Por Mauro Zilbovicius e Lúcio Gregori,
Há
um ‘personagem’ que monopoliza a narrativa dos protestos e debates em
torno da tarifa do transporte coletivo urbano: a “caixa preta” na qual
se ocultam as distorções e gorduras de planilhas controladas pelas
empresas do setor.
A planilha misteriosa atravessa os tempos: é a mesma utilizada pelo GEIPOT, ainda na ditadura.
A
trajetória adensa as suspeitas e expectativas: uma vez aberta a caixa
preta, resolve-se o desafio de baratear e qualificar o transporte
coletivo?
Nada mais equivocado.
Os
dois principais itens da operação são a mão de obra (entre 45% e 50% do
custo total) e os combustíveis (em torno de 20% do total).
Manutenção,
reposição, impostos, taxas, depreciação do investimento em novos
veículos, garagens complementam o núcleo duro dos custos.
Nada
disso está oculto, nem é difícil de medir. Antes dos reajustes, a
prefeitura de São Paulo publica essa planilha no Diário Oficial e na
internet.
Por aí a margem de manobra é estreita.
A verdadeira caixa preta consiste em destrancar a lógica que ordena a discussão.
Só se supera aquilo que se substitui.
A
prefeitura precisa trazer para a cidadania e para as empresas outra
lógica, ancorada em dois pilares de discussão: a) o custo total do
sistema de ônibus e b) o critério de remuneração das concessionárias ou
permissionárias, contratadas para executar o serviço.
Esta é a chave.
Essa ponderação permitirá à cidade e às autoridades avaliarem se o custo total do sistema é remunerado adequadamente ou não.
Um sistema de ônibus urbanos pode e deve ser dimensionado a partir da demanda e da concepção da cidade.
(Esse
novo dimensionamento deve incluir os seguintes itens): trajetos,
frequências, conforto da viagem, o nível de ocupação dos ônibus
--passageiros por metro quadrado, no horário de pico ou de ‘vale’ –,
tempo de viagem, tempo de espera no ponto, distância da origem e do
destino dos pontos mais próximos, qualidade oferecida nos veículos (ar
condicionado; motor traseiro; transmissão automática; piso baixo; nível
de ruído interno e externo e outros).
Esse
dimensionamento define os chamados capex e opex , respectivamente, os
gastos de capital (capital expenditures) e da operação propriamente dita
( operational expenditures).
O conjunto define
as condições do serviço a ser contratado. A formatação desse ‘pacote’ é
um prerrogativa do planejamento urbano do contratante: a prefeitura, que
não pode rebaixar o exercício dessa responsabilidade.
Feito
isso, há que se reconhecer um fato crucial: dado um padrão de serviço
exigido, seu custo é fixo em relação aos passageiros transportados. Em
resumo: não importa quantos passageiros o veículo transportará.
O
custo variável por passageiro, embora mensurável, é desprezível em
relação ao custo fixo da operação. Um passageiro a mais não custa nada a
mais (rigorosamente, custa uma fração infinitesimal do custo).
Os economistas dirão que, na margem, os passageiros custam zero.
O
que modifica os custos são as variações significativas do nível de
serviço (e consequentemente, dos insumos. Apenas quando acontecem, os
custos mudam).
Assim, não tem o menor sentido falar-se em custo ou remuneração por passageiro.
O
número de passageiros transportados não é, em si mesmo, o objeto de
cálculo do custo do sistema, mas a base do seu dimensionamento.
Há situações correlatas que ajudam a entender essa escala do negócio.
Sistemas
de TV a cabo, por exemplo, onde o novo assinante não representa custo,
já que a rede está instalada para uma certa capacidade de ligações.
Ou
ainda, sistemas de telefonia celular e fixo. Ou o passageiro adicional
no avião que vai decolar de qualquer jeito, com lugares vazios.
A receita adicional nestes casos é bem vinda, desde que seja maior do que o custo variável e marginal do passageiro.
No caso do avião, este custo resume-se ao combustível gasto pelo peso do passageiro adicional.
O acréscimo tende a zero, comparado com os custos fixos da viagem.
Por
isso, em todos estes negócios, o que importa é maximizar a receita
usando o máximo do investimento feito: o custo, para todos os efeitos, é
fixo.
O problema da companhia aérea é não
transportar poltronas vazias... Razão pela qual existem planos
promocionais desses serviços , caso da telefonia, por exemplo. Fale “x”
minutos e não pague a mais , etc.
O intuito é
ocupar no tempo, inteiramente, a rede operacional, cujo capex (gasto de
capital) já foi feito na instalação do sistema e o opex (custo da
operação) não cresce por conta da ligação a mais que o usuário completa.
Outro exemplo é o táxi.
Um
passageiro entra no táxi. e diz o endereço de destino. A meio caminho
encontra um ou mais amigos andando a pé e os convida para entrar no
táxi. Esses novos passageiros obviamente não pagam nada por isso, pois
não significaram quase nenhum custo adicional, este já calculado quando
dos custos registrados no taxímetro.
