Para João Pedro Stedile, a juventude mobilizada, por sua origem de
classe, não tem consciência de que está participando de uma luta
ideológica. Assim, estão sendo disputados pelas ideias da direita e da
esquerda
Por Nilton Viana
E diz também “Precisamos tomar a iniciativa de pautar o debate na
sociedade e exigir a aprovação do projeto de redução da jornada de
trabalho para 40 horas; exigir que a prioridade de investimentos
públicos seja em saúde, educação, reforma agrária.”
“É hora do governo aliar-se ao povo ou pagará a fatura no
futuro.” Essa é uma das avaliações de João Pedro Stedile, da coordenação
nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sobre as
recentes mobilizações em todo o país. Segundo ele, há uma crise urbana
instalada nas cidades brasileiras, provocada por essa etapa do
capitalismo financeiro.
“As pessoas estão vivendo um inferno nas grandes cidades,
perdendo três, quatro horas por dia no trânsito, quando poderiam estar
com a família, estudando ou tendo atividades culturais”, afirma. Para o
dirigente do MST, a redução da tarifa interessava muito a todo o povo e
esse foi o acerto do Movimento Passe livre, que soube convocar
mobilizações em nome dos interesses do povo.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Stedile fala sobre o
caráter dessas mobilizações, e faz um chamamento: devemos ter
consciência da natureza dessas manifestações e irmos todos para a rua
disputar corações e mentes para politizar essa juventude que não tem
experiência da luta de classes. “A juventude está de saco cheio dessa
forma de fazer política burguesa, mercantil”, constata.
E faz uma alerta: o mais grave foi que os partidos da esquerda
institucional, todos eles, se moldaram a esses métodos. Envelheceram e
se burocratizaram. As forças populares e os partidos de esquerda
precisam colocar todas as suas energias para ir para a rua, pois está
ocorrendo, em cada cidade, em cada manifestação, uma disputa ideológica
permanente da luta dos interesses de classes. “Precisamos explicar para o
povo quem são os principais inimigos do povo”.
Brasil de Fato – Como você analisa as recentes manifestações
que vêm sacudindo o Brasil nas últimas semanas? Qual é base econômica
para elas terem acontecido?
João Pedro Stedile – Há muitas avaliações de porque
estarem ocorrendo estas manifestações. Me somo à analise da professora
Erminia Maricato, que é nossa maior especialista em temas urbanos e já
atuou no Ministério das Cidades na gestão Olivio Dutra.
Ela defende a tese de que há uma crise urbana instalada nas cidades
brasileiras provocada por essa etapa do capitalismo financeiro. Houve
uma enorme especulação imobiliária que elevou os preços dos aluguéis e
dos terrenos em 150% nos últimos três anos.
O capital financiou sem nenhum controle governamental a venda de
automóveis, para enviar dinheiro pro exterior, e transformou nosso
trânsito um caos. E nos últimos dez anos não houve investimento em
transporte público. O programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, empurrou os pobres para as periferias, sem condições de infraestrutura.
Tudo isso gerou uma crise estrutural em que as pessoas estão vivendo
num inferno nas grandes cidades, perdendo três, quatro horas por dia no
trânsito, quando poderiam estar com a família, estudando ou tendo
atividades culturais.
Somado a isso, a péssima qualidade dos serviços públicos em especial
na saúde e mesmo na educação, desde a escola fundamental, ensino médio,
em que os estudantes saem sem saber fazer uma redação. E o ensino
superior virou lojas de vendas de diplomas a prestações, onde estão 70%
dos estudantes universitários.
E do ponto de vista político, por que aconteceu?
João Pedro Stedile – Os quinze anos de
neoliberalismo e mais os últimos dez anos de um governo de composição de
classes transformou a forma de fazer política refém apenas dos
interesses do capital. Os partidos ficaram velhos em suas práticas e se
transformaram em meras siglas que aglutinam, em sua maioria,
oportunistas para ascender a cargos públicos ou disputar recursos
públicos para seus interesses.
Toda juventude nascida depois das diretas já, não teve oportunidade
de participar da política. Hoje, para disputar qualquer cargo de
vereador, por exemplo, o sujeito precisa ter mais de 1 milhão de reais.
Deputado custa ao redor de 10 milhões de reais. Os capitalistas pagam, e
depois os políticos obedecem. A juventude está de saco cheio dessa
forma de fazer política burguesa, mercantil.
Mas o mais grave foi que os partidos da esquerda institucional, todos
eles, se moldaram a esses métodos. Envelheceram e se burocratizaram. E,
portanto, gerou na juventude uma ojeriza a forma dos partidos atuarem. E
eles têm razão. A juventude não é apolítica, ao contrário, tanto é que
levou a política às ruas, mesmo sem ter consciência do seu significado.
Estão dizendo que não aguentam mais assistir na televisão essas
práticas políticas, que seqüestraram o voto das pessoas, baseadas na
mentira e na manipulação. E os partidos de esquerda precisam reapreender
que seu papel é organizar a luta social e politizar a classe
trabalhadora. Senão cairão na vala comum da história.
E porque as manifestações eclodiram somente agora?
João Pedro Stedile – Provavelmente tenha sido a soma
de diversos fatores de caráter da psicologia de massas, mais do que
alguma decisão política planejada. Somou-se todo o clima que comentei,
mais as denúncias de superfaturamento das obras dos estádios, que é um
acinte ao povo. Vejam alguns episódios. A Rede Globo recebeu do governo
do estado do Rio e da prefeitura, 20 milhões de reais de dinheiro
público para organizar o showzinho de apenas duas horas, no sorteio dos
jogos da Copa das Confederações.
O estádio de Brasília custou 1,4 bilhões de reais e não tem ônibus na
cidade! A ditadura explícita e as maracutais que a FIFA/CBF impuseram e
os governos se submeteram. A reinauguração do Maracanã foi um tapa no
povo brasileiro. As fotos eram claras: no maior templo do futebol
mundial não havia nenhum negro ou mestiço!
E aí o aumento das tarifas de ônibus foi apenas a faísca para
ascender o sentimento generalizado de revolta, de indignação. A gasolina
para a faísca veio do governo Geraldo Alckmin, que protegido pela mídia
que ele financia e acostumado a bater no povo impunemente, como fez no
Pinheirinho, jogou sua polícia para a barbárie. Aí todo mundo reagiu.
Ainda bem que a juventude acordou. E nisso houve o mérito do
Movimento Passe Livre, que soube capitalizar essa insatisfação popular e
organizou os protestos na hora certa.
Por que a classe trabalhadora ainda não foi à rua?
João Pedro Stedile – É verdade, a classe
trabalhadora ainda não foi para a rua. Quem está na rua são os filhos da
classe média, da classe média baixa, e também alguns jovens do que o
André Singer chamaria de sub-proletariado, que estudam e trabalham no
setor de serviços, que melhoraram as condições de consumo, mas querem
ser ouvidos. Esses últimos apareceram mais em outras capitais e nas
periferias.
A redução da tarifa interessava muito a todo povo e esse foi o
acerto do MPL. Soube convocar mobilizações em nome dos interesses do
povo. E o povo apoiou as manifestações e isso está expresso nos índices
de popularidade dos jovens, sobretudo quando foram reprimidos.
A classe trabalhadora demora a se mover, mas quando se move, afeta
diretamente ao capital. Coisa que ainda não começou a acontecer. Acho
que as organizações que fazem a mediação com a classe trabalhadora ainda
não compreenderam o momento e estão um pouco tímidas. Mas acho que
enquanto classe, ela também está disposta a lutar. Veja que o número de
greves por melhorias salariais já recuperou os padrões da década de 80.
Acho que é apenas uma questão de tempo e se as mediações acertarem
nas bandeiras que possam motivar a classe a se mexer. Nos últimos dias,
já se percebe que em algumas cidades menores, e nas periferias das
grandes cidades, já começam a ter manifestações com bandeiras de
reivindicações bem localizadas. E isso é muito importante.
E vocês do MST e camponeses também não se mexeram ainda.
João Pedro Stedile – É verdade. Nas capitais onde
temos assentamentos e agricultores familiares mais próximos já estamos
participando. E inclusive sou testemunha de que fomos muito bem
recebidos com nossa bandeira vermelha, com nossa reivindicação de
Reforma Agrária e alimentos saudáveis e baratos para todo povo.
Acho que nas próximas semanas poderá haver uma adesão maior,
inclusive realizando manifestações dos camponeses nas rodovias e
municípios do interior. Na nossa militância está todo mundo doido para
entrar na briga e se mobilizar. Espero que também se mexam logo.
Na sua opinião, qual é a origem da violência que tem acontecido em algumas manifestações?
João Pedro Stedile – Primeiro vamos relativizar. A
burguesia através de suas televisões tem usado a tática de assustar o
povo colocando apenas a propaganda dos baderneiros e quebra-quebra. São
minoritários e insignificantes diante das milhares de pessoas que se
mobilizaram.
Para a direita interessa colocar no imaginário da população que isso é
apenas bagunça, e no final se tiver caos, colocar a culpa no governo e
exigir a presença das forças armadas. Espero que o governo não cometa
essa besteira de chamar a guarda nacional e as forças armadas para
reprimir as manifestações. É tudo o que a direita sonha!
Quem está provocando as cenas de violência é a forma de intervenção
da Policia Militar. A PM foi preparada, desde a ditadura militar, para
tratar o povo sempre como inimigo. E nos estados governados pelos
tucanos (SP, RJ e MG), ainda tem a promessa de impunidade.
Há grupos direitistas organizados com orientação de fazer provocações
e saques. Em São Paulo atuaram grupos fascistas e leões de chácaras
contratados. No Rio de Janeiro atuaram as milícias organizadas que
protegem seus políticos conservadores. E claro, há também um substrato
de lumpesinato que aparece em qualquer mobilização popular, seja nos
estádios, carnaval, até em festa de igreja tentando tirar seus
proveitos.
Há então uma luta de classes nas ruas ou é apenas a juventude manifestando sua indignação?
João Pedro Stedile – É claro que há uma luta de
classes na rua. Embora ainda concentrada na disputa ideológica. E o que é
mais grave, a própria juventude mobilizada, por sua origem de classe,
não tem consciência de que está participando de uma luta ideológica.
Vejam, eles estão fazendo política da melhor forma possível, nas
ruas. E ai escrevem nos cartazes: somos contra os partidos e a política?
Por isso tem sido tão difusa as mensagens nos cartazes. Está ocorrendo
em cada cidade, em cada manifestação, uma disputa ideológica permanente
da luta dos interesses de classes. Os jovens estão sendo disputados
pelas idéias da direita e pela esquerda. Pelos capitalistas e pela
classe trabalhadora.
Por outro lado, são evidentes os sinais da direita muito bem
articulada, e de seus serviços de inteligência, que usam a internet, se
escondem atrás das mascaras e procuram criar ondas de boatos e opiniões
pela internet. De repente uma mensagem estranha alcança milhares de
mensagens. E aí se passa a difundir o resultado como se ela fosse a
expressão da maioria.
Esses mecanismos de manipulação foram usados pela CIA e o
departamento de estado estadunidense na primavera árabe, na tentativa de
desestabilização da Venezuela, na guerra da Síria. E é claro que eles
estão operando aqui também para alcançar os seus objetivos.
E quais são os objetivos da direita e suas propostas?
João Pedro Stedile – A classe dominante, os
capitalistas, os interesses do império estadunidense e seus porta-vozes
ideológicos que aparecem na televisão todos os dias, têm um grande
objetivo: desgastar ao máximo o governo Dilma, enfraquecer as formas
organizativas da classe trabalhadora, derrotar qualquer propostas de
mudanças estruturais na sociedade brasileira e ganhar as eleições de
2014, para recompor uma hegemonia total no comando do estado brasileiro,
que agora está em disputa.
Para alcançar esses objetivos eles estão ainda tateando, alternando
suas táticas. As vezes provocam a violência, para desfocar os objetivos
dos jovens. As vezes colocam nos cartazes dos jovens a sua mensagem. Por
exemplo, a manifestação do sábado em São Paulo, embora pequena, foi
totalmente manipulada por setores direitistas que pautaram apenas a luta
contra a PEC 37, com cartazes estranhamente iguais e palavras de ordem
iguais.
Certamente a maioria dos jovens nem sabe do que se trata. E é um tema
secundário para o povo, mas a direita está tentando levantar as
bandeiras da moralidade, como fez a UDN (União Democrática Nacional) em
tempos passados. Isso que já estão fazendo no Congresso, logo logo, vão
levar às ruas.
Tenho visto nas redes sociais controladas pela direita que suas
bandeiras, além da PEC 37, são a saída do Renan do Senado, CPI e
transparência dos gastos da Copa, declarar a corrupção crime hediondo e
fim do foro especial para os políticos. Já os grupos mais fascistas
ensaiam “Fora Dilma” e abaixo-assinados pelo impeachment.
Felizmente essas bandeiras não tem nada ver com as condições de vida
das massas, ainda que elas possam ser manipuladas pela mídia. E
objetivamente podem ser um tiro no pé. Afinal, é a burguesia brasileira,
seus empresários e políticos que são os maiores corruptos e
corruptores. Quem se apropriou dos gastos exagerados da Copa? A Rede
Globo e as empreiteiras!
Quais os desafios que estão colocados para a classe trabalhadora e as organizações populares e partidos de esquerda?
João Pedro Stedile – Os desafios são muitos.
Primeiro devemos ter consciência da natureza dessas manifestações e
irmos todos para a rua, disputar corações e mentes, para politizar essa
juventude que não tem experiência da luta de classes. Segundo, a classe
trabalhadora precisa se mover. Ir para a rua, manifestar-se nas
fábricas, campos e construções, como diria Geraldo Vandré. Levantar suas
demandas para resolver os problemas concretos da classe, do ponto de
vista econômico e político.
