quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A greve e a democracia virtual


Por Mauro Iasi*
No contexto da greve nacional dos professores tem se manifestado um debate no mínimo curioso. Um certo sindicalismo que é a reapresentação grotesca do velho sindicato ministerialista da época de Getúlio Vargas, tem apresentado o argumento que a greve não é um instrumento legítimo de luta e que as assembleias que estão na base de sua deflagração não são “representativas”, colocando como alternativa a consulta eletrônica e os plebiscitos.
Tal argumento ignora, oportunamente, o fato de que esta greve tem uma dinâmica própria e, em vários aspectos, distinta das outras experiências grevistas vivenciadas pelos professores federais e que foram responsáveis por inúmeras conquistas e importantes resistências. Já começou bastante forte em 33 universidades e rapidamente ganhou a adesão de mais de cinquenta universidades e instituições de ensino.
Sua principal razão de ser pode ser encontrada nas trapalhadas do governo na condução das discussões entorno da carreira docente, mas fundamentalmente nas condições de trabalho que resultaram da proposta de expansão materializada no REUNI. Nossa última grande greve foi em 2001 e ninguém pode acusar, portanto, o ANDES-SN de não estar dispostos ao diálogo, como demonstra a boa vontade de nossa entidade durante todo o ano de 2011 na verdadeira comédia de erros que o Ministério do Planejamento protagonizou.
Diante do fato inquestionável da greve e de seus motivos, vendo as universidades aderirem ao movimento mesmo naquelas unidades onde esse sindicalismo neo-conservador tentou por todos os meios impedi-lo, esses senhores lançam mão de um argumento que busca deslegitimar o movimento, ou seja, ele seria resultado da ação de uma minoria (no caso da UFRJ, um dos dirigentes do sindicalismo ministerialista não hesita em classificar os dirigentes e grevistas como uma “militância paga”) que em assembleias pouco representativas imporiam a greve à uma maioria que seria contra.
Pierre Bourdieu afirmou certa vez que o que há de específico no campo da política é a disputa pelo silêncio dos “profanos”, desta forma esses senhores se consideram os porta-vozes daqueles que em silêncio e ausência estão contra a greve, mas não dizem, enquanto os grevistas seriam aqueles que reivindicam este silêncio como concordância. O problema, portanto, passa a ser como averiguar estas suposições. Enquanto o movimento docente, como base em uma experiência construída em mais de trinta anos de resistência, luta e militância, procura realizar isso através de reuniões de unidade, seminários, materiais impressos e digitais, que levem ao conjunto dos professores os elementos para que estes possam formar suas convicções para que em assembleias enfrentem as alternativas e decidam pelos caminhos que devem trilhar; nossos senhores do sindicalismo oficialista insistem que o mais democrático seria uma consulta eletrônica na qual os professores deveriam dizer sim ou não à greve.
Parece-me que há aqui um importante tema a tratar. Com o fim do ciclo da autocracia burguesa o debate centrava-se entre uma mera democracia representativa e uma democracia participativa de forma que questionávamos o fato que a mera manifestação da vontade pelo voto e a eleição de representantes seria suficiente para se tornar o canal de expressão da vontade e dos interesses dos trabalhadores e da maioria da população em luta contra as demandas da ordem e dos poderosos interesses de classe que ela manifestava.
Neste cenário a defesa da democracia direta ou participativa procurava os canais que fosse adequados à dinâmica da luta de classes naquele momento colocada e insistíamos nas assembleias, nos comitês, nos conselhos, na luta direta como nas greves, nas manifestações, nos atos públicos e na organização política que fosse construída com base nesse princípio, ou seja, dos núcleos de base e nas formas de controle das bases sobre suas direções.
Em contraposição a tudo isso o argumento da ordem era o do respeito às instituições, aos sindicatos oficiais e atrelados, ao Governo e ao Congresso, ainda que esses encouraçados de legalidade jurídica carecessem de legitimidade política.
Interessantemente, a ordem que derivou deste ciclo e que levou o PT ao governo, tem transformado esses instrumentos de democracia participativa (o exemplo mais contundente são os conselhos) em instrumentos de apassivamento. O chamado “controle social” entendido no contexto das lutas populares como forma da população controlar a elaboração e execução de políticas públicas, como no caso do movimento sanitarista, se transforma em “controle social” restritamente concebido como controle exatamente do movimento para que não prejudique a implantação de políticas privatizantes e mercantilizantes dos serviços essenciais como saúde, educação, moradia, transporte e outros.
