terça-feira, 13 de maio de 2014

A face real da Lei Áurea



Por Frei David Santos Ofm*


"A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, não passa de uma farsa". Em artigo inédito, o diretor-executivo da Educafro, Frei David Santos Ofm, exemplifica a promulgação de sete atos oficiais, envolvendo o destino da população negra, que vão desde a implantação da escravidão à reabertura do país às imigrações européias. 

Há 513 anos, o Brasil foi invadido por colonizadores europeus, com o objetivo de enriquecimento de setores da Europa. Para isso, seria necessário muito trabalho pesado. A solução encontrada foi a oficialização da escravidão no país como política econômica. Assim, as relações raciais e sociais foram contaminadas e, até hoje, estamos colhendo seus malefícios. 

Com o passar dos anos, uma série de atos oficiais foi sendo promulgada. Por trás da capa de inclusão e solidariedade para com a população negra escravizada estava o objetivo de beneficiar os senhores das riquezas, das terras e do direito de vida e morte sobre os afro-brasileiros. Mais do que isso, a grande intenção da sociedade branca era excluir, marginalizar, afastar o negro do direito à terra, à educação, aos cuidados na infância e na velhice. 

A Lei Áurea não é elencada entre os sete atos, porque podemos considerá-la nula. Na prática, quando foi assinada, só 5% do povo negro viviam sob regime de escravidão. Os demais tinham conseguido a libertação por meio dos próprios esforços. Podemos dizer, no máximo, que serviu como estratégia para dar à população negra respaldo de libertação jurídica. Não teve como preocupação fixar as comunidades negras na terra e garantir as terras nas quais já viviam, reconhecida pelas próprias leis dos dominantes. 
Após a promulgação da Lei Áurea surgiu um movimento exigindo que o governo indenizasse os senhores que haviam perdido seus escravos. Rui Barbosa reagiu dizendo: "Se alguém deve ser indenizado, indenizem os escravos!". Tinha plena consciência das injustiças cometidas pela sociedade contra o povo negro. Hoje, na Uerj, muitos brancos abriram processos na justiça exigindo indenização (outra vaga) por "ter perdido" sua vaga para um negro. Quase nada mudou: trata-se o negro, ainda hoje, como "um sem direitos". 


Jogo dos sete atos oficiais 

1º Ato 

O primeiro ato oficial foi a implantação da escravidão no Brasil. Através desta Bula (Dum Diversas) endereçada ao rei de Portugal, Afonso V, o papa Nicolau diz: "... nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades... e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes...". Em 8 de janeiro de 1554, estes poderes foram estendidos aos reis da Espanha. 

Apoiados nesse documento, os reis de Portugal e de Espanha promoveram uma devastação no continente africano, matando e escravizando milhões de habitantes. A África era o único continente do mundo que dominava a tecnologia do ferro. Com a invasão e o massacre promovido pelos povos europeus e, em seguida, a sua exploração colonizadora, o continente africano ficou com as mãos e os pés amarrados, permanecendo, assim, até hoje. 

O poder colonial usou a Igreja para impor seus interesses escravistas. Cada ser humano, até hoje, tem uma postura política, e o poder faz uso desta postura conforme seus interesses. Outras posições da Igreja contra a escravidão e a favor da população negra não foram seguidas. Exemplo: o papa Urbano VIII, no ano de 1639, no breve "Comissum Vobis", afirmava que ficava automaticamente expulso da Igreja o católico que escravizasse alguém. Fechavam-se os ouvidos para ordens papais que não interessassem ao poder colonial. 

O papa Leão XIII, em sua Encíclica "In Plurímis" dirigida aos bispos brasileiros em 5 de maio de 1888, transmite-nos a frieza, crueldade e o tamanho do massacre promovido pelos exploradores: "Do testemunho destes últimos resulta, mesmo que o número dos africanos assim vendidos cada ano, à maneira dos rebanhos de animais, não se eleva a menos de 400.000 (quatrocentos mil) dos quais cerca da metade, após serem cobertos de pancadas ao longo de um áspero caminho, sucumbem, miseravelmente, de tal sorte que os viajores que percorrem aquelas regiões podem, quão triste é dizê-lo, reconhecer o caminho que os destroços de ossadas marcaram". 

O relato de massacre ("cerca de metade, após serem cobertos de pancadas ao longo de um áspero caminho, sucumbem miseravelmente") que nos é transmitido neste documento papal deve falar fundo em nossa consciência histórica de defensores da justiça do Reino de Deus. Todo cristão que tem senso de justiça deve reler estes 500 anos de colonização a partir das vítimas desta catástrofe colonizadora. 


2º Ato 

"... pela legislação do império os negros não podiam freqüentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas." 
Os poderosos do Brasil sabiam que o acesso ao saber sempre foi uma alavanca de ascensão social, econômica e política de um povo. Com este decreto, lei complementar à Constituição de 1824, os racistas do Brasil encurralaram a população negra nos porões da sociedade. 

Juridicamente, o decreto agiu até 1889, com a Proclamação da República. Na prática, sua intenção funciona até hoje. Por exemplo: por que as escolas das periferias não têm, por parte do governo, o mesmo tratamento qualitativo das escolas das cidades? Como é que uma pessoa afro-descendente favelada terá motivação para estudar numa escola de péssima qualidade? 

3º Ato 

Quase todo o litoral brasileiro estava povoado por quilombos. Esses espaços eram formados por negros que, de diferentes formas, conquistavam a liberdade. Abrigavam, também, brancos pobres e indígenas que quisessem se somar ao projeto. Lá viviam numa organização social alternativa, tendo tudo em comum. 

