segunda-feira, 3 de setembro de 2012

“Eu vi os Racionais sacudindo a quebrada” Por Jean Mello


Crônica de quem viveu, de dentro, as festas, desabafos e sede de justiça despertadas na periferia pelos manos que rimavam como ninguém
Por Jean Mello
“Saiu o novo trabalho dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno”, disse Esquerdinha, meu melhor amigo na época, quando me viu voltando da escola em 1997. Com uma fita K7 na mão, nem me esperou ir pra casa e guardar o material: logo ligou o som de sua casa, no último volume.
Capítulo quatro, versículo três, logo depois da fala introdutória de Mano Brown, intitulada com um nome bastante sugestivo, Gênesis. “Deus fez o mar, as águas, as crianças e o amor. O homem? Me deu a favela, o crack, a ‘trairagem’, as armas, as bebidas e as putas”. Mas, além desse som, a que mais bateu forte em minha consciência foi Fórmula Mágica da Paz.
Piramos ainda mais um ano depois quando soubemos que os ingressos para o show desse CD-Manifesto estava à venda próximo ao terminal São Mateus. Quando chegamos para comprar, uma fila gigantesca nos esperava. A juventude negra presente em massa. Uma galera cantando as letras mais fortes. Todos queriam garantir, com quase um mês de antecedência, um bom lugar na festa mais aclamada da região. Se bem que comprar antes só garantia à presença. Ficaria na frente quem chegasse primeiro no dia do show. 
Uma banca foi ao show… Cantamos todos os sons até a rouquidão chegar. Rapaziada reunida… Teve uma treta ou outra, mas esse não foi o destaque. Desabafo, gente falando contra o sistema, ainda que muitos nem entendessem o que cantavam, inclusive eu. Palco apertado para o número de gente que colou com os quatro pretos periféricos que rimavam como ninguém. Manos e minas, lado a lado, em um só coração, quando Ice Blue, pediu pra todos dizer:
“Faz frio em São Paulo, pra mim tá sempre bom… Eu ‘tô’ na rua de ‘bombeta’ e moletom… Dim, dim, dom… Rap é o som que emana do opala marrom… E ai chama o Guilherme chama o fanho… Chama o Dinho e o Di? Marquinhos, chama o Éder ‘vamo’ ai… Se os outros mano vem… Pela ordem tudo bem, melhor. Quem é quem no bilhar no dominó…”  (Capítulo 4 Versículo 3, Racionais MC´S)
Empolgação que marcou cada pessoa que ali estava. Até hoje penso que naquele momento estava participando de parte importante da história. Tanto é que esses dias, conversava com uma amiga educadora, Bergman, historiadora negra, que afirmou: “esse grupo fez história e formou várias escolas, um monte de meninos e meninas, ainda hoje, buscam inspiração neles”. Estava cercada de razão e ainda digo mais: os caras sempre compraram umas tretas, segurando o rojão, em várias fitas.
Antes de contar uma história pessoal coloquei um vídeo bastante atual que coloca em pauta não apenas uma das produções artísticas dos Racionais, mas, além de tudo, a junção histórica de pessoas diversas lutaram e lutam por justiça social.
A primeira vez que ouvi falar de Carlos Marighella foi quando comprei o famoso livro de Frei Betto, Batismo de Sangue. Resultado, devorei, grifei, recomendei aos montes… Alguns poucos amigos aceitaram minha sugestão… Depois de um tempo, fuçando uns vídeos no You Tube, encontrei o filme, inspirado no livro, na íntegra.
Mais materiais borbulham por aí, felizmente também na telinha do seu computador. Assim, quem sabe, pessoas ousadas utilizam como referência para diminuir o desânimo em algum coração que não deixa brotar a semente revolucionária.
E sem querer pagar pau pra ninguém, é o que sinto quando ouço qualquer som dos Racionais, em qualquer época. Tudo culpa de meu pai, Ronaldo Tadeu, que desde cedo me ensinou a ter bom faro para a riqueza cultural que o Brasil possui. Porém, não qualquer coisa, não qualquer discurso, o joio e o trigo muito se parecem, e não estou disposto nem a fingir que me engano. Desde um pouco antes de 1997, quando meu velho chegou em casa com um vinil de O Raio X do Brasil.
Brincando, ele tocava Fim de Semana no Parque, fazendo uma alusão aos parques que ele levava eu e meu irmão, três anos mais novo que eu, na zona sul de São Paulo. Principalmente no singelo Nabuco, ao lado da avenida Cupecê. Nem precisava de muito, uma balança, um gramado firmeza pra bater uma bola, era suficiente. Os adultos andam de mãos dadas com a ingratidão. Crianças que não estão entrelaçadas com o consumismo, não querem nada além de brincar até cansar. Dormir para acordar cedo, assim brincar até sentir vontade de dormir novamente. Ainda bem que faço parte da geração que rezava para domingo não chover.
E ainda hoje meninos brincam de ser Mano Brown, Edy Rock, Emicida, MV Bill, Ice Blue, KL Jay, etc., não apenas em serem os jogadores de futebol glorificados pela mídia. Mesmo assim, nada os impedirá de ir de frente ao drama de todos que têm a pele escura.
Sentado em frente ao computador, vendo vários vídeos do mesmo grupo que escutei fita K7 e disco bolachão. Será que estou ficando velho? Também… Só que mais que isso, percebo que os caras evoluíram demais, lutando, dando o sangue pela parada. Parece até que foi ontem que assisti eles pela primeira vez na televisão.
Tendência atual sem perder seu lado mais contestador. Lançando sons na internet… Quando os caras estavam no processo de gravação da música Marighella, muita gente já estava de antena em pé, inclusive eu. Dou uma dica para você, qualquer coisa que for fazer, faça com suas armas mais verdadeiras. As ferramentas dos caras soam com honestidade. Atual e com densidade em mandar uma mensagem histórica em poucos minutos. Veja o que a galera está curtinho atualmente…

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