384 million in 2014.[1]

Além disso, acusam a Lava-Jato e o Departamento de Justiça dos EUA de investigar somente a Odebrecht e as empresas nacionais, porém não é verdade.

Fazem parte da lista das empresas investigadas nos Estados Unidos a Petrobras, a Eletrobras e uma série de gigantes internacionais que foram apanhadas pela Operação Lava Jato, como a Rolls Royce (Inglaterra), Sevan Marine e Vantage Drilling Company (ambas da Noruega), SBM Offshore (Holanda), Technip SA (França) e Keppel Corporation (Cingapura)(13/01/2017 – FOLHA SP).

Devido às investigações da Lava Jato, a Rolls Royce já pagou US$ 26 milhões ao Brasil e ainda vai pagar US$ 169,9 milhões ao Departamento de Estado dos EUA e 497,3 milhões de libras (US$ 603,5 milhões) à autoridade contra fraudes do Reino Unido. A SBM offshore também já pagou uma multa e aguarda a liberação para voltar às atividades. A demora para que essas empresas e as brasileiras voltem a ter relações normais com o Estado brasileiro se deve, por um lado, a uma questão de avanço institucional na regulação do capital, já se pondo em curso uma “melhora” jurídica[2] no sentido de lidar com tais casos. Por outro lado, devido à instabilidade política, que ainda não apresenta vias de superação.

Portanto, a visão de mundo que reduz a Lava Jato a um braço do ataque imperialista dos Estados Unidos mostra-se agora equivocada ou oportunista. No primeiro caso, é um erro de interpretação dos movimentos do capital e suas exigências institucionais, pois vê entrave ao desenvolvimento do capital no que é, em verdade, alavanca para tal desenvolvimento e acumulação. No segundo caso, é mera agitação burguesa para envolver parte da classe trabalhadora em sua causa, isto é, mobilizar a nação na defesa dos monopólios nacionais.

Posto isso, é interessante citar o caso recente da Volksvagen, no qual a empresa fraudou o mecanismo de emissão de poluição de seus carros e foi descoberta. Teve que realizar um recall de todos seus carros e avalia que o custo de tal operação já chegou aos € 18,2 bilhões. Não obstante,

está perto de um acordo para o pagamento de US$ 4,3 bilhões em indenização e admissão de culpa pelo processo criminal movido pelo Departamento da Justiça norte-americano pelo escândalo de fraude de emissão de poluentes em veículos da montadora.(FOLHA SP – 11/01/2017)

Será que na Alemanha, assim como no Brasil de hoje, também não há organizações gritando a plenos pulmões, em nome dos trabalhadores alemães, que os EUA querem relegar a Alemanha ao subdesenvolvimento, à dependência e à periferia do capital, destruindo suas empresas e seu desenvolvimento autônomo, o qual permite ganhos aos trabalhadores e à economia alemã? Certamente isso ocorre.

Em tempo de monopólios, o discurso social-democrata e seu viés nacionalista se põe a serviço dos interesses da burguesia e prepara o terreno para uma maior permeabilidade do discurso fascista, seja na Alemanha, na Itália ou no Brasil.

O Manifesto à “Nação Brasileira” lançado em fevereiro deste ano pela Frente Parlamentar da Engenharia é mais um exemplo de como a social-democracia coloca os trabalhadores a reboque dos interesses burgueses. Contou com a assinatura do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA), da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ), do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e da Federação Única dos Petroleiros (FUP), além de deputados dos mais diversos partidos.

