O hip-hop amarga o êxito de Azalea e o fracasso do musical sobre Tupac Shakur.
por Francisco Quinteiro Pires
Em Fancy, Iggy Azalea imita o modo de falar de uma afro-americana, apesar de ser australiana e branca. Azalea atingiu o estrelato com Fancy, um rap, eleito pela revista Billboard a música do verão de 2014 nos Estados Unidos. E causou polêmica. Ela, dizem os críticos, seria o exemplo mais recente de apropriação cultural pelos brancos de uma arte que os negros inventaram. O anúncio de Fancy como o hit da estação mais quente se deu em paralelo aos protestos em Ferguson, no Missouri, onde um policial branco matou um afro-americano desarmado em 9 de agosto. “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não”, declarou o poeta B. Easy no Twitter. Easy fez coro com um estado de espírito comum nas mídias sociais quando se referiu ao fato de artistas pop, como Azalea, Miley Cyrus, Ariana Grande, Katy Perry, Justin Timberlake, Justin Bieber e Robin Thicke, usarem elementos do hip-hop a fim de angariar popularidade.
Para os admiradores, Azalea é uma evolução. “Os negros precisam aceitar que o hip-hop é uma cultura contagiosa”, afirmou Questlove, baterista do The Roots, em entrevista àTime. “Fancy é, de todas as músicas que ouvi, a mais capaz de mudar o jogo, pois nos força a compreender que o gênero abriu as suas asas.” Questlove lembrou com essa afirmação como o rap é indissociável das experiências de raça e classe no meio urbano. Apesar de a eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA, em 2008, ter estimulado a previsão de “uma era multicultural” ou “pós-racial”, o entendimento do país sob uma perspectiva que prioriza a cor de pele é um dos hábitos mais recalcitrantes da sociedade norte-americana.
Esse fato veio mais uma vez à tona na última premiação do Grammy, em janeiro deste ano. Ao contrário das expectativas dos puristas, Good Kid, M.A.A.D City, de Kendrick Lamar, não triunfou na categoria de melhor álbum de rap. O prêmio foi para The Heist, do duo Macklemore e Ryan Lewis, dois rappers brancos de Seattle. Em seguida à premiação, Macklemore divulgou no Instagram uma mensagem de texto enviada por ele para Lamar, um afro-americano de Los Angeles. Lamentou ter sido o escolhido. “Você foi roubado. Eu queria que você tivesse ganhado. Você deveria”, escreveu.
Macklemore pediu desculpas pois tinha em mente as origens do hip-hop e uma noção de autenticidade. Quando surgiu no Sul do Bronx, na Nova York dos anos 1970, o gênero representava a diversão de afro-americanos, latino-americanos e imigrantes. Moradores pobres de uma região com alto desemprego, chamada de “necrópole” por Jeff Chang, autor de Can’t Stop, Won’t Stop – A history of the hip-hop generation (Picador), aqueles jovens criaram suas próprias festas ao samplear músicas de diferentes artistas. A primeira fase do rap entre 1978 e 1984 tratou sobretudo de dança e prazer, embora Grandmaster Flash and The Furious Five tenha falado de exclusão em The Message (1982), um dos primeiros raps “conscientes”. A fase seguinte (1985-1992), classificada de “idade de ouro” por Adam Bradley e Andrew DuBois, autores de The Anthology of Rap, representou a consolidação de letras líricas e ideológicas com o Public Enemy, LL Cool J, Run-DMC e Ice-T.
Em The Anthology of Rap (Yale University Press), considerado um clássico ao discutir a evolução do gênero e reunir cerca de 300 composições, Bradley e DuBois comparam o estilo musical à poesia lírica. Eles veem nessa arte uma contestação aoestablishment. Uma das suas características essenciais, defendem, é o fato de ser uma cultura em fluxo constante. “O hip-hop foi criado pelos negros norte-americanos, mas não pertence a eles”, diz Bradley, professor de Literatura Afro-Americana da Universidade do Colorado, em entrevista a CartaCapital. “A cultura rejeita aqueles que se proclamam os seus donos. Por isso, o rap tornou-se um idioma global cujas formas mudam sob a perspectiva de artistas de diversas cores e segundo as regiões onde se manifesta.”