Decorre daí a
pergunta que remete à questão original da tal da lógica que ordena o
custo da tarifa em São Paulo: se o custo é fixo, porque remunerar os
contratados pela Prefeitura por passageiro, como acontece hoje?
Porque
licitar e contratar por um valor de remuneração por passageiro se isso
implica que, por exemplo, mais passageiros transportados proporcionam
maior receita, e nenhum custo?
A lógica tem que mudar. O problema está nela, não na tal caixa preta.
Pior ainda.
Mantida essa lógica, ocorrem situações absurdas.
Uma
hipótese: se o numero de passageiros cai no sistema porque, por
exemplo, ele é de péssima qualidade, o que motiva concorrentes
clandestinos, o contratante pode incorrer no erro de avaliar que o
“custo aumentou” ( porque a fração custo/passageiro se eleva).
Em outras palavras, o contratante é onerado por uma ineficiência do contratado.
O
custo unitário por passageiro é uma grandeza falaciosa e leva a esses
erros crassos de política pública (e privada também, é forçoso admitir).
Um último exemplo do equívoco embutido na lógica de remuneração por passageiro.
Quando
surge o serviço clandestino na linha, com tarifa de R$ 0,80, digamos,
ele rouba 10% dos passageiros ( para uma tarifa de R$ 1,00) por exemplo.
Quem
faz a conta por passageiro entenderá, erroneamente, que o sistema
desequilibrou, pois menos passageiros resultarão em menor receita.
“Racionalmente” o contratante vai ter que reajustar a tarifa para compensar a perda de receita.
Ou,
ainda, diminuir os custos reduzindo a frota operante, o que agravará
novamente a sua situação, pois os clandestinos ficarão mais
competitivos...
Uma espiral típica de “cabeças de planilha” que leva a um ciclo suicida…
Alguns argumentarão que a remuneração por passageiro é um instrumento de controle da prefeitura.
Supostamente, evitaria o descaso com passageiros abandonados nos pontos etc.
Vejamos.
Num táxi., é o usuário que controla o trajeto, caso o motorista queira
estendê-lo indevidamente. Nos ônibus, é o poder contratante que deve
fiscalizar o trajeto, bem como as paradas obrigatórias, o total de
passageiros recolhidos etc.
Hoje mais do que nunca, isso pode ser feito instantaneamente, com o aparato tecnológico disponível.
Para
resumir: num sistema como o atual, que leve em conta a remuneração
também por passageiro, o empresário é levado a baixar seu custo
ofertando menos viagens, de modo a lotar um número menor de veículos, o
que significará serviço de pior qualidade.
Além disso, dará prioridade às linhas mais rentáveis, ou seja, com alto índice de passageiros por extensão rodada.
Para
ser enfático: a linha de ônibus e número de passageiros transportados
não deve e não pode ser uma variável sobre a qual o empresário tenha
qualquer interferência.
Não lhe diz respeito: quem decide isso é o contratante.
Ademais,
é preciso advertir que nem Thatcher ou Pinochet conseguiram resolver os
desafios dos sistemas de transportes coletivos à mercado.
Ou
seja, não tem cabimento a prefeitura adotar um regime de concessão de
linhas e mesmo de áreas ou regiões homogêneas em termos de passageiros
por quilômetro.
Dadas as características
monopsônicas (inverso de monopólio) desse mercado, cabe-lhe calcular o
custo operacional e de capital, pagando, tão somente esse custo .
Adicionando-lhe uma margem de lucro competitiva em relação a outras
oportunidades de aplicação do capital.
Ponto.
Redefinido
o jogo com base nessa lógica, aí sim, o poder concedente, a prefeitura
de São Paulo, no caso, conseguirá dimensionar o sistema exclusivamente
em função do interesse dos usuários e da cidade.
Livra-se
do círculo vicioso que é a discussão a gosto das empresas, baseada no
rateio de linha mais ou menos rentável, custo por passageiro etc.
A
distorção não se limita à esfera financeira. Ela prejudica todo o
planejamento e a ação da prefeitura no sistema de transporte.
Nos corredores de ônibus tal como operam atualmente, ocorre a mesma lógica perversa que descrevemos.
Mantido o equivoco do custo por passageiro, é fácil perceber-se porque eles acabam congestionados pelos próprios ônibus.
A razão é que as empresas vão disputar passageiros ali ferozmente, posto que também são remuneradas pela lotação.
Os
corredores, desse modo, distanciam-se ainda mais da sua concepção
original: um fluxo livre de um terminal a outro, salvo algumas eventuais
exceções.
O corredor deve se mirar no metrô: não
existe o caos da ‘ultrapassagem de veículos no metrô’; nenhum
passageiro “espera o meu trem” numa estação de metrô. Assim deveria ser o
corredor de ônibus.