Promover acordos de leniência para as empresas envolvidas no escândalo da Lava Jato a fim de preservar a produção e o emprego no País, defender o conteúdo local e reverter a posição da Petrobras para a abertura de investimentos estrangeiros no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ) estiveram entre as propostas debatidas e que integraram deputados e senadores na manhã desta quinta-feira (9), durante a reunião da Frente Parlamentar Mista de Engenharia, Infraestrutura e Desenvolvimento Nacional.(ABIMAQ – 17/02/2017)

As pautas defendidas nesse documento são dos interesses das empreiteiras brasileiras e de parte dos grandes empresários, nada têm a ver com os interesses dos operários da Petrobras, do COMPERJ ou de qualquer lugar do Brasil. Seja com conteúdo local ou sem ele, o desemprego continuará assolando a classe trabalhadora e a produção continuará a andar de acordo com os ciclos da economia capitalista, não de acordo com as necessidades dos trabalhadores. Pois sejam empresas estrangeiras ou nacionais, os trabalhadores do COMPERJ continuarão a ser explorados impiedosamente. Dessa maneira, podemos observar que é característico dos oportunistas confundir as pautas dos empresários com a dos trabalhadores e, portanto, cumprir o papel de desarmar o movimento operário brasileiro para os desafios da conjuntura em tempos de crise econômica. Por isso devemos combater o campo democrático-popular tanto quanto a burguesia e seu Estado: não cabe aos trabalhadores se aliarem a este ou aquele setor da burguesia (nacional ou não) nem defender suas demandas, mas sim se organizar de maneira independente tanto econômica quanto politicamente.

Ora, se tamanhas multas não podem ser explicadas nem pela sua seletividade nem pela sua magnitude, como devemos encará-las? Os EUA são o grande regulador da disputa imperialista internacional e têm a legitimidade do mundo para cumprir esse papel, seja porque as empresas querem lançar suas ações na bolsa de NY (a maior do mundo), seja porque querem atuar em seu território, seja porque querem vender ao seu mercado (o maior do mundo), seja porque seu poderio militar exige um certo respeito. Dessa maneira, as multas aplicadas são um recado a todas as empresas que ousarem não atuar conforme os ditames do imperador e tentarem se dar bem debaixo de suas asas. A seletividade existe, pois o FCPA não investiga as petroleiras estadunidenses na Arábia Saudita, por exemplo, porém essa é uma das vantagens de ter o império nas mãos, e não um ataque específico em relação ao Brasil.

O FCPA também é mais um mecanismo do Estado norte-americano de exportar a crise do capital para o resto do mundo e utilizar as cifras para contê-la no seu território. A somatória das multas aplicadas após a crise de 2008 até 2016 é de aproximadamente U$9 bilhões. Tal quantia foi retirada diretamente de grandes concorrentes dos estadunidenses pelo mundo e tornada disponível à sua economia e suas empresas.

Não podemos deixar de considerar que a Odebrecht foi a primeira empresa latino-americana a pagar uma multa de peso ao FCPA, numa lista que na sua dianteira conta com Siemens, Alstom e Halliburton. Esse é um fato simbólico que explicita a entrada de vez do Brasil na disputa imperialista internacional, ainda que como um player menor. Essa entrada é marcada por um recado carinhoso da maior potência mundial: seja meu aliado ou pereça![3]

Notas
[1] Se somadas as quantias pagas pela Odebrecht/Braskem aos EUA, Suiça e Brasil chegamos a 6 bilhões de reais que serão pagos em muitos anos. Apesar de ser uma grande quantia, ela não inviabiliza a continuidade do grupo.
[2] As diversas instituições públicas que regulamentam o mercado, como CVM e CADE, estão atualizando-se e modificando ou criando legislações ligadas a temas como delações premiadas, acordos de leniência e recuperação judicial.
[3] Não nos detemos na delação premiada da J&F neste texto porque, até o concluirmos, a empresa havia acabado de assinar o acordo com o Estado brasileiro e ainda estava negociando com outros Estados. No entanto, valem duas observações: 1) a J&F não assinou acordos primeiramente com os EUA porque suas ações negociadas na bolsa de NY são da sua divisão internacional, não envolvida nos casos de corrupção, diferentemente da Petrobras e da Odebrecht, que negociavam diretamente na bolsa de lá; 2) a multa do grupo foi de R$10,3 bilhões em 25 anos, o equivalente a 5,62% de seu faturamento em 2016. Defender que isto é um plano imperialista pra destruir os monopólios brasileiros é subestimar muito o poderio do imperialismo, ou apenas mais uma manifestação do necrorreformismo.


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