sábado, 2 de fevereiro de 2013

Campanha contra agrotóxicos critica patrocínio da Basf à Vila Isabel

Escola é patrocinada por empresa transnacional, fabricante de agrotóxicos e representante dos interesses do agronegócio, que tem interesses opostos aos do “homem simples do campo” retratado no samba enredo.



Por José Coutinho Júnior





"Faz um bolo de fubá 
Pinga o suor na enxada
A terra é abençoada
Preciso investir, conhecer
Progredir, partilhar, proteger..."

O samba acima é enredo da escola Vila Isabel para o desfile do carnaval de 2013, escrito por Martinho da Vila, Arlindo Cruz, André Diniz, Tunico da Vila e Leone.
A escola pretende com o tema Vila canta o "Brasil celeiro do mundo - 'Água no feijão que chegou mais um...", fazer uma homenagem à vida do homem simples do campo (clique aqui para ouvir o samba).
Segundo a carnavalesca Rosa Guimarães, que desenvolveu o tema “A vida no interior é simples, mas é uma festa. Tem sempre alguém querendo contar um ‘causo’, aquela mesa farta e muita fé em Deus e no trabalho para ter uma boa colheita. As pessoas recebem os vizinhos e amigos com muito carinho e tem sempre aquele fogão de lenha acesso para preparar os quitutes”.
No entanto, o desfile da Vila Isabel tem uma grande contradição: a escola é patrocinada pela Basf, empresa transnacional, fabricante de agrotóxicos e representante dos interesses do agronegócio, que tem interesses opostos aos do “homem simples do campo” retratado no samba enredo.
Representantes de diversos movimentos sociais, participantes da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, em carta à Vila Isabel, elogiaram a letra do samba e a representação da vida camponesa, mas repudiaram o patrocínio.
“Em 2010, a BASF foi a terceira maior vendedora de agrotóxicos no Brasil, lucrando 916 milhões de dólares com a doença dos brasileiros e brasileiras. “Uma Escola que já nos presenteou com belos sambas falando de um mundo melhor não deveria se submeter ao interesse vil desta multinacional.” afirma a carta (clique aqui para ler a carta).
Nesta terça (29/01), representantes dos movimentos sociais signatários da carta entregaram o documento na quadra da escola à vice-presidenta Elizabeth Aquino. As entidades pediram que uma faixa da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos fosse estendida na quadra da agremiação. A faixa vai agradecer o esforço da escola de valorizar os pequenos agricultores brasileiros. Elizabeth concordou com a ideia, desde que não haja teor político e que a mensagem passe pelo crivo e aprovação do presidente da Vila Isabel, Cleber Tavares.
A contradição que se vê no desfile da Vila Isabel é a mesma que está presente no campo brasileiro: de um lado, o agronegócio, defensor da monocultura e do latifúndio com vasto uso de agrotóxicos; do outro, os movimentos sociais, os assentados, os Sem Terra, que buscam implantar a agricultura familiar com um modelo de produção mais igualitário e saudável.
Para o professor e escritor Luiz Ricardo Leitão, a escola está conseguindo equilibrar os dois lados. “Como qualquer tema, é sempre uma disputa e objeto das mais variadas leituras. A julgar pela letra, o tema da questão agrária está tratado de forma ponderada, pois ela fala em fazer bolo de fubá, semear o grão e saciar a fome com a produção, que é a proposta básica da atividade agrícola, defendida pelos movimentos sociais que se contrapõem à agricultura como um mero negócio”.
Venenos
A alemã Basf é a maior empresa química do mundo. A empresa tem um histórico de atentados ao meio ambiente e à vida humana. Durante a Segunda Guerra Mundial, a empresa produziu o gás Zyklon B, usados nas câmaras de gás nazistas para matar milhões de prisioneiros.
Em 2010, a Basf foi a terceira maior vendedora de agrotóxicos no Brasil, lucrando US$ 916 milhões com vendas de veneno. Em 2001, a empresa causou um vazamento de 11 mil litros de Mollescal, um corrosivo destinado ao curtimento de couro no Brasil. Depois do acidente, forneceu informações falsas ao serviço de emergência sobre o grau de toxidade da substância, colocando em risco os profissionais envolvidos no atendimento à população.
O Censo Agropecuário do IBGE de 2006 mostra que a agricultura familiar é responsável por 70% do alimento que chega à mesa dos brasileiros, mesmo ocupando apenas 25% das áreas agricultáveis.
Apesar de receber 14% do crédito dado pelo governo à produção agrícola, ela agricultura familiar emprega nove vezes mais pessoas por área e ainda é responsável por um terço das exportações agropecuárias do país. O agronegócio, que recebe os outros 86% do crédito, concentra 75% das terras mas produz apenas 30% dos alimentos que compõem a alimentação da população, empregando somente 1,5 trabalhadores a cada 100 hectares.
Sem submissão?
