quinta-feira, 21 de novembro de 2013

As consequências do declínio americano


Quando enfraquecimento da potência hegemônica torna-se nítido, abre-se período de caos geopolítico. Surge, além das oportunidades, risco de loucuras destrutivas
Por Immanuel Wallersten | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Jacob JordaensO Rei Feijão
Tenho sustentado há muito que o declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica começou por volta de 1970; e que este processo, no início lento, precipitou-se durante a presidência de George W. Bush. Comecei a escrever sobre o tema em 1980. À época, a reação a tal argumento, em todos os campos políticos, foi rejeitá-lo como absurdo. Nos anos 1990, acreditava-se em todas as faixas do espectro político que, ao contrário, os EUA tinham alcançado o ápice de seu domínio unipolar.
No entanto, depois do estouro da bolha financeira, em 2008, a opinião de políticos, teóricos e do público em geral começou a mudar. Hoje, uma ampla percentagem das pessoas (embora não todas) aceita a realidade de ao menos algum declínio relativo do poder, prestígio e influência norte-americanos. Nos EUA, este fato é aceito com muita relutância. Políticos e teóricos rivalizam-se em apresentar fórmulas sobre como o declínio ainda pode ser revertido. Acredito que ele é irreversível.
A questão real, a meu ver, é sobre as consequências do declínio. A primeira é uma clara redução da capacidade dos EUA para controlar a situação mundial, e em particular a perda de confiança, por parte dos que eram os principais aliados de Washington. No último mês, devido às evidências apresentadas por Edward Snowden, soube-se que a Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA) espionou diretamente os principais líderes da Alemanha, França, México e Brasil, entre outros (assim como, é claro, inúmeros cidadãos destes países).
topo-posts-margem
Estou certo de que os EUA envolveram-se em atividades similares em 1950. Mas em 1950, nenhum destes países teria ousado transformar sua ira em escândalo público, ou em reivindicar que os EUA interrompessem a ação. Se o fazem hoje, é porque agora os EUA precisam deles mais do que eles próprios precisam dos EUA. Os líderes atuais sabem que os EUA não tem outra escolha exceto comprometer-se – como fez o presidente Obama – a cessar estas práticas (mesmo que os EUA não pretendam cumprir a promessa…). E os líderes destes quatro países sabem, todos, que sua posição interna será fortalecida, e não enfraquecida, por apontarem publicamente para o nariz de Washington.
Até o momento, enquanto a mídia debate o declínio norte-americano, a maior parte das atenções voltam-se para a China, como um potencial novo hegemon. Também aqui, há falta de percepção. A China é, sem dúvida, um país cuja potência geopolítica está em ascensão. Mas chegar ao papel de potência hegemônica é um processo longo e árduo. Em condições normais, qualquer país precisaria de ao menos outro meio século para tornar-se capaz de exercer poder hegemônico. É um longo intervalo, durante o qual muito pode acontecer.
Num primeiro momento, não há sucessor imediato para o papel. O que costuma acontecer, quando o enfraquecimento da antiga potência hegemônica torna-se nítido para outros países, é que a relativa ordem do sistema-mundo é substituída por uma luta caótica entre múltiplos polos de poder, nenhum dos quais pode controlar a situação. Os EUA ainda são um gigante, mas um gigante com pés de barro. Ainda têm a força militar mais poderosa, mas não são muito capazes de usá-la em seu proveito. Tentaram minimizar seus riscos concentrando-se em guerras de drones. O ex-secretário de Defesa Robert Gates acada de denunciar que esta visão é totalmente irrealista, do ponto de vista militar. Ele lembra que as guerras só são vencidas com tropas no chão, e o presidente dos EUA está agora sob enorme pressão, vinda de políticos dos dois partidos e do sentimento popular, para não usar tropas no chão.
O problema, para todo mundo, numa situação de caos geopolítico, é o alto nível de ansiedade que ela produz e os riscos que oferece para que prevaleçam loucuras destrutivas. Os EUA, por exemplo, podem não ser mais capazes de vencer guerras, mas podem causar enorme dano para si mesmos e para outros por meio de ações imprudentes. Todas as suas tentativas de agir no Oriente Médio são derrotadas. No presente, nenhum dos atores na região (sim, eu disse “nenhum”) aposta mais no taco dos EUA. Isso inclui Egito, Israel, Turquia, Síria, Arábia Saudita, Iraque, Irã e Paquistão (para não falar da Rússia e China). Os dilemas políticos resultantes para os Estados Unidos foram tratados em grande detalhe no New York Times. A conclusão do debate interno a respeito, no governo Obama, foi um compromisso muito ambíguo, que leva o presidente a parecer vacilante, ao invés de forte.
Por fim, podemos estar certos de duas consequências reais, na próxima década. A primeira é o fim do dólar como moeda de último recurso. Quando isso acontecer, os EUA terão perdido uma grande proteção para seu orçamento e para o custo de suas operações econômicas. A segunda é o declínio – provavelmente sério – no padrão de vida relativo dos cidadãos e residentes nos EUA. As consequências políticas deste último movimento são difíceis de prever em detalhe, mas não serão irrelevantes.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“O racismo fica escancarado ao olhar mais superficial”, entrevista Abdias Nascimento

Ao longo de seus 96 anos, Abdias esteve presente e participou de inúmeras passagens importantes das lutas negras do século 20, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na África. Sua vida é ela mesma a própria história da luta negra.


A luta pelo reconhecimento dos direitos, a dignidade e a autonomia da população negra tem heróis de muitos países, entre África e Américas. É uma luta tão antiga quanto a diáspora negra produzida pelo vergonhoso comércio de africanos que vigorou no Atlântico por quase quatro séculos. É por se tratar de uma luta de tantos povos, lugares, tempos e pessoas que impressiona tanto conhecer a vida do ativista brasileiro Abdias do Nascimento.

Ao longo de seus 96 anos, Abdias esteve presente em e participou de inúmeras passagens importantes das lutas negras do século 20, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na África. Nasceu em 1914, numa época em que ainda eram extremamente recentes as lembranças da escravidão no país, abolida em 1888. Nos anos 1930, engajou-se numa iniciativa pioneira, a Frente Negra Brasileira, na luta contra a segregação racial nos estabelecimentos comerciais de São Paulo. Por sua militância política, foi preso pela ditadura Vargas.