As sobras de produção dos quilombos eram vendidas aos brancos das vilas. O sistema ? percebendo o crescimento do poder econômico do negro e que os brancos do interior estavam perdendo sua valiosa mão-de-obra de produção ? decretam a Lei da Terra (1850/nº 601): "... a partir desta nova lei, as terras só poderiam ser obtidas através de compra. Assim, com a dificuldade de obtenção de terras que seriam vendidas por preço muito alto, o trabalhador livre teria que permanecer nas fazendas, substituindo os escravos". 

Assim, o Exército brasileiro passa a ter como tarefa destruir os quilombos, as plantações e levar os negros de volta às fazendas dos brancos. O Exército exerceu esta tarefa até 25 de outubro de 1887, quando um setor solidário ao povo negro cria uma crise interna. O Império não mais admitirá que o Exército seja usado para perseguir os negros que derramaram seu sangue, defendendo o Brasil na guerra do Paraguai. 

A Lei de Terras não foi usada contra os imigrantes europeus. Segundo a coleção "Biblioteca do Exército", considerável parcela de imigrantes recebeu de graça grandes pedaços de terras, sementes e dinheiro. Isso prova que a lei de terras tinha um objetivo definido: tirar do negro a possibilidade de crescimento econômico por meio do trabalho em terras próprias e embranquecer o país com a maciça entrada de europeus. 
Na verdade, a ideologia do embranquecimento nunca parou de ter fortes adeptos no Brasil durante todos os tempos. Getúlio Vargas foi um partidário desta ideologia. O conteúdo do decreto nº 7.967, artigo 2º, de 18 de setembro de 1945, mostra isso: "atender-se-á, admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional". 


4º Ato 

A guerra do Paraguai (1864-1870) foi um dos instrumentos usados pelo poder para reduzir a população negra do Brasil. Foi difundido que todos os negros que fossem lutar na guerra, ao retornarem, receberiam a liberdade e os já livres receberiam terra. Além do mais, quando chegava a convocação para o filho do fazendeiro, ele o escondia e, em seu lugar, enviava de 5 a 10 negros. 

Durante a guerra, o Exército brasileiro colocou o nosso povo negro na frente de combate e foi grande o número dos mortos. Para se ter uma idéia, a população negra do Brasil era de 2 milhões 500 mil pessoas (45% do total da população brasileira). Depois da guerra, diminuiu para 1 milhão 500 mil pessoas (15% do total da população brasileira). 

Os poucos negros que sobraram, eram os que sabiam manejar as armas do Exército. Duque Caxias escreve para o imperador demonstrando temor sobre o fato: "... à sombra dessa guerra, nada pode livrar-nos de que aquela imensa escravatura do Brasil dê o grito de sua divina e humanamente legítima liberdade, e tenha lugar uma guerra interna como no Haiti, de negros contra brancos, que sempre tem ameaçado o Brasil e desaparece dele a escassíssima e diminuta parte branca que há!". 

5º Ato 

A Lei do Ventre Livre (1871) até hoje é ensinada nas escolas como uma benfeitoria: "Toda criança que nascesse a partir daquela data nasceria livre". Na prática, esta lei separava as crianças de seus pais, desestruturando a família negra. O governo abriu uma casa para acolher estas crianças. De cada 100 que lá entravam, 80 morriam antes de completar 1 ano de idade. 

Foi inventada com o objetivo de tirar a obrigação dos senhores de fazendas de criar nossas crianças negras, pois, já com 12 anos de idade, poderiam sair para os quilombos à procura da liberdade negada nas senzalas. Com a determinação, surgiram os primeiros menores abandonados do Brasil. Em quase todas as igrejas do país, os padres tocaram os sinos aplaudindo a assinatura desta lei. 

6º Ato 

A Lei do Sexagenário (1885) também é ensinada nas escolas como sendo um prêmio do "coração bom" do senhor para com o escravo que muito trabalhou. "Todo escravo que atingisse os 60 anos de idade ficaria automaticamente livre". Na verdade, essa foi a forma mais eficiente encontrada pelos opressores para jogar na rua os velhos doentes e impossibilitados de continuarem gerando riquezas, surgindo, assim, os primeiros mendigos nas ruas do Brasil. 

7º Ato 

Com a subida ao poder do Partido Republicano, a industrialização do país passou a ser ponto-chave. A indústria precisava, fundamentalmente, de dois produtos: matéria-prima e mão-de-obra. Encontrar matéria-prima no Brasil não era problema. Quanto à mão-de-obra, o povo negro estava aí, disponível. 

A mão-de-obra passou a ser problema quando o governo descobriu que, se o negro ocupasse as vagas nas indústrias, iria surgir uma classe média negra poderosa, colocando em risco o processo de embranquecimento do país. A solução foi decretar, no dia 28 de junho de 1890, a reabertura do país às imigrações européias e definir que negros e asiáticos só poderiam entrar no país com autorização do Congresso. Esta nova remessa de europeus vai ocupar os trabalhos nas nascentes indústrias paulistas. Assim, os europeus pobres são usados, mais uma vez, para marginalizar o povo negro. 

A Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), assumindo a reflexão destes 7 atos oficiais, está aprofundando com alunos, professores e coordenadores esta realidade e desafiando a população brasileira a encontrar caminhos para o enfrentamento do problema, buscando pistas de soluções eficazes. Essa é apenas uma pequena amostragem dos 503 anos de opressão e massacres ao qual o povo afro-descendente foi submetido em terras brasileiras. E convidamos você, leitor, juntamente com o grupo ou entidade na qual participa, a ajudar na recuperação da consciência histórica e de direitos do povo afro-descendente. 

* Diretor-executivo da Educafro - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes 


Fonte: Adital

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