O professor acredita que o patrocínio da Basf não é garantia de que o desfile da Vila Isabel seja mera propaganda da empresa e do agronegócio, pois não se pode subestimar o prestígio da escola, autora de enredos muitas vezes progressistas, como o de 2006 que garantiu o segundo título com Soy loco por ti América - A vila canta a latinidade.
“A letra, o primeiro elemento importante, que leva o samba à avenida, não é uma submissão aos desígnios do agronegócio. E também no plano alegórico, espero eu que a escola saiba equilibrar esse embate entre interesses dos oligopólios e interesses da população, dos trabalhadores rurais”, acredita.
Elizabeth Aquino, vice-presidenta da escola, em reunião com representantes de movimentos sociais que realizaram a entrega da carta, afirmou que o desfile não será propaganda da Basf. “A Vila Isabel pegou recursos da Basf para que fizéssemos um carnaval mais grandioso. Somente com o repasse da Prefeitura nenhuma agremiação faz um carnaval competitivo. Mas todo nosso carnaval é a valorização do homem do campo. Não colocaremos na avenida nenhum maquinário agrícola top de linha. Nas fantasias e alegorias, retratamos a natureza e homem do campo, não são os grandes agricultores".
Imagem
Para a vice-presidenta da escola, o benefício que a Basf tem com o patrocínio é ganhar visibilidade. “A Basf nos ajudou financeiramente e em troca, é claro, não existe visibilidade maior que a proporcionada pelas escolas de samba. Nenhum outdoor que ela espalhe pelo mundo dará tanta visibilidade. O desfile do Rio vai para o mundo inteiro. Mas nós não estamos fazendo apologia nenhuma da Basf”. 
Essa visibilidade proporcionada pelo patrocínio, no entanto, é uma tentativa de confundir o público, pois passa a imagem de que a agricultura brasileira constitui um bloco único, no qual agricultores familiares, grandes latifundiários e empresas multinacionais prestam o mesmo papel de servir o país na luta para acabar com a fome e preservar o meio ambiente. Não há, nessa imagem, qualquer tipo de confronto entre as partes, mas uma sensação de unidade.  
“Esta é uma das iniciativas de comunicação mais ousadas da Unidade de Proteção de Cultivos da BASF, que impactará diversos públicos, incluindo aqueles que não têm relação direta com o agronegócio. O Brasil é um líder na produção de alguns produtos e um gigante nas exportações, porém é preciso reforçar junto à sociedade a importância da agricultura e da tecnologia nela empregada para que tenhamos essa posição. Acreditamos que a parceria com a Vila Isabel, aliada à ação do vídeo, vai reconhecer e valorizar o produtor rural, de uma forma criativa e inusitada”, disse Maurício Russomanno, vice-presidente da Unidade de Proteção de Cultivos da Basf para o Brasil, no pronunciamento oficial do patrocínio a Vila Isabel.
A Basf não é a primeira entidade ligada ao agronegócio que se utiliza de campanhas publicitárias com ícones brasileiros numa tentativa de unificar o campo brasileiro no imaginário da população. Em 2012, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade máxima do agronegócio, contratou o jogador Pelé para fazer comerciais sobre a importância da agricultura brasileira.
Segundo nota da CNA, o objetivo da campanha é "consolidar a imagem do agronegócio sustentável brasileiro no País e no exterior" e “divulgar as práticas sustentáveis adotadas pelos produtores rurais brasileiros, além de outras iniciativas que assegurem a boa qualidade do produto nacional".
Para Ricardo Leitão, essas estratégias publicitárias são formas de tentar humanizar o agronegócio ao associá-lo com a agricultura familiar. “Esse é o jogo da ideologia: os representantes do oligopólio se apresentam como defensores de todos os segmentos agrícolas do país. Se o movimento popular investe na agricultura, o agronegócio vai se colocar ao lado dele, não contra. O agrotóxico é vendido como um produto para o conjunto dos agricultores, e não para um só segmento. É preciso desenvolver a ideia da unidade, até porque o agronegócio está estigmatizado pelo desmatamento, e é muito difícil se associar a um segmento que é responsável pelo desmatamento, pela deturpação do Código Florestal”.
Ainda é cedo para dizer se o desfile da Vila Isabel vai cumprir o seu objetivo, mas pelo fato da escola também dar espaço para que os movimentos sociais se manifestem e exponham seu ponto de vista, além do comprometimento da escola em tratar do homem da vida do homem do campo, é possível que os trabalhadores rurais recebam a homenagem que merecem.
“Tenho a impressão de que nesse caso específico, a estratégia publicitária do agronegócio pode falhar, e o veneno se reverter contra o envenenador. Não sei, talvez seja só otimismo meu, é esperar para ver”, afirma Ricardo Leitão.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Lênin e a atualidade de ‘Esquerdismo, doença infantil do comunismo’