Ao cancelar a maior
licitação de linhas de São Paulo, a prefeitura abriu um espaço redefinir
as bases do modelo de transporte que a cidade precisa e que ela vai
contratar.
Repita-se, é sua prerrogativa definir as regras do jogo que tornem mais racional e eficiente o sistema de transporte na cidade.
O modelo de contratação e a fórmula de remuneração dos serviços devem ser debatidos de forma transparente com a cidadania.
A
contratação por frota com exclusivo pagamento do opex calculado como
acima mostrado e remuneração de capital, é de longe o que mais interessa
à população.
Absurdos como o inverso, ou seja,
frota pública operada pelas empresas, com gigantescos investimentos da
Prefeitura/Estado em compra de frota, deixando às empresas o “filé” de
terceirizar a mão de obra etc.; ou propostas de estatização completa do
sistema, novamente fazendo uma enorme despesa de capital pela
Prefeitura, são completamente fora de sentido no momento.
Curioso
que essas “sugestões” são aventadas ao mesmo tempo em que o Prefeito
diz não ter dinheiro para subsidiar R$0,20 na tarifa, ou diz que a
Prefeitura corre o risco de insolvência.
O mais certo é a contratação de frota, como um fretamento.
Se
mantido o sistema de concessão, que só tem vantagem para o empresário, é
indispensável separar o custo da tarifa cobrada, se cobrada.
É o que prevê o artigo nono e parágrafos da Lei da Mobilidade promulgada pela presidenta Dilma, em janeiro de 2012.
Separa-se
ali a tarifa (o opex) do que for a remuneração paga ao concessionário,
conforme os custos. Estes devem ser calculados como mencionamos, da
tarifa pública cobrada do usuário, desejavelmente subsidiada ou, no
limite, zero.
A conjuntura atual tem muita
semelhança com a de 1991, para melhor, pois a mobilização das ruas
ampliou a margem de manobra da prefeitura.
Naquela oportunidade, os contratos em regime de concessões, que só interessam aos empresários, estavam vencidos como hoje.
A crise do transporte estava escancarada.
Como hoje, a ponto de o Prefeito suspender a concorrência para renovação das concessões.
Em
1991 os contratos de concessão foram substituídos pelos de fretamento,
tal como descrito acima, com suas evidentes vantagens para a população.
Foram incorporados mais 2.000 novos ônibus em seis meses de contratos, para uma frota então existente de 8.000!
Um salto, tristemente revertido para o velho sistema de concessões e remuneração por passageiro, no governo de Marta Suplicy.
A
irracionalidade dessa escolha é tanta que, por acaso, se a remuneração
por passageiros for superior a dos custos do sistema (custo mais lucro),
recursos adicionais serão indevidamente transferidos para os
contratados. Um caso de enriquecimento ilícito?
Mas o inverso, em tese também pode ocorrer.
Se
a remuneração for menor do que custo mais o lucro previamente definido,
não se estará contribuindo para que o sistema se degrade, com retirada
de ônibus?
No edital ora cancelado, propôs-se
fazer a remuneração “50% por custos e 50% por passageiro”, algo que não
tem qualquer sentido em termos de remuneração de custos reais.
É
forçoso repetir à exaustão: a discussão sobre planilha de custos não
deve ser o centro do debate; o que importa é a forma de remuneração dos
serviços contratados.
A discussão de uma planilha
absolutamente insuspeita, pode ser feita por um Conselho Municipal de
Tarifas, com dois ou três representantes da Prefeitura, representantes
da FIPE,
Dieese, Ministério Público, e outros
representantes da sociedade civil, que estabelecerá essa planilha “acima
de qualquer suspeita”.
Isso já aconteceu em 1989/1990 no governo municipal de São Paulo.
É hora de mudar, definitivamente, para o fretamento.
O que precisa ser estatizado, definitivamente, é a gestão do sistema.
Ou
seja, a Prefeitura deve exercer integralmente sua prerrogativa e o
direito de dimensionar linhas tendo em vista os interesses dos usuários e
a cidade que se deseja.
Remunerar as empresas
contratadas exclusivamente por custos operacionais e adicional de
capital é o ponto de partida para se abrir e democratizar a discussão do
transporte e da tarifa com a cidade.
A
cidadania, através da Prefeitura, precisa exercer o seu poder de mando
sobre as linhas. E isso inclui definir a lógica da remuneração pelo
serviço prestado aos operadores da malha.
Trata-se de uma questão política. Não é contabilidade: é o poder de a cidade comandar o seu próprio destino.
Mauro
Zilbovicius é ex-secretário interino de Serviços e Obras da Prefeitura
de São Paulo, professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção
da Poli-USP e membro do Conselho Curador da Fundação Vanzolini.
Lúcio Gregori é engenheiro e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo (1990-1992).
Fonte: Brasil de Fato
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