quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Com 'imensa satisfação', Pelé serviu Médici no ano do tri

Encontro em Brasília: Pelé levanta a taça da Copa de 1970 ao lado de Médici
Encontro em Brasília: Pelé levanta a taça da Copa de 1970 ao lado de Médici

No período da repressão mais intensa do regime militar, o general Médici teve ao seu lado, como representante do governo, o maior embaixador que poderia ter: um entusiasmado Edson Arantes do Nascimento. Pelé.

Por Lúcio de Castro, em ESPN

Com "imensa satisfação", o maior jogador de todos os tempos voltou ao México quatro meses depois da conquista do tricampeonato com "a honrosa missão de representar o ilustre governo" na inauguração da Plaza Brasil, em Guadalajara, entre os dias 2 e 5 de novembro de 1970. É o que mostra uma carta do próprio Pelé ao "muito digno Presidente", até aqui inédita, parte do arquivo pessoal do presidente dos anos mais violentos da ditadura no país. Doado em 2004 ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) por Roberto Médici, filho do ditador, o "Acervo Médici" só foi aberto a pesquisadores agora. A peça é um relato do craque diretamente ao mandatário sobre as atividades realizadas naquele país por ocasião dos festejos. Pelo caráter oficial da viagem, Pelé recebeu às vésperas do embarque um passaporte diplomático com a distinção: "O titular viaja em missão oficial".

Pelé vai além da alegada satisfação em representar o governo Médici. Agradece a "honra em representar v.excia". E mesmo tendo vivido pouco tempo antes a emoção do tricampeonato e de sair definitivamente consagrado como o maior jogador de todos os tempos, afirma sobre a viagem em nome de Médici que "tal missão se constituiu numa das mais marcantes experiências de minha vida". No acervo está ainda o recibo pelo saque por parte de Pelé para as despesas de viagem, paga pelo Ministério das Relações Exteriores, em agência do Banco do Brasil, em Santos.

ESPN.com.br
A carta enviada por Pelé ao presidente Médici: cinco páginas em papel timbrado

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Trecho da carta em que Pelé fala em "representar esse ilustre governo" 

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Em outro trecho, os passaportes comprovam a missão oficial de Pelé no México

Naqueles dias em que Pelé representou o governo Médici, o Brasil seguia sob as amarras do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que dava amplos poderes ao presidente e recrudesceu a repressão, ampliando o regime de exceção, a tortura e os assassinatos em dependências do estado.

Em cinco folhas de papel timbrado com o nome de Edson Arantes do Nascimento e o apelido "Pelé", estão as palavras reverenciais do craque em relação ao presidente Médici e ao governo e o relato completo dos compromissos no México, que incluíram encontro com Luiz Echeverria Alvarez, que assumiria a presidência daquele país poucos dias depois, em 1º de dezembro e teria seu mandato marcado por um traço em comum com o governante brasileiro: a chamada "Guerra Sucia", onde se matou e torturou grande quantidade de oposicionistas. Contraditoriamente, recebeu exilados do mundo inteiro, inclusive do Brasil.

A comitiva brasileira foi representada por Pelé e sua então mulher, Rose, com quem foi casado entre 1966 e 1978, e do professor Júlio Mazzei, também acompanhado pela mulher. Além das entrevistas coletivas e das cerimônias oficiais representando o governo brasileiro, Pelé encontrou tempo para um momento de lazer no único dia livre, sendo recebido em jantar pelo cantor Lucho Gatica.

Para desempenhar a função de representante do governo Médici, Pelé e Rose receberam os passaportes diplomáticos nºs 021.621 e 021.622. Júlio Mazzei e sua mulher não foram agraciados com passaportes diplomáticos mas receberam passaportes especiais. Todos expedidos às vésperas da viagem, em 29 de outubro. Um funcionário do cerimonial do Ministério das Relações Exteriores foi até Santos entregar os passaportes, os formulários para saques da verba para a viagem e os detalhes da programação. Na inauguração da Plaza Brasil, Júlio Mazzei leu mensagem do governo em castelhano e Pelé discursou posteriormente.