Por Juliano Medeiros

Em 2010 Esquerdismo, doença infantil do comunismo, de Lênin, completou noventa anos sem grandes comemorações. Escrito entre abril e maio de 1920 e publicado pela primeira vez como panfleto em junho do mesmo ano, o texto se tornou um clássico do pensamento marxista e segue alimentando controvérsias até os dias de hoje.

A obra tem como problema central a mediação entre os objetivos estratégicos e a ação política cotidiana, ou como se convencionou dizer na esquerda, entre a estratégia e a tática. As polêmicas envolvendo o tema remontam às jornadas revolucionárias de 1830-1848 e ao surgimento das primeiras correntes libertárias: o socialismo e o anarquismo. Do enfrentamento entre essas posições nasceram as célebres críticas de Marx à filosofia de Pierre Proudhon, bem como seus embates com o revolucionário russo Mikhail Bakunin, já no interior da I Internacional. Os principais temas contidos em Esquerdismo, doença infantil do comunismo partem exatamente da crítica à aproximação entre determinados setores socialistas e as posições anarquistas, e vão abordar questões como a relação dos revolucionários com o parlamento burguês, as possíveis formas de organização política e os caminhos para a tomada do poder.

Polêmicas que seguem a história do movimento operário desde o seu nascimento.

Comecemos por lembrar que, com a revolução na Rússia em 1917, o socialismo conquistaria a hegemonia do pensamento crítico nas décadas seguintes, superando definitivamente o mito da invulnerabilidade do capitalismo. Ao mesmo tempo, a derrubada do czar e a vitória de operários e camponeses famintos, num país de capitalismo atrasado e de estrutura agrária feudal, colocou aos socialistas, pela primeira vez, o complexo desafio do exercício do poder. Uma vez vitoriosos, os bolcheviques se viram diante de um país arruinado economicamente e socialmente dilacerado pela guerra. A tarefa, portanto, era grandiosa: enfrentar não apenas a reação dos exércitos imperialistas, que desataram um sangrento conflito militar contra a revolução, mas também a oposição de grupos libertários, anarquistas e mesmo comunistas, dentro e fora da Rússia.

É nesse contexto que “Esquerdismo, doença infantil do comunismo é escrito”. O texto surge apenas três anos após a publicação de “O Estado e a Revolução”, onde Lênin retoma a polêmica teoria da Ditadura do Proletariado de Marx. Diante dos ataques sofridos pela revolução, ele está convencido da importância da ditadura de classe dos operários e camponeses – liderada pelos primeiros – como único meio de preservar a revolução. Por isso, afirmará com veemência:
“A ditadura do proletariado é a guerra mais severa e implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, a burguesia, cuja resistência está decuplicada, em virtude de sua derrota (mesmo que em apenas um país), e cuja potência consiste não só na força do capital internacional, na força e na solidez das relações internacionais da burguesia, como também na força do costume” (p.13, Cap. II).

Ele defende ainda, recorrendo ao espírito de unidade dos trabalhadores, que “a vitória sobre a burguesia torna-se impossível sem uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, mortal: uma guerra que exige serenidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e uma vontade única” (Idem).

Após a defesa contundente da Ditadura do Proletariado como instrumento para vencer a guerra contra a burguesia – teoria que seria questionada por inúmeros grupos socialistas na Europa Ocidental – Lênin gira suas baterias ao longo de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” para o que descreve como “revolucionarismo pequeno-burguês”. Sobre este setor, afirma:

“Pouco se sabe, no estrangeiro, que o bolchevismo cresceu, formou-se e temperou-se, durante muitos anos, na luta contra o revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que adquiriu dele alguma coisa, afastando-se, em tudo que é essencial, das condições e exigências de uma consequente luta de classes do proletariado” (p. 24, Cap. IV).