Apesar das boas intenções, quem critica a troca cultural livre ameaça a criatividade dos artistas afro-americanos, de acordo com Bradley. “Se os críticos censuram Iggy Azalea, Miley Cyrus ou Robin Thicke porque esses fazem empréstimos de elementos da música dos negros, eles limitam a mesma fonte da genialidade negra: o impulso de usar o passado para inventar coisas novas e o diálogo que força a superação de barreiras raciais”, afirma. “Proibir Thicke de se apropriar de Marvin Gaye, ainda que ele o faça de maneira medíocre, é o mesmo que impedir retroativamente Afrika Bambaataa, um dos pioneiros do hip-hop, de usar com brilhantismo a arte do Kraftwerk (grupo de música eletrônica alemão).” A Billboard elegeu Blurred Lines, de Thicke, a música do verão de 2013.
Historicamente, Bradley lembra, diferentes gêneros musicais devem o seu surgimento à assimilação pelos negros de elementos de uma cultura associada à população branca. O jazz e o rock’n’roll representam os exemplos mais eloquentes. Ainda assim, para angariar uma aceitação maior, geralmente as obras precisam ser dissociadas dos afro-americanos. “Certos músicos negros foram passados para trás na hora de usufruir a criação de um novo estilo? Claro. Quando Elvis Presley cantou Hound Dog, ele não tomou para si o dinheiro e a audiência que deveriam ser da cantora original da música, a Big Mama Thornton. Ele criou um novo mercado para o público de adolescentes brancos.” O racismo, Bradley sugere, explica parte do sucesso de Presley. “Muitos consumidores brancos preferiram e ainda preferem consumir a sua música negra sem realmente ouvir a voz dos negros.”
Essa “preferência” pode ter contribuído para o fracasso de Holler If Ya Hear Me, musical da Broadway inspirado nas composições do rapper afro-americano Tupac Amaru Shakur, cujo assassinato em 1996 permanece sem solução. Embora dirigido por Kenny Leon, ganhador de um Prêmio Tony, o espetáculo não atraiu público. Saiu de cartaz seis semanas após estrear no fim de junho. O produtor Eric Gold apostou no “apelo universal” das letras de Shakur sobre a experiência dos negros na América. Jon Caramanica, crítico de música pop do The New York Times, lembrou que essa crença na universalidade da música do compositor nova-iorquino seria vista como “radical” por muita gente. “O público da Broadway é muito velho e branco para permitir o florescimento de uma história com raízes na música negra contemporânea? Ou, paradoxalmente, Shakur era uma figura histórica muito abstrata para os jovens que o espetáculo esperava atrair?”, perguntou Caramanica. Gold temia que, se Holler If Ya Hear Me não fosse bem-sucedido, dificilmente haveria espaço para um musical de rap na Broadway.
“O hip-hop existe hoje por causa e apesar da sua popularidade”, afirma Bradley. Ao se transformar no centro da indústria musical norte-americana, o rap chegou à saturação. Agora, o gênero experimenta o que Bradley chama de “fase pós-pop”. “O rap nunca vai ter o mesmo sucesso que gozou na década do Novo Milênio (2000-2010). Como qualquer outra forma de arte duradoura, ele tenta se expandir para atender às expectativas do presente.” Segundo o professor da Universidade do Colorado, a assimilação pelos brancos de uma música criada por negros pobres não significa a superação de diferenças entre raças e classes. Ela oferece outro tipo de mensagem, relacionada a uma utopia. “O rap pode servir como inspiração a quem deseja produzir uma arte inclusiva e experimental.” Essa nova abordagem seria um tanto diferente daquela do hip-hop dos anos 2000 e da primeira metade desta década, em que predominam nomes como Jay-Z, Beyoncé, Rihanna e Kanye West, considerados “imensas empresas culturais”.
Fonte: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário