quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Mike Brown, ou qualquer outro nome



Brecht advertia que num tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. 


Há que desconfiar do mais trivial e examinar sobretudo o que parece habitual. No dia 9 de Agosto foi assassinado um jovem afro-americano em Ferguson, Missouri, nos EUA. Não, não é déjà-vu: já aqui escrevi sobre esta notícia, pelo que irão os leitores perdoar-me tão incômoda iteração. Só o nome era diferente. Os meios de comunicação social da classe dominante não cometeram o mesmo erro que eu: perceberam que a história era a mesmíssima de sempre e já não interessava. O guião é sempre igual: Um jovem desarmado a caminho de casa. É interceptado pela polícia por razão nenhuma. Acaba trespassado de balas. Por ser negro. Ao contrário de Trayvon Martin, o nome de Mike Brown não mereceu manchetes nem parangonas, o público já estava habituado à história e, muito sinceramente, farto de a ouvir. Não há, com efeito, pior hábito do que nos habituarmos.


Esta crônica não é sobre estatísticas

Mas estranho seria se, à semelhança dos passavantes do deus-dinheiro, também nós comunistas aceitássemos não repetir as palavras de sempre, quando é sempre tão chocante a repetição dos velhos crimes. Michael Brown está morto. E continuará a morrer com outros nomes ainda mais anônimos enquanto não os soubermos a todos de cor. É por isso que o podem matar. Só desde Janeiro, mais de 400 homens negros foram mortos a tiro pela polícia norte-americana, uma estatística considerada normal no paradigma capitalista de democracia e liberdade. Mas Michael Brown não era uma estatística e esta crônica é sobre ele. Mike tinha 18 anos e na próxima semana entraria pela primeira vez na faculdade, um feito que a mãe, lavada em lágrimas, gritava aos polícias «Sabem como me foi difícil mantê-lo na escola até ao fim? Sabem quantos rapazes negros conseguem entrar na faculdade?». A terrível resposta é menos de 15%, mas não vamos falar sobre isso porque Michael Brown não era uma estatística. Nesse dia, Mike ia a caminho da casa da avó num subúrbio operário da cidade quando um carro de patrulha estacionou ao seu lado e o mandou parar, uma rotina em Ferguson, onde 87,5% de todas as pessoas que a polícia manda parar são negros. Mas como esta crônica não é sobre estatísticas, vamos seguir adiante. Agora sabemos que Michael não era suspeito de qualquer crime, mas mesmo assim os polícias quiseram revistá-lo: mais um número para os 92.3% de negros entre as pessoas revistadas pela polícia em Ferguson. Afinal se calhar há uma pequena parte de estatística sobre esta crônica. Segundo várias testemunhas, Michael recusou-se a ser interrogado e revistado. Nessa altura, um polícia tentou empurrá-lo para dentro do carro. Michael conseguiu libertar-se e correu. Então, o polícia disparou um tiro certeiro, que atingiu o jovem pelas costas. Tudo isto aconteceu pelas duas da tarde e as várias testemunhas são unânimes sobre o que se seguiu: quando recebeu o disparo, Michael levantou os braços para se render mas o polícia saiu do carro e, a uma distância de menos de dez metros, alvejou novamente Michael Brown. Mais sete vezes. Sobre a identidade do polícia assassino conhecemos apenas a cor da pele: era branco como 94% dos polícias de uma cidade 67% negra. Esta crônica não é sobre estatísticas, é sobre o Michael Brown, mas foram as estatísticas que o mataram.


À flor da pele

À hora do fecho desta edição, os comentadores dos grandes noticiários norte-americanos perguntavam em indignado coro porque é que os negros do Missouri estão a pegar fogo às ruas. Como até aqui ainda só pudemos repetir estatísticas que toda a gente já conhece, faremos o obséquio de lhes responder à pergunta. Ferguson arde porque o corpo de Michael ficou horas descoberto no meio da estrada e porque, quando uma vigília se juntou com fotografias e velas nas mãos, chegaram mais de duzentos polícias de choque, com cassetetes e caçadeiras nas mãos. St. Louis arde porque em 2014 crianças e adolescentes negros são assassinados pela polícia que lhes despreza a vida. O Missouri arde porque sempre que mais um jovem afro-americano é assassinado por este sistema desumano e estruturalmente racista, os media encarregam-se de criminalizar a imagem da vítima. Os EUA ardem porque, escreveu-o Martin Luther King Jr. semanas antes de ser ele próprio assassinado, «a revolta é a linguagem dos que não têm voz». Está embargada de lágrimas, de tanta injustiça e tão velha opressão.





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