Nos anos de 1940, viajou pela América Latina como artista – é escritor, ator e artista plástico – com a Santa Hermandad Orquídea, e fundou o Teatro Experimental do Negro, entidade que organizou a Convenção Nacional do Negro em 1945-46. A iniciativa foi responsável pela formulação de diversas sugestões de políticas públicas para a população negra durante a Constituinte de 1946. Abdias ainda organizou o 1° Congresso do Negro Brasileiro em 1950.


Militante do Partido Trabalhista Brasileiro, foi perseguido pela ditadura militar, instalada pelo golpe de 1964. Exilado nos Estados Unidos, travou contato com o movimento negro no país, no auge da efervescência do Black Power. Nos anos 1970, participou do movimento pan-africanista e foi professor universitário na Nigéria. Nesse período, atuou em países como Jamaica, Tanzânia, Colômbia e Panamá, mantendo contato com lideranças como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Léon Damas, Richard Wright, Cheikh Anta Diop, Léopold Sédar Senghor e Alioune Diop.

Ajudou a organizar o Movimento Negro Unifi cado (MNU), fundado em 1978, e, na redemocratização dos anos 1980, voltou ao país, foi eleito deputado federal e, depois, chegou a senador pelo PDT, sempre defendendo projetos em benefício da população negra. Junto com a esposa, Elisa Larkin Nascimento, fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), atualmente presidido por ela.

Na entrevista a seguir, respondida por e-mail por sua esposa, Elisa, e subscrita por ele, Abdias dá um recado à nova geração de jovens negros militantes: “O conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se preparar para, então, se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas.”

Qual a importância de se criar o Dia Nacional da Consciência Negra? Por que o senhor lutou para que a data fosse instituída no dia 20 de novembro, dia da morte do líder Zumbi dos Palmares, e não no dia 13 de maio, dia da promulgação da Lei Áurea, data antes escolhida pelo governo?

Abdias do Nascimento – A demanda de se instituir o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20 de novembro surgiu na década dos 1970 a partir do Rio Grande do Sul, onde o saudoso poeta Oliveira Silveira militava no Grupo Negro Palmares. O movimento negro como um todo, organizado em entidades em vários estados do Brasil naquela época, a encampou. Eu já costumava dizer que a Lei Áurea não passava de uma mentira cívica. Sua comemoração todo ano fazia parte do coro de autoelogio que a elite escravocrata fazia em louvor a si mesma no intuito de convencer a si mesma e à população negra desse esbulho conhecido como “democracia racial”. Por isso o movimento negro caracterizou o dia 13 de maio como dia de reflexão sobre a realidade do racismo no Brasil.

O dia 20 de novembro simboliza a resistência dos africanos contra a escravatura. Essa resistência assume diversas expressões táticas e perpassa todo o período colonial. Durante esse período, em todo o território nacional, havia quilombos e outras formas de resistência que, em seu conjunto, desestabilizaram a economia mercantil e levaram à abolição da escravatura. Esse é o verdadeiro sentido da luta abolicionista, cujos protagonistas eram os próprios negros. Eles se aliavam a outras forças, mas, muitas vezes, foram traídos por seus aliados. Mais tarde, entretanto, a visão eurocêntrica da história ergueria os aliados como supostos atores e heróis da abolição. A comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro tem como objetivo corrigir esse registro histórico e reafirmar a necessidade de continuarmos, nós, os negros, protagonizando a luta contra o racismo que ainda impera neste país.

O Memorial Zumbi, movimento nacional que agregava entidades do movimento negro de todo o país em torno da demanda da recuperação das terras da República dos Palmares, ergueu essa bandeira na década dos 1980. Tive a honra de participar desse movimento. O Memorial Zumbi instituiu a tradição de se realizarem peregrinações cívicas anuais às terras de Palmares na serra da Barriga, estado de Alagoas. Conseguimos, em 1989, a desapropriação dessas terras. O objetivo era instalar ali um polo de cultura de libertação do negro. Hoje, existe um monumento e assistimos a cerimônias cívicas no dia 20 de novembro em que participam altas autoridades do governo federal e estadual. Mas para nós, negros, o monumento lembra a necessidade de continuarmos lutando pelo fim da discriminação racial.



O senhor esteve no exílio, de 1968 a 1981, por conta da enorme repercussão que teve a sua “carta-declaração manifesto” na qual denunciava a farsa do paraíso racial que se dizia viver na América Latina. Como o senhor avalia a questão da “democracia racial” no Brasil de hoje? Onde é possível dizer que a crítica a ela colheu frutos?

O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil, mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e superficial. O olhar aprofundado só confirma a primeira impressão: os negros estão mesmo nos patamares inferiores, ocupam a base da pirâmide social e lá sofrem discriminação e rebaixamento de sua autoestima em razão da cor. No topo da riqueza, eles são rechaçados com uma violência que faz doer. Quando não discrimina o negro, a elite dominante o festeja com um paternalismo hipócrita ao passo que apropria e ganha lucros sobre suas criações culturais sem respeitar ou remunerar com dignidade a sua produção. Os estudos aprofundados dos órgãos oficiais e acadêmicos de pesquisa demonstram desigualdades raciais persistentes que acompanham o desenvolvimento econômico ao longo do século 20 e início do 21 com uma fidelidade incrível: à medida que cresce a renda, a educação, o acesso aos bens de consumo, enfim, à medida que aumentam os benefícios econômicos da sociedade em desenvolvimento, a desigualdade racial continua firme.

Pensando o caso de Cuba, em específico, como o senhor considera o fato de que um governo dito socialista, num país de população negra tão expressiva, aparentemente não mostra avanços na participação política dos negros?

A ideologia racial cubana é irmã gêmea da “democracia racial” brasileira. O ideal da “Cor Cubana” acompanha a constante referência ilusória à suposta cordialidade latina. A história recente envolve os ideais da revolução, o engajamento militar na África durante as guerras de libertação nacional e a atuação internacional de médicos em países como o Haiti. A dinâmica entre o sonho e a realidade do socialismo dá um tom distinto ao questionamento do sistema no que diz respeito à questão racial. Entretanto, não há como negar certos fatos:

(a) Os negros não estão presentes no poder político do regime cubano em número proporcional à sua participação na população.

(b) As desigualdades raciais perduraram ao longo do processo de mudança social implantado após 1959 e continuam sendo constatadas em pesquisas recentes.

(c) Há uma crescente discussão da questão racial em Cuba conduzindo ao reconhecimento de que a revolução não resolveu essa questão.

(d) Hoje, a demanda por uma abertura democrática do regime não é o discurso só de uma minoria elitista, branca, incrustada em Miami e aliada aos interesses do bloqueio. Há uma oposição de origem humilde, composta em parte por negros e mestiços que apontam processos de exclusão e de desigualdades raciais. Não podemos mais rechaçar essa oposição como um bando de criminosos cuja traição se basearia em mentiras fabricadas pela direita fascistoide.

Durante o período em que o senhor esteve exilado, pôde estabelecer o contato entre o movimento social negro norte-americano e o da América Latina, até então, quase desconhecido daquele. Esteve com movimentos inspiradores, como os Panteras Negras. Atualmente, muitos desses lutadores ainda pagam o preço da sua resistência, vários estão presos desde os anos 1970, condenados à pena de morte ou à prisão perpétua nos EUA. Como pode ser possível que se fale tão pouco desses presos políticos?

Como sabemos, a mídia é dominada pelo poder econômico e não lhe interessa divulgar esses casos. Mas não é só o poder econômico, também a ideologia pode contribuir para isso. Não é fato novo para mim. Na década de 1940, quando o Brasil passava por um processo de redemocratização depois do regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, eu ajudei a fundar o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

Aguinaldo Camargo e Sebastião Rodrigues Alves participaram, além de outras lideranças, e nós nos reuníamos na sede da União Nacional de Estudantes, a UNE, uma organização de esquerda. O Comitê era aberto e definiu como prioridade imediata a luta pela libertação dos presos políticos do regime. Entretanto, quando essa libertação foi conquistada e nós negros queríamos tratar das questões específicas relacionadas à discriminação racial, nossos companheiros brancos de esquerda não aceitaram. Taxaram-nos de racistas e exigiram que fizéssemos autocrítica. Não entramos nessa conversa, evidentemente. O Comitê morreu de morte matada. Depois, na época em que eu voltava do exílio no final dos anos de 1970, havia um movimento pela anistia ampla e irrestrita. Mas a liderança esquerdista desse movimento não reconhecia a prisão dos negros por discriminação racial como uma forma de perseguição política. Morriam trabalhadores negros nas prisões, como continua acontecendo hoje. Nós negros consideramos isso uma questão política. Mas, para as forças de esquerda, presos políticos seriam apenas os fi lhos de classe média e alta, quase todos brancos, que roubavam bancos, jogavam bombas ou sequestravam embaixadores. Esses, em muitos casos, efetivamente haviam cometido atos de violência, enquanto não raro negros são presos e torturados sem terem cometido crime algum.


Qual a importância que o senhor credita ao hip hop, no Brasil, para o movimento negro e para a população negra em geral? É um movimento herdeiro das lutas que pioneiros como o senhor travaram?

Considero o hip hop um movimento muito importante, sobretudo no aspecto da autoestima, pois as letras de muitas músicas e a atuação social de muitos de seus integrantes ajudam os jovens negros e as jovens negras a elevar o conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade. Certamente, o hip hop cuida de muitas questões que são as versões atualizadas dos problemas que o movimento negro tem enfrentado desde sempre, e o hip hop oferece para a juventude uma referência, uma esperança e uma visão diferente daquela que a sociedade dominante e os meios de comunicação cultivam e que a juventude reconhece como mentirosa e interesseira. Entretanto, creio que seus protagonistas tenham pouco acesso aos referenciais históricos das lutas anteriores, e, nesse sentido, sua condição de herdeiros seja um pouco simbólica. Por exemplo, me parece que eles conhecem mais a história do movimento negro nos Estados Unidos, o discurso de Malcolm X e Martin Luther King, e os referenciais do reggae da Jamaica do que os fatos e os discursos do movimento negro no Brasil dos séculos 20 e 21. Pode ser que eu esteja equivocado, espero que sim!

Depois de séculos de lutas, hoje vemos uma juventude negra que está conseguindo chegar às universidades, ter mais oportunidades econômicas, formando uma elite intelectual negra. Como o senhor compararia a atual situação da juventude negra com a da época do senhor, com a da Frente Negra? Quais os conselhos que daria a essa juventude?

As entidades negras atualmente promovem muitas iniciativas análogas às da Frente Negra. O Estatuto de Igualdade Racial e todos os outros dispositivos legais, programas governamentais e instituições ou órgãos de governo dedicados às políticas públicas de igualdade racial, por exemplo, são conquistas concretas, frutos da atuação política do movimento negro. Nenhum deles foi uma bênção ou dádiva dos governantes ou políticos, muito ao contrário. Se há uma crítica ao Estatuto, é porque, em razão da ferrenha oposição contra ele nos setores conservadores que dominam a política brasileira, o processo de negociação de sua aprovação no Senado impôs uma série de aparentes retrocessos na letra da lei em relação a programas de governo já implantados como resultado da atuação do movimento negro. Mas foi o movimento negro que conseguiu implantar esses programas, então ele está longe de se limitar a atacar o governo. Foi ele que inseriu na Constituição de 1988, por exemplo, o direito das comunidades quilombos à titulação de suas terras. O conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se preparar para, então, se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas. Cada um tem seu talento e sua área de interesse. O importante é se colocar a serviço do avanço e dedicar-lhe as suas energias.


Muito se fala do movimento negro no âmbito urbano, mas o Brasil assistiu, nos últimos anos, ao crescimento do movimento negro rural, particularmente o movimento quilombola, para o qual também o senhor teve especial importância na garantia do direito fundiário das comunidades quilombos. Qual a importância da questão da terra para o movimento negro, hoje?

Como fruto da mobilização política do movimento negro, a Constituição de 1988 estabeleceu o direito à titulação das terras das comunidades chamadas “remanescentes de quilombos”. Em 1989, como fruto do trabalho do Memorial Zumbi e do movimento negro como um todo, criou-se a Fundação Cultural Palmares, que seria responsável pelo processo de titulação. Entretanto, a Fundação é um órgão do Ministério da Cultura que não dispõe dos recursos humanos ou financeiros para executar o trabalho de titulação. Essa tarefa passou, então, para o Ministério da Reforma Agrária. Entretanto, a Fundação Palmares dá parecer sobre a questão fundamental da condição quilombola, que determina o direito à titulação. O grande argumento para negar o direito de uma comunidade é alegar que ela não tem ou não provou que tem antecedentes históricos que a qualifiquem como remanescente de quilombo. O processo tem sido muito lento. Alguns anos atrás, a Fundação Palmares publicou um levantamento em que identificou a existência de mais de três mil comunidades quilombos em todo o país, ressalvando que certamente não conseguiu realizar um levantamento exaustivo ou definitivo. A questão da titulação esbarra, evidentemente, em poderosos interesses contrariados que, no contexto rural, ainda exercem a violência como forma de se impor.

Vale observar, também, que é negra a grande maioria dos sem-terras hoje organizados e conduzindo uma luta que tem sido definida como um dos mais importantes fenômenos sociais e políticos do século 21. A importância da terra está fundamentalmente ligada ao fato de que as cidades estão inchadas, inviabilizadas, e não dão conta de oferecer condições de vida dignas à população que já as habita, tendo grande parte dela migrado do interior. A economia rural baseada na agroindústria não tem condições de sustentar a população rural, porque não oferece trabalho em condições dignas. A produção agrícola baseada em unidades pequenas, familiares ou comunitárias, é a única solução para o campo e ela precisa, hoje, de subsídios e políticas de Estado para se viabilizar. As comunidades quilombos fazem parte integral dessa solução e precisam de subsídios específicos e de políticas específicas para o seu desenvolvimento como unidades comunitárias rurais.

Na América Latina em geral, a questão étnica tem ganhado uma importância fundamental nas lutas políticas dos povos, em países como Bolívia, Equador, México – com diferentes tons, mas sempre realçando o fator étnico sobre o fator classe. No Brasil, o fator étnico de maior potencial é justamente o negro. Qual o papel que o fator étnico ocupa na luta política nacional? Será que ele poderá ocupar papel de semelhante preponderância na luta política?

Não recorro ao eufemismo “questão étnica” porque creio que seu uso reforça o equívoco da suposta acepção biológica do termo “raça”. Esta é uma pista falsa cuja manipulação abastece de grande e valiosa munição aqueles que procuram desmoralizar e deslegitimar a nossa luta. A categoria social de “raça” é uma realidade socialmente construída que independe das justifi cações genéticas e biológicas. Estas constituem apenas um pequeno episódio no milenar processo histórico de construção das categorias sociais de “raça”, da subordinação e desumanização ideológica de grupos raciais e da discriminação racial institucionalizada em sociedades capitalistas plurirraciais modernas e contemporâneas. Os grupos discriminados nessas sociedades não correspondem a nenhuma etnia, portanto, é conceitualmente confuso e cientificamente incorreto falar de “discriminação étnica” quando o alvo desse tratamento vem a ser a população negra ou indígena, por exemplo. Um negro no Brasil, na Venezuela ou na Costa Rica não é identifi cado como ibo, acã, zulu, hutu ou ioruba, mas como negro ou afrodescendente. Os indígenas nas Américas não são discriminados na sua condição de maias, incas, quéchuas, aimaras, cheyenne, iroquois, sioux, tupis ou guaranis, mas como indígenas.

Adotar o eufemismo “questão étnica” significa, a meu ver, uma tática defensiva que instaura a confusão conceitual entre nós e entrega os pontos aos adversários que alegam que nós, ao defendermos os nossos direitos, estamos sendo racistas. Ao aceitar a defi nição deles, identificando a categoria social de raça com o critério genético biológico, nós nos submetemos ao discurso hegemônico que desmoraliza nossa própria luta e deslegitima nossa própria experiência histórica de opressão e discriminação. Dito isso, creio que fica evidente que considero o “fator racial” como uma questão eminentemente política e não a separo de uma suposta “outra” luta política “maior”. Considero a luta por justiça social e pela dignidade dos povos como parte integral da luta por nações mais justas e seguras, por uma comunidade internacional mais justa e coesa, e por um futuro de vida humana capaz de sustentar com dignidade nossa população, nossos ambientes e nosso planeta. 

(Publicado em Desinformémonos. Colaboraram Rafael Gomes e Gabriela Moncau /Ilustrações Emory Douglas )


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Eduardo Galeano - Sangue Latino: "A utopia está lá no horizonte"


"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar." (Eduardo Galeano)


Vídeo completo da entrevista:


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Seis razões pelas quais privatizações geralmente terminam em desastres


por Paul Buchheit

Sistemas privados estão focados em gerar lucros para as poucas pessoas bem posicionadas. Sistemas públicos, quando abastecidos suficientemente por impostos, funcionam para todo mundo de uma forma igualitária.

Em seguida, as seis razões específicas que mostram porquê privatizações simplesmente não funcionam.

1. A motivação por lucro move a maioria do dinheiro para o topo

O administrador do sistema de saúde federal ganhou como salário 170 mil dólares em 2010. O presidente do MD Anderson Cancer Center, no Texas, recebeu dez vezes mais em 2012. Stephen J. Hemsley, o CEO da United Health Group (Grupo Único de Saúde), ganhou 300 vezes mais em um ano, 48 milhões de dólares, a maior parte por causa das ações da empresa.

Em parte por causa dessas desigualdades, nosso sistema de saúde é o mais caro do mundo desenvolvido. O preço de cirurgias comuns é de três a dez vezes mais caro nos Estados Unidos do que na Grã Bretanha, Canadá, França ou Alemanha.

O sistema de saúde público, por outro lado, que não tem a motivação por lucros e a competitividade de cobrança, é administrado de forma eficiente, para todos os americanos elegíveis. De acordo com o Conselho do Seguro de Saúde Acessível e outras fontes, os custos administrativos médicos são muito maiores nas empresas privadas do que no sistema de saúde público.

Mas os privatistas continuam invadindo o setor público. Nosso governo reembolsa os CEOs de empresas privadas em uma taxa aproximadamente duas vezes maior do que o que pagamos para o presidente. No geral, pagamos aos chefes de corporações mais de 7 bilhões de dólares por ano.

Muitos americanos não percebem que a privatização da segurança e saúde social transferiria muito do nosso dinheiro para mais outro grupo de CEOs.

2. Privatizações atendem pessoas com dinheiro, o setor público atende todo mundo

Um bom exemplo é o U.S.Postal Service (USPS, Serviço Postal dos EUA em tradução livre), que é legalmente obrigada a atender toda casa do país. O Fedex e o United Parcel Service (UPS, Serviço Único de Encomendas em tradução livre) não conseguem atender lugares deficitários. Além de que a USPS é muito mais barata para pacotes pequenos. Uma comparação online revelou o seguinte por uma entrega de dois dias de pacotes com tamanhos similares para outro estado:

- USPS – 2 dias US$ 5,68 (46 centavos sem a restrição de dois dias)

- FedEx – 2 dias US$ 19,28

- UPS – 2 dias US$ 24,09

USPS é tão barata, de fato, que a Fedex atualmente usa os Correios dos Estados Unidos para aproximadamente 30% de suas encomendas por terra.

Outro exemplo é a educação. Um relatório recente do ProPublica descobriu que nos últimos vinte anos colégios estaduais de quatro anos têm atendido uma parte cada vez menor de estudantes de baixa renda. No nível K-12, estratégias empresariais de redução de custo são uma das consequências da privatização da educação dos nossos filhos. Escolas privilegiadas são menos propensas a aceitar alunos com deficiência. Professores dessas escolas têm menos anos de experiência e uma taxa de rotatividade mais elevada. Os outros funcionários possuem planos insuficientes de aposentadoria e seguro de saúde, e são muito mal pagos.

Finalmente, no que diz a respeito ao sistema de saúde, 43% dos americanos doentes deixou de ir ao médico ou comprar medicamentos em 2011 por causa dos preços excessivos. Estima-se que mais de 40 mil americanos morrem todos os anos porque não podem pagar seguro de saúde.

3. Privatizações tornam necessidades básicas humanas em produtos

Grandes empresas gostariam de privatizar nossa água. Um economista do Citigroup se orgulhou: "Água, como uma série de ativos, será, em minha opinião, a mercadoria física mais importante, superando o petróleo, o cobre, as commodities agrícolas e os metais preciosos."

Eles querem nossa terra. Tentativas de privatização foram feitas na administração de Reagan nos anos 1980 e pelo Congresso, controlado pelos republicanos, nos anos 1990. Em 2006, o presidente Bush propôs leiloar 300 mil hectares de floresta nacional em 41 estados. O caminho da prosperidade de Paul Ryan foi baseado em parte na proposta do republicano Jason Chaffetz': "Eliminação do excesso de terras federais, Lei de 2011", que iria leiloar milhões de hectares de terra no oeste da América.

Eles querem nossas cidades. Um especialista em privatizações disse ao Detroit Free Pressque o dinheiro de verdade está em ações urbanas, como uma "fonte de receita". Então, o recurso mais valioso de Detroit era a Water & Sewerage Department (DWSD, Departamento de Água e Esgoto), que garante 350 milhões de dólares aos bancos, mantendo a demanda. Bloomberg estima um preço de quase meio bilhão de dólares, em uma cidade na qual os donos de casa mal conseguem pagar pelos serviços de água.

E eles querem nossos corpos. Um quinto dos genomas humanos é propriedade privada através de patentes. Amostras de influenza e hepatite foram reivindicadas por laboratórios de universidades e corporações, e por causa disso os pesquisadores não podem usar formas patenteadas de vida para ajudar nas pesquisas sobre o câncer.

4. Sistema público fomenta uma classe média forte

Parte da mitologia do mercado livre é que os funcionários públicos e os trabalhadores sindicalizados são aproveitadores, desfrutando de benefícios que são negados aos trabalhadores do setor privado. Mas os fatos mostram que funcionários do governo e trabalhadores sindicalizados não são pagos em excesso. De acordo com o Census Bureau, funcionários estaduais e municipais compõem 14,5% da classe trabalhadora dos Estados Unidos e recebem 14,3% da remuneração total. Membros de sindicatos representam aproximadamente 12% da classe trabalhadora, mas seus salários correspondem a apenas 10% da renda bruta, conforme relatado pelo IRS.

O trabalhador do setor privado recebe aproximadamente o mesmo salário que o funcionário estadual ou municipal. Mas o salário médio para trabalhadores dos Estados Unidos, dos quais 83% estão no setor privado, foi 18 mil dólares menor em 2009, com 26.261 dólares. A desigualdade é muito mais difundida no setor privado.

5. O setor privado tem incentivos para falhar ou absolutamente incentivo nenhum

A predisposição para falhar mais óbvia é na indústria de prisões privadas. Alguém pode pensar que essa indústria possui o objetivo digno de reabilitar e esvaziar gradualmente as cadeias. Mas o negócio é muito bom. Com cada presidiário gerando até 40 mil dólares por ano em receitas, o número de presos em instalações privadas aumentou mais de 1.600% de 1990 a 2009, de 7 mil para mais de 125 mil. A Corrections Corporation of America (Corporação de Correções da América) se ofereceu recentemente para administrar o sistema de prisões em todos os estados, garantindo manter 90% das cadeias cheias.

Privatistas nem têm incentivos para manter a infraestrutura. David Cay Johnston descreve o estado de deterioração das bases estruturais da América, com redes negligenciadas pelos monopolistas industriais, que cortam gastos em vez de prestar manutenções. Enquanto isso, eles atingem margens de lucros de mais de 50%, oito vezes a média das corporações.

Quanto à segurança pública, os sinais de alerta para privatizações não regulamentadas estão se tornando mais claros e mais fatais. A fábrica de fertilizantes Texas, onde 14 pessoas foram mortas em uma explosão e incêndio, foi inspecionada pela Occupational Safety and Health Administration (OSHA, Administração de Segurança e Saúde de Profissionais) há mais de 25 anos. O Serviço Florestal dos Estados Unidos, marcado pelo incêndio em Prescott, no Arizona, que matou 19 pessoas, foi forçado a cortar 500 bombeiros por causa dos confiscos. O desastre nos trilhos de Lac-Megantic, no Quebec, foi consequência da desregulamentação das ferrovias canadenses. No outro extremo está o setor público, e o Federal Emergency Management Agency (Fema, Agência Federal de Cuidados Emergenciais), que resgatou centenas de pessoas após o furacão Sandy enquanto providenciava alimentos e água a outros milhões.

A falta de incentive privado para a melhoria das condições humanas é evidente em todo o mundo. O World Hunger Education Service (Serviço Mundial de Educação sobre a Fome) afirma que "os sistemas econômicos nocivos são a principal causa de pobreza e fome." De acordo com Nicholas Stern, o chefe economista do Banco Mundial, a mudança climática é "a maior falha de mercado que o mundo já viu."

6. Com sistemas públicos, não temos que ouvir devaneios de "iniciativas individuais"

De volta aos tempos do Reagan, uma declaração impressionante foi feita por Margaret Thatcher: "Não existe isso de sociedade. Existe homens e mulheres individuais, e existem famílias." Mais recentemente, Paul Ryan reclamou que o apoio governamental "drena as iniciativas individuais e a responsabilidade pessoal."
É fácil para pessoas com bons empregos falarem isso.

Iniciativa individual? O apoio público da nossa rede de comunicações permite aos 10% de americanos ricos manterem sua cota de 80% no mercado de ações. CEOs contam com estradas, portos e aeroportos para enviar seus produtos, com FAA e TSA, com a Guarda Costeira e com o Departamento de Transportações para protegê-los, uma rede nacional de energia para potencializar suas indústrias, e torres e satélites de comunicação para conduzir seus negócios online. Talvez o mais importante para os negócios, mesmo quando se trata de lucros a curto prazo, seja a pesquisa a longo prazo financiada com dinheiro do governo. A partir de 2009, universidades ainda recebiam dez vezes mais financiamentos governamentais para ciência e engenharia do que financiamentos industriais.

Público supera o privado em quase todos os sentidos. Somente o hype da mídia de livre mercado mantém muitos americanos acreditando que o sistema "o vencedor leva tudo" é melhor do que trabalhar junto como uma comunidade.

Transcrição de www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=16995 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info


domingo, 17 de novembro de 2013

Eike Batista, “orgulho do Brasil”?

130701-BRA-Sergio-Cabral-Eike-Batista-Dilma-OGX-2012_Daniel-Marenco-Folhapress

Há pouco, Dilma disse que brasileiros deviam sentir orgulho do empresário. Hoje ele vende seu império ao capital estrangeiro
por Armando Sartori, na Revista Retrato do Brasil
Ao longo deste mês a vida do empresário Eike Batista deve passar por importantes definições. No final de setembro, a OGX, empresa controlada por ele que atua no setor de gás e petróleo, deixou de honrar o pagamento de perto de 45 milhões de dólares em juros devidos por conta da emissão de títulos no valor de pouco mais de 1 bilhão de dólares. Os papéis vencem em 2022. Nesse meio tempo, como é de praxe, os que os compraram têm direito a receber juros. O que venceu em setembro foi uma dessas parcelas. A OGX tem outra dívida do mesmo tipo: são 2,6 bilhões de dólares que vencem em 2018, para os quais a empresa precisa honrar 110 milhões de dólares em juros no mês que vem. Uma equipe de negociadores foi enviada por Batista a Nova York no início do mês passado para, nos 30 dias de prazo previstos, renegociar com os credores.
O não pagamento deveu-se à frágil situação do caixa da empresa. A OGX vem investindo pesadamente e tem obtido resultados pífios em sua operação. Basicamente isso se dá porque as potencialidades dos campos arrematados em leilões promovidos pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) no passado recente ficaram a léguas de distância de se confirmarem. Foi com base nessas estimativas, antes mesmo que se produzisse uma gota sequer de óleo – o que ocorreu somente em janeiro do ano passado –, que a petroleira controlada por Batista valorizou-se espetacularmente, permitindo que ele alavancasse uma série de planos e se transformasse, no ano passado, no sétimo homem mais rico do mundo.
As dificuldades da OGX foram escancaradas a partir do momento em que, ainda em meados de 2012, a empresa anunciou que o campo Tubarão Azul, no litoral fluminense – o único da companhia em operação comercial, localizado numa área adquirida em 2007, na 9ª Rodada de Licitações promovida pela ANP – tinha vazão de apenas 5 mil barris de óleo equivalente (boe) por dia, 57% menos do que o anunciado pela empresa durante o pico da fase de testes e cerca de um terço do volume mínimo da meta estabelecida dez meses antes pela OGX.
topo-posts-margem
No início de julho, a empresa informou que não aumentaria os investimentos no campo e que a produção poderia ser encerrada no ano que vem por falta de tecnologia capaz de viabilizar economicamente investimentos adicionais. Anunciou também que devolveria os campos de Tubarão Areia, Tubarão Gato e Tubarão Tigre, igualmente adquiridos em 2007. Nesse meio tempo, a OGX começou a apostar suas fichas em outra área – a de Tubarão Martelo, situada nos blocos BM-C-39 e BM-C-40, também arrematados na 9ª Rodada. No início do mês passado, a empresa apresentou relatório da consultoria DeGolyer & MacNaughton, segundo o qual o campo possui reservas prováveis de 87,9 milhões de boe e reservas possíveis de 108,5 milhões de boe. A empresa havia informado em abril do ano passado que Tubarão Martelo teria “um volume total recuperável de 285 milhões” de boe.
Apesar de as novas estimativas ficarem muito abaixo da inicialmente divulgada pela OGX, é em Tubarão Martelo que repousam boa parte da esperança de superação da crise. Isso porque a companhia negocia com a empresa estatal Petronas, da Malásia, a venda de 40% da participação nos dois blocos onde se situa o campo. Trata-se de um negócio de 850 milhões de dólares. O pagamento inicial seria de 250 milhões de dólares; outros 500 milhões seriam repassados quando a produção fosse iniciada. E os demais 100 milhões seriam desembolsados de acordo com o ritmo da extração do petróleo. Os recursos da Petronas seriam muito bem-vindos pela OGX, especialmente o pagamento inicial, com os quais a empresa atenderia fornecedores para os quais vem postergando pagamentos, essenciais para iniciar a produção de Tubarão Martelo. O problema é que a direção da estatal asiática decidiu segurar os 250 milhões de dólares até enxergar com maior clareza o quadro em que a empresa de Batista está colocada.
Como se pode perceber, a crise da OGX ironicamente teve início apenas meses após Batista ter alcançado seu ápice, como a sétima pessoa mais rica do mundo. Foi nessa condição que ele recepcionou a presidente da República, Dilma Rousseff, e o governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em uma cerimônia realizada em abril do ano passado no Superporto do Açu – o mais ambicioso dos empreendimentos do empresário – para comemorar o princípio da produção de petróleo pela OGX.
No evento, com duração de quase 50 minutos, Cabral e a presidente não economizaram elogios ao empresário. “Para nós, do Rio de Janeiro, […] ter você [Eike Batista] como grande líder de todos os investimentos privados da América do Sul é extraordinário”, disse o governador. “É muito bom ver um brasileiro entre os dez homens mais ricos do mundo colocando dinheiro produtivo, gerando emprego na produção”. “O Eike é o nosso padrão, nossa expectativa e sobretudo o orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado”, disse a presidente.
Batista sempre foi muito próximo de Cabral – são amigos pessoais. Além disso, o empresário ajudou a financiar, com mais de 100 milhões de reais, programas de natureza “social” do governo dirigido pelo amigo, como a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a realização de obras voltadas à despoluição da Lagoa Rodrigo de Freitas, na capital fluminense.
No caso da presidente, ela possivelmente o conhece, pelo menos, desde os tempos em que era ministra de Minas e Energia, antes de passar a ocupar a Casa Civil, em substituição a José Dirceu, que deixou o cargo com a eclosão do escândalo do chamado “mensalão”. Foi durante a permanência de Dilma na Casa Civil que ocorreu a 9ª Rodada da ANP. Em novembro de 2007. Até poucos dias antes, estava previsto que seriam leiloados blocos localizados na área do pré-sal, cuja descoberta havia sido anunciada publicamente naquele mesmo ano. Houve intensa pressão de membros do governo, de dirigentes da Petrobras e de lideranças dos movimentos sociais para que o leilão fosse cancelado. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu retirar da disputa 41 blocos situados na área delimitada como sendo do pré-sal, mas manteve blocos localizados nos limites imediatamente externos. Entre esses blocos estavam os do chamado Arco de Cabo Frio, no norte do litoral fluminense, dos quais a OGX arrematou 21, gastando mais de 1,5 bilhão de dólares.
Segundo Ildo Sauer, ex-diretor de Gás da Petrobras e atualmente diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, na altura da realização da 9ª Rodada, Batista já havia investido muito dinheiro na OGX, empresa fundada naquele mesmo ano, para a qual contratara vários funcionários da Petrobras, com destaque para Rodolfo Landim e Paulo Mendonça (respectivamente, ex-diretor e ex-gerente de Exploração e Produção da estatal). Landim tornou-se presidente da OGX (em 2010 ele deixaria o EBX em litígio com Batista) e Mendonça o sucedeu, permanecendo no posto até meados do ano passado. Se o leilão fosse suspenso, “ele ia ficar sem nada”, avalia Sauer em entrevista publicada pela Revista Adusp em janeiro do ano passado. O leilão não foi cancelado, segundo o ex-diretor da Petrobras, devido às relações de Batista com a alta cúpula do governo petista e a presença em sua empresa de ex-ministros do governo de Fernando Henrique Cardoso.
No início deste ano, Lula esteve no Superporto Açu, quando passou uma manhã em visita às obras. De acordo com relato publicado pela revista semanal Veja em março, a visita faria parte de articulações realizadas por Batista para obter apoio governamental, dada a frágil situação financeira do Grupo EBX, controlador da OGX e outras empresas. Uma das saídas apontadas por ele teria sido a transferência dos investimentos do estaleiro Jurong Shipyard – um dos maiores do mundo, controlado pelo governo de Cingapura – do Espírito Santo para a área do superporto. A ideia teria sido discutida anteriormente entre os dois e Cabral. Até meados de março, os ministros da Fazenda, Guido Mantega, e do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, participaram de encontros com dirigentes do estaleiro cingapurense, embora tenham negado que com o objetivo de transferir o investimento do Espírito Santo para o Rio de Janeiro. Ao final, ao saber da suposta trama, o governador capixaba, Renato Casagrande (PSB), foi ao ministro Pimentel cobrar explicações. Este teria atribuído a confusão ao embaixador brasileiro em Cingapura. E o caso, aparentemente, morreu por aí, sem sucesso para Batista.
O nome do empresário tornou-se notório no carnaval de 1998, quando a modelo e atriz Luma de Oliveira apareceu diante das câmeras de TV usando uma gargantilha – que, se colocada no pescoço de um cachorro, seria chamada de coleira – que trazia “Eike” bordado sobre tecido negro em pedras brilhantes, com letras maiúsculas. Indagada, Luma explicou que se tratava de uma homenagem a seu então marido – Eike Batista – que se sentia incomodado quando ela desfilava.
A essa altura Batista era um empresário que tinha obtido algum sucesso na área de mineração. Começou vendendo seguro de porta em porta após largar um curso de engenharia na Alemanha. No início da década de 1980 foi à Amazônia, onde iniciou atividade de intermediação na venda de ouro extraído por garimpeiros. Acumulou o suficiente para comprar máquinas e começou a explorar ouro. Entrou em negociação com uma empresa canadense, da qual tornou-se controlador e transformou-a na TVX Gold. Em 1986, adquiriu a mina La Coipa, no Chile. Três anos após o episódio que o revelou ao grande público, Batista vendeu as ações da TVX Gold e construiu, em associação com a americana MDU, a termelétrica TermoCeará – apelidada TermoLuma – que deu origem à MPX, a empresa do EBX que atua em energia elétrica. Em 2005 – já separado de Luma, com quem teve dois filhos – criou a mineradora MMX, empresa que lançou na Bolsa no ano seguinte. Em 2007, além da OGX, abriu a LLX, empresa de logística, que, como a petroleira, foi lançada na Bolsa um ano depois. Em 2009 criou o estaleiro OSX, cujo capital foi aberto no ano seguinte.

A estrutura empresarial criada sob o guarda chuva do EBX parecia o suprassumo da sinergia, palavra que no jargão empresarial significa o máximo de eficiência. Por meio da LLX, Batista lançou as bases do Superporto Açu para escoar a produção da MMX. Descrito pela empresa como “um complexo portuário privativo de uso misto”, o Açu foi projetado para ter dois terminais, “um offshore e outro onshore”, em construção no município de São João da Barra, e está situado “próximo à área responsável por 85% da produção de petróleo e gás do Brasil”.
A LLX seria empregada no transporte do minério de ferro de Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, onde a MMX atua, até o Açu. Além disso, o superporto abrigaria um complexo industrial: nele seriam instaladas a OSX, para produzir as embarcações que a OGX necessitaria para realizar sua produção petrolífera, e uma siderúrgica, que consumiria parte do minério transportado até lá. O Açu foi projetado também para comportar instalações para o armazenamento do petróleo extraído pela OGX e, quem sabe, pela Petrobras.
Como se pode perceber, o essencial do grupo EBX gira em torno da OGX, empresa que viabilizaria a OSX – estava prevista a encomenda de 48 embarcações de três tipos para atender as demandas da petroleira – e boa parte do porto do Açu. Na medida em que anunciava as novas empresas, e, principalmente, lançava novas avaliações otimistas sobre as áreas petrolíferas sob controle da OGX, Batista via as empresas de seu grupo ganhar cada vez mais força na Bolsa. Ele se aproveitou da euforia provocada pelo pré-sal e levou muita gente a acreditar que não poderia ficar fora de uma empresa como a OGX, que apresentava como uma “mini-Petrobras”.
Em 2008, cerca de um ano após fundar a companhia, Batista fez uma oferta inicial de ações ao público (IPO, na sigla em inglês) na Bovespa. Obteve 6,7 bilhões de reais por 38% da empresa – isso significava que a OGX valia aproximadamente 17 bilhões de reais, dos quais 10 bilhões eram dele. A essa altura, a OGX tinha como patrimônio somente os blocos de exploração obtidos na 9ª Rodada.
Nos anos que se seguiram, embora não houvesse produção, a empresa permaneceu valorizada na Bolsa – assim como as mais antigas e as mais recentes. Assim, sua fortuna pessoal chegou a atingir, na avaliação da revista Forbes, 30 bilhões de dólares e Batista foi ranqueado como o sétimo homem mais rico do planeta. Então, começou a queda. Na medida em que a OGX informou ao mercado que as avaliações a respeito das potencialidades de campos petrolíferos haviam sido superestimadas, o preço de suas ações declinou rapidamente. Nos últimos 12 meses encerrados no mês passado, por exemplo, a cotação desses papéis chegou a cair 96,5%. Um processo do mesmo tipo alcançou, de forma geral, com maior ou menor intensidade, o conjunto das empresas do EBX, dado o papel central da OGX no grupo.
A desvalorização enfraqueceu os planos de Batista, na medida em que limitou as possibilidades de o empresário levantar mais recursos no mercado de capitais para financiar seus empreendimentos, assim como tornou empréstimos bancários mais difíceis de obter – dado que as ações que detinha das empresas, e que serviam de garantia, perderam valor. À medida que as dívidas aumentaram e tornaram a operação das empresas sob seu controle cada vez mais complicadas, Batista iniciou negociações com companhias estrangeiras para obter os recursos tanto para novos investimentos quanto para o pagamento ou rolagem de suas dívidas. Além do acordo com a Petronas, no final de maio a alemã E.ON, que já era sócia minoritária da MPX, adquiriu por cerca de 1,5 bilhão de reais 24,5% do capital social da empresa que pertenciam a Batista. A alemã passou a exercer o controle da MPX e, em setembro, alterou seu nome para Eneva. No mês anterior, Batista deixou o cargo de presidente do conselho de administração da LLX após a americana EIG investir 1,3 bilhão de reais e assumir o controle da empresa.
Em meados do mês passado, a MMX anunciou acordo para a venda de 65% do capital social da MMX Porto Sudeste – terminal portuário de movimentação de minério de ferro conhecido como Superporto Sudeste, na cidade fluminense de Itaguaí – para as companhias Impala (divisão da holandesa Trafigura) e Mubadala (fundo de investimento de Abu Dhabi), por 400 milhões de dólares. O acordo envolveu a transferência de 1,3 bilhão de reais em dívidas para os novos controladores.
Para realizar essas e outras operações, visando reestruturar o EBX, em março passado Batista contratou o BTG Pactual. Mais recentemente, contratou o Angra Partners paroa realizar algo parecido, sem que claramente dispensasse o BTG. O Angra Partners chegou a Batista por meio de uma ponte estabelecida pelo ex-embaixador dos EUA no Brasil Clifford Sobel, por sua vez representante de um fundo de investimento de empresários americanos, o Valor Capital Group, que também é sócio do Angra Partners.
As ligações de Batista com o exterior não param por aí. Levantamento realizado a pedido do diário O Estado de S. Paulo e publicado em meados de outubro revelou que quase três quartos do valor total de sua participação direta nas empresas do EBX estavam em nome de fundos localizados fora do País. Eram o Centennial Asset Mining Fund LLC e o Centennial Asset Brazilian Equity Fund LLC, com sede no estado americano de Nevada. Ambos, por sua vez, eram controlados pela EBX International S/A, sediada no Panamá. A prática, explica o artigo do jornal, que não é ilegal, não é ocultada por Batista. Advogados especializados ouvidos pelo jornal dizem que seu objetivo pode ser o de driblar a tributação.
Como a OGX vai resolver os problemas gerados pelo não pagamento dos juros aos que compraram seus títulos no exterior anda não estava claro em meados do mês passado. O certo é que Batista dificilmente retornará ao posto que um dia ocupou no ranking da Forbes. No início de março deste ano ele havia sido rebaixado do 7º para o 100º posto entre os bilionários. E, seis meses mais tarde, fora defenestrado do clube, uma vez que, pelos cálculos da revista, sua riqueza fora reduzida a menos de míseros 900 milhões de dólares.