Terceiro, precisamos explicar para o povo quem são seus principais
inimigos. E agora são os bancos, as empresas transnacionais que tomaram
conta de nossa economia, os latifundiários do agronegócio, e os
especuladores.
Precisamos tomar a iniciativa de pautar o debate na sociedade e
exigir a aprovação do projeto de redução da jornada de trabalho para 40
horas; exigir que a prioridade de investimentos públicos seja em saúde,
educação, reforma agrária.
Mas para isso o governo precisa cortar juros e deslocar os recursos
do superávit primário, aqueles 200 bilhões de reais que todo ano vão
para apenas 20 mil ricos, rentistas, credores de uma dívida interna que
nunca fizemos, deslocar para investimentos produtivos e sociais.
É isso que a luta de classes coloca para o governo Dilma: os recursos
públicos irão para a burguesia rentista ou para resolver os problemas
do povo?
Aprovar em regime de urgência para que vigore nas próximas eleições
uma reforma política de fôlego, que no mínimo institua o financiamento
público exclusivo da campanha. Direito a revogação de mandatos e
plebiscitos populares auto-convocados.
Precisamos de uma reforma tributária que volte a cobrar ICMS (Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) das exportações primárias,
penalize a riqueza dos ricos e amenize os impostos dos pobres, que são
os que mais pagam.
Precisamos que o governo suspenda os leilões do petróleo e todas as
concessões privatizantes de minérios e outras áreas públicas. De nada
adianta aplicar todo royalties do petróleo em educação, se os royalties
representarão apenas 8% da renda petroleira, e os outros 92% irão para
as empresas transnacionais que vão ficar com o petróleo nos leilões!
Uma reforma urbana estrutural, que volte a priorizar o transporte
público, de qualidade e com tarifa zero. Já está provado que não é caro e
nem difícil instituir transporte gratuito para as massas das capitais.
Controlar a especulação imobiliária.
E finalmente, precisamos aproveitar e aprovar o projeto da
Conferência Nacional de Comunicação, amplamente representativa, de
democratização dos meios de comunicação. Para acabar com o monopólio da
Globo e para que o povo e suas organizações populares tenham amplo
acesso a se comunicar, criar seus próprios meios de comunicação, com
recursos públicos. Ouvi de diversos movimentos da juventude que estão
articulando as marchas, que talvez essa seja a única bandeira que
unifica a todos: Abaixo ao monopólio da Globo!
Mas para que essas bandeiras tenham ressonância na sociedade e
pressionem o governo e os políticos, somente acontecerá se a classe
trabalhadora se mover.
O que o governo deveria fazer agora?
João Pedro Stedile – Espero que o governo tenha a
sensibilidade e a inteligência de aproveitar esse apoio, esse clamor que
vem das ruas, que é apenas uma síntese de uma consciência difusa na
sociedade, que é hora de mudar. E mudar a favor do povo.
E para isso o governo precisa enfrentar a classe dominante, em todos
os aspectos. Enfrentar a burguesia rentista, deslocando os pagamentos de
juros para investimentos em áreas que resolvam os problemas do povo.
Promover logo as reformas políticas, tributárias. Encaminhar a aprovação
do projeto de democratização dos meios de comunicação. Criar mecanismos
para investimento pesados em transporte público, que encaminhem para a
tarifa zero. Acelerar a Reforma Agrária e um plano de produção de
alimentos sadios para o mercado interno.
Garantir logo a aplicação de 10% do PIB em recursos públicos para a
educação em todos os níveis, desde as cirandas infantis nas grandes
cidades, ensino fundamental de qualidade, até a universalização do
acesso dos jovens à universidade pública.
Sem isso, haverá uma decepção, e o governo entregará para a direita a
iniciativa das bandeiras, que levarão a novas manifestações visando
desgastar o governo até as eleições de 2014. É hora do governo aliar-se
ao povo, ou pagará a fatura no futuro.
E que perspectivas essas mobilizações podem levar para o país nos próximos meses?
João Pedro Stedile – Tudo ainda é uma incógnita.
Porque os jovens e as massas estão em disputa. Por isso que as forças
populares e os partidos de esquerda precisam colocar todas suas energias
para ir à rua. Manifestar-se, colocar as bandeiras de luta de reformas
que interessam ao povo, porque a direita vai fazer a mesma coisa e
colocar as suas bandeiras conservadoras, atrasadas, de criminalização e
estigmatização das idéias de mudanças sociais.
Estamos em plena batalha ideológica que ninguém sabe ainda qual será o
resultado. Em cada cidade, cada manifestação, precisamos disputar
corações e mentes. E quem não entrar, ficará de fora da História.
Fonte: Brasil de Fato
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