A Batalha de Mans, 1793, retratada por Jean Sorieul em 1852 |
Por R. Mineiro
Antes de iniciar sua expedição pelo sertão baiano, como correspondente especial do jornal Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha acompanhava o desenrolar dos acontecimentos da Guerra de Canudos. Leitor atento, conhecedor arguto de inúmeros ramos da ciência, recebia as informações detalhadas dos grandes jornais do país. De acordo com o que lia, formou sólida convicção de que Antônio Conselheiro era um fanático religioso, que arregimentara as ignorantes massas sertanejas com o objetivo de restaurar a monarquia no Brasil. O fato do Exército Republicano ter sido derrotado em duas expedições contra os revoltosos era mais uma comprovação que Conselheiro e seus sequazes estariam recebendo apoio estrangeiro de Portugal e, possivelmente, da Inglaterra.
A caminho de Canudos, Euclides da Cunha, primeiramente, travará conhecimento com o espetacular e assombroso ambiente sertanejo. Em um artigo intitulado "A nossa Vendeia", descreve em detalhes o terreno e as formações geológicas, embora ainda não conhecesse a genealogia do povo do sertão. Nas dificuldades do caminho, encontra explicações para os atrasos das forças republicanas: não poderiam ter avançado mais rápido. Por fim compara a missão heroica do exército brasileiro, com a clássica revolução burguesa francesa. Canudos seria, portanto, "a nossa Vendeia", cidade francesa onde a população local com o apoio da Igreja Católica e da aristocracia prepara uma reação contra a revolução de 1789. Vendeia fora esmagada, Canudos deveria ter o mesmo destino. Assim como na França, seria na derrota de Canudos que a República se consolidaria no Brasil.
Então Euclides chega à frente de batalha e aí vai conhecer o povo sertanejo. Viverá uma grande transformação: do periodista ao genial autor de Os Sertões, uma das maiores obras do pensamento brasileiro. Ao contrário do que acreditara, não existia uma guerra de Canudos, não havia dois exércitos em confronto. Havia sim, a sedição operada pelas principais forças do Estado brasileiro a uma nova vila de sertanejos, fundada por eles mesmos e batizada de Arraial do Belo Monte. No comando deste cerco se encontravam generais experientes em genocídios, que haviam servido ao exército monarquista na famigerada "guerra do Paraguai", e que agora, em nome da República, atacavam sertanejos que viviam livremente. Não havia forças monarquistas em Canudos, havia um sentimento místico baseado no sebastianismo, que cria no reaparecimento do rei Sebastião, de Portugal, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir contra os mouros no Norte da África. O ódio à república era expressão do ódio a toda legislação que oprime os pobres, ao sentimento rebelde do sertanejo de voltar-se contra tudo que é oficial, inclusive a religião.
Se o autor de Os Sertões viajasse hoje à Faixa de Gaza teria uma impressão semelhante. Talvez, influenciado pelas notícias do monopólio de imprensa, sairia do Brasil com a certeza de que faria a cobertura de uma guerra entre o oriente e o ocidente, entre a democracia moderna israelense e o atraso obscurantista palestino. Possivelmente, avaliaria que o governo do Hamas, eleito democraticamente em 2007, era um grupo extremista religioso, fanático, composto de suicidas dispostos a se explodir em troca da promessa da vida no paraíso acompanhado de 70 virgens. A caminho de Gaza, talvez descrevesse a paisagem desértica com os mesmos detalhes apenas captados por um profundo conhecedor de geologia. A caminho de Gaza, talvez profetizasse que esta seria a Vendeia mundial, que, derrotando-a, finalmente a república e a democracia poderiam se impor diante do atraso e da barbárie medieval dos árabes, palestinos e muçulmanos.
Mas certamente, ao chegar na frente de batalha, sofreria a mesma transformação. Além do terreno, descobriria os habitantes daquela terra inóspita. Talvez, assim como em Canudos, aonde se surpreendeu com a quase inexistência de negros no sertão, cairia para ele uma série de visões pré-concebidas sobre a população local. Veria que nem todos árabes são mulçumanos, mas se admiraria como quase todos são palestinos. Descobriria que fora enganado, que não havia guerra entre dois Estados, mas o genocídio de uma potência militar instalada em 1947, contra uma população enraizada a milhares de anos naquela região. Veria que o atraso e fanatismo não estão do lado dos rebeldes, mas sim do Estado religioso sionista, que não concordou com a solução binacional e se nega, desde então, a aceitar a criação do Estado palestino. Entenderia a mística religiosa dos palestinos como sua crença sincera, mas que a razão de sua luta é a mesma dos defensores de Canudos: a defesa de sua terra.
Em Canudos, Euclides descobriu que a nação brasileira não estava representada pelo exército republicano, descobriu que a causa do ataque a Canudos não era a defesa da República, mas a defesa dos interesses dos latifundiários prejudicados pela fuga da força de trabalho camponesa. Em Gaza, descobriria que Israel sionista não representa a democracia, representa sim os interesses do imperialismo norte-americano no controle da região mais rica em petróleo no mundo, descobriria que Israel sionista não representa o progresso, pois se alia com as monarquias mais arcaicas do Oriente Médio e com regimes fascistas como era o de Mubarak no Egito.
Em Canudos, Euclides afirmou que "o sertanejo é a rocha viva da nacionalidade" brasileira e que o Arraial de Belo Monte não se rendeu, pois seus últimos defensores morreram combatendo. Em Gaza veria que a Palestina é a rocha viva da luta dos povos oprimidos de todo o mundo contra a dominação imperialista, pois seu heroico povo prefere morrer defendendo seu sagrado território do que viver de joelhos.
Fonte: A Nova Democracia
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