A contradição entre “democracia” e “participação”, isto é, o paradoxo pelo qual uma forma política que almeja ser da maioria ter que disciplinar a participação para que a maioria de fato não governe, leva a retorno dos instrumentos cada vez mais típicos da “representação” e não da participação direta. Isso no contexto político geral se materializa no fetiche do voto que como dizia o próprio Rousseau é o ato pelo qual um povo que se ilude que é soberano transfere a soberania aos que de fato Irão detê-la e governá-lo.
Mas, o fetiche do voto vai além. Uma relação entre seres humanos se transforma numa fantasmagórica relação entre coisas, dizia Marx, quando a relação entre seres humanos mediada por coisas eleva esta mediação ao papel de protagonista. Assim como na relação mercantil, esvaziasse o valor de uso, aquele conteúdo que está relacionado a satisfação das necessidades humanas, revelasse como fundamental o valor de troca como expressão do valor, do trabalho abstrato.
Assim, não são mais as demandas reais, os interesses de classe e suas contradições essenciais com a produção e reprodução social da vida que estão em jogo, mas voto em si mesmo, o mento da decisão por este ou aquele representante ou essa ou aquela decisão. Desta forma a política pode prescindir daquele tormentoso e difícil momento do debate e ir direto ao que interessa: o voto.
A mediação dos meios eletrônicos só aprofunda o fetichismo, assim como o dinheiro na forma mercadoria. Da mesma forma que o dinheiro nas relações de valor permite que trabalhos concretos distantes se confrontem nas relações de troca como iguais, soterrando suas diferenças concretas sob a objetividade impalpável do valor, o voto soterra o conteúdo qualitativo das diferenças e antagonismos, no ato em si do ato de votar. Você, indivíduo encapsulado com suas convicções que lhe parecem pessoais mas são de fato a expressão do senso comum construído por uma certa ordem societária que lhe é imposta, se ilude de decidir porque aperta o botão ao mesmo tempo que muitos outros.
No pavilhão construído por ocasião da Rio + 20 e que recebe o nome sugestivo de pavilhão da humanidade (financiado por empresários, a Fundação Roberto Marinho e outros que pretensamente esperam representar a humanidade) há uma instalação na forma de biblioteca e ao centro uma espécie de pendulo fora do prumo.  Para que o pendulo fique no prumo todos tem que apertar vários botões simultaneamente. Segunda a representante da Fundação Roberto Marinho, isso para “dar a sensação de que a saída depende de todos nós”.
Trata-se exatamente disso: uma sensação. Enquanto um número muito grande de pessoas apertam seus botões para vivenciar a gratificante sensação de que estão decidindo alguma coisa, um número bem pequeno de pessoas, aquelas que controlam os verdadeiros botões que podem definir o prumo das coisas, estão de fato decidindo.
A votação virtual pode ser um bom instrumento eletrônico para realizar uma consulta, mas de forma alguma pode substituir o processo político do debate, do contraditório, do conhecimento de causa, da informação. Esse é o mesmo processo pelo qual o fetiche da comunicação substitui a comunicação propriamente dita.
É significativo que aqueles setores que abandonara a democracia direta e se renderem à democracia formal, que escondem o particularismo de seus interesses sob o véu ideológico de uma universalidade abstrata, queiram agora levar a mesma inflexão para a ação sindical.
A resposta, no entanto, veio exatamente de onde deveria vir. Estes senhores que passaram o ano passado inteiro em salas fechadas com o governo numa atitude subserviente e vergonhosa (na prática como assessores do Governo), e até o final do ano passado ainda não tinha uma proposta integral para discutir a carreira além de alguns míseros pontos, estão sendo varridos por assembléias nas próprias universidades que diziam “controlar”, como foi na UFG, em parte da UFSCar, na UFBA e no UFC. Nesta última com um requinte de poesia. Forçaram um plebiscito eletrônico que ocorreu esta semana e o resultado foi esse: 883 professores favoráveis à greve e 379 contrários.
Saberemos enterrar esses senhores fetichistas e seus fetiches na mesma cova onde enterraremos um dia a raiz de tudo isso: a mercadoria, o Estado e o capital. Como dizia Silvio Rodriguez: onde há homens não há fantasmas.
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*Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). 

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