Por Bruno Cava
Ontem à noite, praticamente todos os portais noticiavam um arrastão no shopping de Guarulhos. Milhares de jovens se organizaram pela internet para provocar tumulto e roubos. Os lojistas assustados chamaram a polícia, que cercou o shopping e prendeu 27 pessoas por furto. Era estranho, mas as dezenas de redatores dos portais descreveram com quase as mesmas palavras, no mesmo formato e tom de noticiário policial, e chegavam todos a conclusões idênticas: “arrastão”.
Horas depois, perto da meia noite, a unanimidade se tornou menos unânime.
Revelou-se que a organização do evento na internet avisava que era uma reunião recreativa e não para roubar. Alguns jovens estavam, de fato, com roupas etiquetadas das lojas, mas “dentro das lojas”, ninguém tinha saído com o produto do não-furto. Os lojistas não tinham chamado a polícia exatamente para conter um “arrastão” em andamento, mas porque estaria “prestes a acontecer” ou “pronto para um arrastão”. Prestes ou prontos a fazer um arrastão do verbo não fizeram nada. Aí a notícia derreteu de vez: ninguém, nenhum lojista, cliente ou a própria administração do shopping relataram qualquer furto ou roubo. Como não havia queixa, de madrugada todos os 27 detidos foram soltos. O noticiário desclassificava o não-arrastão para “tumulto”.
O roteiro foi parecido com o que aconteceu no shopping Itaquera, na zona leste de São Paulo, no último fim de semana. Eram seis mil pessoas organizadas por Facebook e WhatsApp. O noticiário imediatamente falou em “arrastão”. Nas notícias, também apareceram as palavras “caos”, “pânico”, “suspeitos” e “prejuízos”. Mas nenhum furto ou roubo foi registrado. Os relatos em primeira pessoa falavam, no máximo, de “correria” e “exaltação”, e alguns achismos: “é claro que devem ter ocorrido roubos”.
Em 30 de novembro, tinha acontecido em Vitória. Jovens que estavam num baile funk buscaram abrigo de uma confusão (possivelmente causada pela ação da polícia contra o baile) num shopping e a polícia foi chamada, cercando e detendo as pessoas. Também se falou em “arrastão”, mas naquela vez a notícia derreteu para “confusão” e “corre-corre”.
Em 19 de outubro, em Belo Horizonte, de novo um “arrastão” se transformou em 24 horas em “confusão” ou, conforme declaração do próprio shopping Del Rey: “um certo tumulto”. Nenhuma queixa registrada. No mesmo dia, em Contagem, perto de BH, um outro arrastão teria sido evitado pela polícia “antes que acontecesse”, expulsando os “suspeitos” do shopping.
A impressão que fica é que os redatores e jornalistas já têm um esquema mental do que seja um arrastão e, diante dos estímulos certos, apertam o “play” para essa narrativa precondicionada, nela encaixando as circunstâncias de tempo e lugar. Por isso, todas as notícias parecem rigorosamente iguais, dando a impressão de um fato universal e unânime, para onde convergem rapidamente todos os portais, grandes ou pequenos. E a polícia segue a mesma lógica.
Dizem que a “onda de arrastões” é um fenômeno maior. As colunas opinativas dão conta de uma “nova ameaça para a sociedade”, “moda de invadir shoppings” ou “grupos organizados para gerar pânico e caos”. Os editoriais a seguir incitam a violência policial, sob as senhas “medidas duras”, “tolerância zero” e “apertar o cerco”. Alguns sites e veículos, mesmo depois dos desmentidos, insistem em conservar a palavra-chave “arrastão” nas manchetes e títulos de reportagens e notícias.
Realmente, é um fenômeno maior. Ele se chama racismo. É o racismo dos automatismos e esquemas mentais, com que se interpreta e ajuda a reproduzir a realidade. “Arrastão” é um refrão do cancioneiro racista brasileiro, da mesma maneira que “atos de vandalismo” sempre serviu para criminalizar movimentos sociais e lutas legítimas. O medo, o pânico, o horror acontece não porque sejam milhares de criminosos que, pela internet, se organizem para saquear o shopping. O medo, o pânico, o horror acontece porque são negros. Eles são presos porque são negros. E são presos enquanto negros: sentados no chão com mãos à cabeça, alinhados em fila indiana, e então intimidados com armas em punho e humilhados como escravos fugidos. Não à toa os eventos sejam associados ao funk: música negra, da periferia e das favelas. Se fossem adolescentes brancos ouvindo, digamos, Los Hermanos, certamente não seriam presos, por mais exaltados e briguentos fossem, ainda que a polícia eventualmente fosse chamada. E dificilmente o fato seria noticiado como “arrastão”, tampouco ganharia tantos apelos histéricos na imprensa por sua repressão.
Os “rolezinhos” e “shoppings lotadões” — que é como eles chamam os eventos nos estacionamentos e áreas comuns — são uma forma de ação afirmativa. É ocupação político-cultural, embora fora das caixinhas da esquerdologia dominante, que não os reconhece como movimento. Mas, proibidos de fazer bailes na rua, e cada vez mais discriminados em sua cultura de resistência, resolveram levar a festa para os lugares onde a própria publicidade os convida: aos shoppings. Os jovens negros e pobres das periferias e favelas das grandes cidades estão, realmente, se organizando. É isto o que assusta. Se eles entrassem individualmente, se se portassem como consumidores bem-comportados, bem-adaptados, estaria tudo bem. O problema é que se organizam, que não querem deixar de ser eles mesmos, de existirem livres em sua riqueza, mesmo quando conquistam a admissão no clube da dita “Classe C” ou “nova classe média”.
O rolezinho não só expõe e denuncia o racismo institucional do capitalismo brasileiro, como afirma um mundo, cria um acontecimento. Realmente, é um fenômeno maior.
Fonte: UniNômade
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