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Recibo pelo saque por parte de Pelé para as despesas de viagem, pagas pelo Ministério das Relações Exteriores

Não foi a primeira demonstração de apreço de Pelé ao regime militar. Poucos dias antes dessa viagem ao México como representante do governo Médici, Pelé esteve numa dependência do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social, responsável pelos interrogatórios e ações de combate do regime militar) em São Paulo, e, no gabinete do diretor, se prontificou a tornar pública sua defesa do governo e a se pronunciar ser contrário ao "comunismo". A visita foi no dia 21 de outubro de 1970, como mostrou relatório do DOPS obtido pelo documentário"Memórias do Chumbo - O Futebol nos Tempos do Condor", exibido na ESPN Brasil evencedor do Prêmio Gabriel García Márquez de jornalismo.
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Pelé no DOPS: defesa do governo e contrário ao "comunismo"

A estreita relação entre Pelé e Médici transformou o jogador no principal agente de propaganda do governo Médici, posando seguidamente ao lado de vários ministros em diferentes campanhas, como Delfim Neto e Jarbas Passarinho. Tais laços valeram a Pelé a Ordem do Rio Branco, mesmo antes da Copa, em 20 de abril de 1970.

O "Acervo Médici" tem mais importantes revelações sobre as relações do regime militar com o futebol. É possível saber que Médici tinha mais olhos e informantes sobre os bastidores da seleção do que os que já estavam oficialmente na delegação para isso, como Roberto Ypiranga Guaranis, envolvido em casos de tortura na repressão e diretamente com o caso Parasar dois anos antes, chefe da segurança da delegação brasileira. Uma detalhada carta de Paulo Planet Buarque, membro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, conselheiro do São Paulo Futebol Clube, tendo chegado a ser presidente do conselho deliberativo e que já havia feito parte da delegação do Brasil em 1958, relata os bastidores da seleção, ambiente e analisa os jogadores. Em 1970, mesmo não estando oficialmente na delegação, escreveu periodicamente do México para Médici dando conta dos passos da seleção.

Em uma das cartas de Paulo Planet, com data de 21 de maio, antes da estreia brasileira, depois de abrir o texto com o cortejo inicial de praxe e de breve parecer político, onde deseja a vitória da Arena nas eleições para que Médici "possa tratar com exclusividade dos problemas administrativos", o amigo de Médici passa ao relato do ambiente da concentração da seleção brasileira e não se furta aos palpites sobre melhores formações e jogadores.

De acordo com o relato, "o ambiente entre os jogadores não poderia ser melhor". Afirma também existir "clima de euforia, de enorme desejo de ganhar". Ao falar sobre jogadores e eventual escalação para a estreia contra a Tchecoslováquia, que seria em duas semanas, o relator de Médici no México escreve frase dúbia sobre Tostão, permitindo que se alimente a famosa lenda de que o então craque cruzeirense não chegava a ser um xodó de Médici, lugar, de acordo com tal história, ocupado por Dario. "O quadro é aquele mesmo, com Tostão e tudo, embora Zagalo tenha informado que poderia aproveitar Dario ou Roberto, no decorrer da partida, dependendo do seu transcorrer", diz a Médici.

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Carta de Paulo Planet conta a Médici como é o ambiente da seleção brasileira

Nas linhas que seguem, transmite alguma preocupação com a zaga e deixa para Médici a ideia de sua formação ideal. "Everaldo no posto de Marco Antônio. Este menino apavorou-se quando fomos atacados. Enfim o técnico é o Zagalo e esperemos pela estreia. Logo darei mais notícias", conta a Médici. Não é possível saber se Médici considerou as ideias do seu correspondente Paulo Planet. Se transmitiu para Zagalo. Ou, neste caso, se Zagalo acatou. De fato, Marco Antônio acabou na reserva e Everaldo foi titular.

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Paulo Planet fala também de futebol e dá palpites sobre a seleção

A reportagem tentou contato com Paulo Planet Buarque mas não obteve resposta.

Pelé também foi procurado, mas, através de seu assessor, afirmou que não tem "nada a declarar".

O acervo "Médici" deve trazer ainda muitas revelações nos próximos tempos, espalhadas em 32 caixas de manuscritos e mais de 700 documentos intactos desde os anos de chumbo.

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