Em 1920, a guerra civil contra os exércitos “brancos” chegara ao fim e o regime encontrava-se diante de um desafio: erguer uma nova sociedade a partir de um país em ruínas, acomodando tradições nem sempre compatíveis com o projeto político que conquistara a hegemonia desde a derrubada do regime. É nesse complexo cenário que Lênin faz de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” uma tentativa de responder aos ataques desferidos por variados agrupamentos às características que a revolução aos poucos assumia, ou seja, ataques à teoria da Ditadura do Proletariado.

O esquerdismo e a revolução bolchevique

“Esquerdismo, doença infantil do comunismo” pode ser dividido em dois blocos. Dos capítulos I a IV Lênin dedica-se a uma retrospectiva da história do bolchevismo, desde seu surgimento com a cisão do Partido Operário Social-Democrata Russo, em 1903, até a tomada do poder na revolução de outubro de 1917. Nessa retrospectiva, recorda os principais inimigos dos bolcheviques no seio do movimento operário e destaca os desvios esquerdistas no interior de seu próprio partido. Dos capítulos V a IX, Lênin responde algumas das principais controvérsias então presentes no movimento revolucionário internacional: participação nos sindicatos tradicionais, disputa de eleições burguesas, caráter da revolução bolchevique, dentre outras. Estas polêmicas envolviam principalmente grupos dissidentes da Itália, França, Alemanha, Holanda e Inglaterra. Assim, como vimos anteriormente, “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” é também uma resposta endereçada aos comunistas da Europa Ocidental, descontentes com os rumos da revolução na Rússia, acusada por eles de promover uma “ditadura dos chefes” ao invés da “verdadeira ditadura das massas” . Este, aliás, é um tema para o qual Lênin dará bastante atenção. Ele reconhece que no fim da I Guerra Mundial, anos antes, “manifestou-se em todos os países com singular vigor e evidência o divórcio entre os chefes e a massa”. A causa fundamental deste fenômeno, segundo Lênin, foi descrito muitas vezes por Marx e Engels que, utilizando o exemplo da Inglaterra, descreveram o surgimento de uma “aristocracia operária”, produto da situação monopolista do capitalismo inglês, que cooptava com grande habilidade esses chefes para o campo da burguesia.

Lênin, porém, inicia o texto apresentando outra tese polêmica que seria atacada por muitos de seus oponentes: segundo ele, “alguns aspectos fundamentais de nossa revolução [bolchevique] não tem apenas significação local, particularmente nacional, russa, mas revestem-se de significação internacional” (p. 9, Cap. I). Ele se referia a uma suposta “(…) transcendência mundial ou à inevitabilidade histórica de que se repita em escala universal” (idem). Lênin será acusado de fazer da experiência russa um modelo a ser seguido, independente das condições históricas de cada país. Contra qualquer determinismo, no entanto, ele mesmo destaca alguns parágrafos adiante que “naturalmente, seria um erro exagerar o alcance dessa verdade, aplicando-a a outros aspectos de nossa revolução além de alguns fundamentais” (idem). Como não poderia deixar de ser, é tomando por base a experiência da Revolução Russa que Lênin buscará analisar a relação entre os comunistas e as diversas correntes do esquerdismo europeu. Por isso ele defenderá a ideia da existência de uma dimensão internacional da Revolução Russa, pois muitas das questões então presentes no movimento comunista internacional já haviam sido enfrentadas, anos antes, no seio do movimento operário russo. Mesmo assim, a tentativa de Lênin em buscar similaridades que pudessem explicar o fenômeno do esquerdismo desde uma perspectiva universal mostrou-se limitada. Isso porque havia muitas diferenças entre as diversas expressões de esquerdismo. Pouco havia em comum, por exemplo, entre o abstencionismo de Amadeo Bordiga, na Itália, e o Comunismo de Conselhos, existente na própria Rússia. Mesmo assim, Lênin buscará ao longo do texto responder aos principais ataques das correntes libertárias, independentemente das diferenças entre elas, comparando essas investidas àquelas sofrida pelos bolcheviques no próprio movimento operário russo.

Ele começa relacionando as posições esquerdistas mais representativas no movimento operário russo no início do século XX ao surgimento do Partido Socialista Revolucionário (1901). Além de aspectos sociais e históricos gerais, Lênin destaca alguns traços comuns a este setor, dentre os quais, a negação das teses marxistas e a utilização do terror seletivo, através de atentados e ações individualizadas, característica dos grupos populistas (narodniks) presentes na Rússia desde o século anterior. Segundo ele, a utilização do terror individual e dos atentados seletivos, rejeitados categoricamente pelos bolcheviques, era um sinal particular de seu “revolucionarismo” ou de seu “esquerdismo”. Ressalva, contudo, que os bolcheviques condenavam “o terror individual, mas não o terror da grande revolução francesa ou, de modo geral, o terror de um partido revolucionário vitorioso, assediado pela burguesia do mundo inteiro” (p. 26, idem). As divergências, nesse caso, estavam relacionadas à escala e à legitimidade da violência empregada.

Em seguida, chama a atenção para o fato de que “graças ao êxodo promovido pelo czarismo a Rússia contava já no século XIX com todas as correntes do movimento revolucionário existentes na época” (p. 14, Cap. II). Além disso, atribui a prematura presença de diferentes correntes de pensamento à imprensa dos emigrados que funcionava desde o exterior e exercia profunda influência no movimento operário da Rússia. Lênin assinala, ainda, que já na revolução de 1905, estavam amadurecidas as três grandes correntes que disputariam os rumos da revolução iniciada em fevereiro de 1917: a burguesia liberal, a pequena-burguesia democrática – representada pelos social-democratas e social-revolucionários – e o proletariado revolucionário, “agindo abertamente, testando na ação das massas todas as concepções de programa e tática (p. 17, Cap. III)”. Com o nascimento dos sovietes, a transformação da greve econômica em greve política, e desta em insurreição, e a consolidação do papel de vanguarda dos operários, Lênin afirmará, deslumbrado, que neste período cada mês correspondia a um ano de aprendizado em termos de educação política das massas.

Após a derrota nas jornadas de 1905, porém, abateu-se um período descrito por Lênin como de “desânimo, desmoralização, dispersão e deserção” (idem). Algo parecido com o que aconteceu após o refluxo da revolução na Europa no início dos anos 1920. Apenas a partir de 1912, com o massacre dos operários de Lena, o movimento operário volta a dar sinais de força. A partir daí o ascenso é rápido, acelerado, sobretudo, pela guerra imperialista que tem início em 1914. Os bolcheviques voltam a disputar a liderança do movimento operário, mesmo com suas principais lideranças no exílio.

Bolcheviques e esquerdismo

Mas Lênin não se resume a responder ou a caracterizar as facções “esquerdistas” que criticavam a revolução bolchevique dentro ou fora da Rússia. Para dar consequência à sua ideia de que a Revolução Bolchevique reunia características “universais”, ele analisa com particular atenção a luta contra o esquerdismo existente no interior do próprio partido bolchevique. Em 1908, por exemplo, o partido enfrentaria sua primeira depuração. Após a bem sucedida campanha pela abstenção nas eleições à Duma em 1905, a política de boicote ao parlamento perde força entre os trabalhadores e parte da direção bolchevique – incluindo Lênin – passa a defender a participação no processo eleitoral. O partido realizaria, então, uma mudança importante em sua tática diante das eleições, sendo atacado pelos setores mais radicalizados e enfrentando uma profunda polêmica interna.

Naquele episódio, o setor denominado por Lênin como “bolcheviques de esquerda” foi expulso do partido em virtude das divergências. Os esquerdistas apoiavam-se, principalmente, na experiência do boicote às eleições parlamentares de 1905, quando o czar anunciou a convocação de um parlamento consultivo. Como lembra Lênin, “contra todos os partidos da oposição e contra os mencheviques, [os bolcheviques] declararam o boicote a esse parlamento, que foi liquidado, com efeito, pela revolução de outubro de 1905”. Ele afirma que:

“Naquela ocasião, o boicote foi justo, não porque seja certo abster-se, de modo geral, de participar nos parlamentos reacionários, mas porque foi levada em conta, acertadamente, a situação objetiva, que levava à rápida transformação das greves de massas em greve política e, sucessivamente, em greve revolucionária e em insurreição” (p. 29, Cap. IV).

Assim, Lênin assinala a importância do boicote, como experiência que “enriqueceu o proletariado (…) mostrando que, na combinação das formas de luta legais e ilegais, parlamentares e extraparlamentares, é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares” (idem). Porém, condenará veementemente a transposição mecânica dessa experiência a outras condições, assinalando que os bolcheviques não teriam podido conservar, muito menos consolidar, desenvolver e fortalecer o núcleo sólido do partido revolucionário durante os anos 1908~1914, se não houvessem defendido a combinação obrigatória das formas de luta legais e ilegais. Derrotados, os abstencionistas foram expulsos do partido, embora muitos deles viessem a compor as fileiras do futuro Partido Comunista da União Soviética, anos depois.

Já em 1918, as disputas envolveriam as negociações de paz com o imperialismo alemão, diante da qual se formaram duas facções: uma liderada por Lênin, que defendia a busca da paz em Brest-Litovsky, e outra representada por Karl Rádek e Nikolai Bukarin, que propunha fazer da permanência da Rússia na guerra imperialista um meio para levar a revolução socialista até a Alemanha. Esta segunda grande crise interna, porém, ocorreu sem a consumação de uma cisão. Para a fração que defendia a permanência da Rússia na guerra, a paz de Brest-Litovsky era um compromisso com os imperialistas alemães, “inaceitável por princípio e funesto para o partido do proletariado revolucionário” (p. 30, Cap. V). Como admite Lênin, “tratava-se, realmente, de um compromisso com os imperialistas: mas era precisamente um compromisso dessa espécie que era obrigatório naquelas circunstâncias” (idem). Logo a história daria razão a Lênin: com os acordos de paz, os bolcheviques puderam dedicar-se à guerra civil contra as forças pró-imperialistas dentro da Rússia e garantir a sobrevivência da revolução.

Principais polêmicas

Na segunda parte de sua obra, Lênin dedica-se a enfrentar três polêmicas principais: a participação dos revolucionários nos sindicatos reformistas; a posição dos partidos operários diante dos parlamentos burgueses; e a possibilidade de alianças eleitorais táticas com partidos reformistas ou social-democratas.

No capítulo VI, Lênin analisa, numa perspectiva histórica, a situação de atraso dos sindicatos por ele chamados de “amarelos” em relação às organizações de vanguarda, afirmando:

“Os sindicatos representaram um progresso gigantesco da classe operária nos primeiros tempos do desenvolvimento do capitalismo, visto que significavam a passagem da dispersão e da impotência dos operários aos rudimentos da união de classe. Quando começou a desenvolver-se a forma superior de união de classe dos proletários, o partido revolucionário do proletariado (que não será merecedor desse nome enquanto não souber ligar os líderes à classe e às massas num todo único e indissolúvel), os sindicatos começaram a manifestar inevitavelmente certos aspectos reacionários, certa estreiteza grupal, certa tendência para o apoliticismo, certo espírito de rotina, etc.” (p. 50, Cap. VI).

Aqui Lênin destaca as limitações dos sindicatos enquanto espaço de organização política por conta de sua “estreiteza grupal” e “tendência para o apoliticismo”, lição que parece ter sido esquecida nos dias de hoje por tendências que veem nos sindicatos o verdadeiro foco da revolução proletária. Porém, dialogando com a realidade do momento, Lênin admite que mesmo sob a ditadura do proletariado é inevitável a existência de certo “espírito reacionário” nos sindicatos. Combatendo a tese de abandono desses organismos, defende que:
“Não compreender esse fato significa não compreender absolutamente as condições fundamentais da transição do capitalismo ao socialismo. Temer esse ‘espírito reacionário’, tentar prescindir dele, ignorá-lo, é uma grande tolice, pois equivale a temer o papel de vanguarda do proletariado, que consiste em instruir, ilustrar, educar, atrair para uma vida nova as camadas e as massas mais atrasadas da classe operária e do campesinato”. (p. 52, idem)

Em outra passagem do texto, Lênin se dedica a combater as teses abstencionistas na Alemanha e Itália. Respondendo às propostas de “rejeitar de modo categórico todo retorno aos métodos parlamentares de luta”, afirmará:

“Como se pode dizer que o ‘parlamentarismo caducou politicamente’, se milhões de proletários ainda são não apenas partidários do parlamentarismo em geral, como, inclusive, francamente favoráveis a ele!? (…) O parlamentarismo “caducou historicamente”. Isso está certo do ponto de vista da propaganda. Mas ninguém ignora que daí à sua superação na prática há uma enorme distância.” (p. 59, Cap. VII)
A tese que defende a diferença entre “superação histórica” e “superação política” seria utilizada posteriormente em diferentes formulações e é uma inovação na obra de Lênin. Alguns grupos, por exemplo, a utilizarão na crítica à degeneração do Partido dos Trabalhadores. Segundo as formulações do Encontro Nacional de fundação da Ação Popular Socialista (2004), hoje uma tendência do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o PT vivia um processo de superação histórica, isto é, de esgotamento enquanto  ferramenta estratégica para a construção do socialismo e cumprimento de seus objetivos históricos, mas não de superação política, haja vista sua força e importância junto aos trabalhadores.

Hoje as tendências abstencionistas, que chegaram a ter algum nível representatividade quando “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” foi escrito, estão circunscritas praticamente apenas às organizações anarquistas ou a minúsculos grupos comunistas. Ao contrário, as teses que negam a participação em sindicatos “amarelos” tem ganhado terreno diante da completa subordinação destes às razões de Estado e à luta meramente econômica. A expressão mais recente desta posição manifestou-se na defesa por parte do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) da ruptura com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, um típico “sindicato amarelo”.

Lênin, o “aliancista”

Mas se é comum lembrar a defesa intransigente de Lênin da participação nos sindicatos amarelos e sua crítica ao abstencionismo, sintetizado no célebre capítulo “Deve-se participar dos parlamentos burgueses?”, há outra polêmica desatada por ele e que tem sido propositalmente relegada a um segundo plano: a defesa das alianças táticas no plano eleitoral.

No capitulo IX, certamente o mais polêmico de toda a obra, Lênin trava um intenso combate contra os “comunistas de esquerda” da Inglaterra. Nesta passagem, ele não apenas questiona veementemente a opção abstencionista deste setor – que reconhece o soviete como único modelo possível de representação operária – como advoga em favor de uma aliança tática com o decrépito Partido Trabalhista como meio de enfrentar uma possível coalizão entre Conservadores e Liberais. Diz ele:

“(…) do fato da maioria dos operários na Inglaterra ainda seguir os Kerenski e os Scheidemann ingleses, de não ter passado ainda pela experiência de um governo desses homens – experiência que foi necessária tanto na Alemanha quanto na Rússia para que os operários se passassem em massa para o comunismo – se deduz de modo infalível que os comunistas devem participar do parlamentarismo, devem ajudar a massa operária de dentro do parlamento a ver na prática os efeitos do governo dos Henderson e dos Snowden, devem ajudar os Henderson e Snowden a derrotarem a coalizão de Lloyd George e Churchill.” (p.66, cap. VIII).

Lênin defende, portanto, que o melhor caminho para acelerar a desilusão das massas trabalhadoras com a social-democracia representada pelo Partido Trabalhista seria, precisamente, colaborar para que este partido chegasse ao poder. Para ele, é impossível promover uma alteração substantiva das opiniões da maioria da classe operária – então simpática ao trabalhismo – apenas pela propaganda. Seria necessária uma experiência política real que demonstrasse que apenas a transformação geral da ordem política e econômica poderia assegurar uma vida digna para os que vivem do trabalho. Em outras palavras, Lênin defende uma tática que invista, num primeiro momento, na vitória dos trabalhistas e, num segundo momento, na luta implacável contra o governo liderado por eles. Em outro ponto afirma que:

É certo que os Henderson, Clynes, McDonald e Snowden são reacionários irrecuperáveis. E também é certo que querem chegar ao poder (ainda que prefiram a coalizão com a burguesia), que querem governar de acordo com as rançosas normas burguesas e que, uma vez no poder, procederão inevitavelmente como os Scheidemann e os Noske. Tudo isso é verdade. Mas dai não se deduz, absolutamente, que apoiá-los equivale a trair a revolução, mas sim que, no interesse dela, os revolucionários da classe operária devem conceder a esses senhores certo apoio parlamentar. (idem)

Para viabilizar a aliança, Lênin propõe ainda termos para um acordo (independência política, divisão proporcional dos postos no parlamento, etc.) e deixa claro que, com isso, os comunistas sairiam ganhando de qualquer forma: caso os trabalhistas rejeitassem a coalizão, ficaria claro que para estes não importava a unidade dos operários; caso aceitassem, os comunistas estariam livres para incidir sobre as massas que então tinham no trabalhismo sua principal referência. Certamente, um arroubo de pragmatismo intolerável para as mais puras seitas esquerdistas hoje em dia.

Assim, Lênin não só defende o apoio ao trabalhismo, como combate firmemente as teses dos comunistas de esquerda que, resumidamente, defendiam que “O Partido Comunista deve conservar pura sua doutrina e imaculada sua independência (…); sua missão é marchar na vanguarda, sem deter-se ou desviar-se de seu caminho, avançar em linha reta em direção à Revolução Comunista”. Qualquer semelhança a determinadas organizações conhecidas entre nós, não é mera coincidência…

Na Alemanha, Lênin defenderá a aliança do recém-criado Partido Comunista da Alemanha com o Partido Social-Democrata Independente. Ao contrário da Inglaterra, onde o apoio aos trabalhistas justificava-se pela iminência de vitória da coalizão entre liberais e conservadores – o que seguramente dificultaria a ação dos comunistas – e pela necessidade de desmascarar diante das massas o caráter reacionário daqueles, na Alemanha a aliança será defendida por Lênin como forma de enfrentar o isolamento dos comunistas. Sua ala esquerda, denominada “Oposição de Princípio”, ao contrário, defendia a rejeição de qualquer compromisso ou aliança com qualquer partido e do retorno aos métodos parlamentares de luta “que já caducaram histórica e politicamente e toda política de manobra e conciliação”.

Assim, num tempo onde flexibilidade tática tem sido confundida com oportunismo, “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” revela um Lênin consciente dos desafios históricos dos revolucionários. Para ele, era necessário encontrar meios de manter um estreito vínculo com as massas e desfazer junto a elas qualquer ilusão na social-democracia. Para ele:

“Proceder de outro modo significa dificultar a marcha da revolução, pois se não se produz uma modificação nas opiniões da maioria da classe operária, a revolução torna-se impossível; e essa modificação se consegue através da experiência política das massas e nunca apenas com a propaganda”. (p. 69, cap. VIII)
Ou seja, mais do que manter imaculada a imagem dos comunistas, mais que preservar a “honra” diante das demais vanguardas, Lênin coloca a luta de classes no comando de suas decisões táticas, contrariando toda forma de estreiteza e movendo-se unicamente pelos interesses da revolução.

O esquerdismo hoje

Não é o objetivo deste ensaio aprofundar-se na análise das manifestações esquerdistas contemporâneas, tarefa que demandaria um enorme esforço. Porém, parece importante demonstrar como posições que floresceram no combate às posições dos bolcheviques, ressurgem agora buscando afirmar-se precisamente como expressão do mais autêntico “bolchevismo”.

Quando pensamos hoje em esquerdismo, logo nos vem à mente minúsculas organizações caracterizadas pelo profundo isolamento político, sectarismo e incapacidade de dialogar minimamente com o real nível de consciência dos trabalhadores. No Brasil estes grupos são representados por pequenas seitas como o Partido da Causa Operária (PCO), a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI), o Partido Operário Revolucionário (POR) ou a Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI), quase todas de origem trotskista, que vivem numa dinâmica de círculo conspiratório, absolutamente apartadas do cotidiano dos trabalhadores. Essa é a versão mais caricatural do esquerdismo, embora não seja a única nem a mais perigosa.

Há ao menos duas características comuns a estas e outras organizações: a primeira se expressa pela negação completa ou parcial da ação dos partidos operários na esfera eleitoral, a segunda coloca a autoconstrução do “autêntico” partido revolucionário acima das necessárias iniciativas de unidade entre as organizações socialistas. São manifestações da primeira vertente as organizações anarquistas em geral, algumas das minúsculas correntes citadas anteriormente, mas também um setor dos movimentos sociais organizado no campo e nas cidades. No segundo caso temos como principal exemplo o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e algumas correntes minoritárias do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Analisando as posições do esquerdismo nas primeiras décadas do século passado, veremos parte delas no discurso de ambas as vertentes. De uns, vem a acusação de “oportunismo eleitoral” contra aqueles que utilizam como tática a combinação entre luta parlamentar e extraparlamentar. De outros, a denúncia da participação em sindicatos reformistas ou, nas palavras de Lênin, “amarelos”. Por fim, a reprodução de uma visão puritana e isolacionista na ação revolucionária. O verdadeiro pânico disseminado a partir da capitulação do Partido dos Trabalhadores diante de qualquer proposta de aliança tática fora do campo dos partidos operários é uma clara expressão da disseminação destas posições. A ampliação das alianças eleitorais, que no caso do PT foi uma das últimas manifestações de seu processo de degeneração, é correntemente tratada como sua causa primeira. Um erro digno daqueles que não conhecem a experiência do PT e as opções tomadas uma década antes por seu núcleo dirigente.

Assim, analisando superficialmente algumas das práticas que caracterizam as organizações esquerdistas, encontraremos vários partidos ou facções que se encaixam perfeitamente no conceito de Lênin. Isso comprova que o conceito de esquerdismo segue tendo validade, ainda que, evidentemente, estas organizações não estejam entre os mais perigosos inimigos de uma consequente luta de classes.

“Há compromissos e compromissos” (Lênin)

O capítulo VIII é talvez o mais importante: chama-se “Nenhum Compromisso?” e demonstra bem a atualidade de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”. Isso porque, ao contrário do sugere o título deste capítulo, o texto de Lênin não é uma apologia às manobras de ocasião ou à flexibilidade de princípios.

Acusado pelos social-revolucionários de ter firmado um compromisso com os imperialistas alemães durante as negociações de paz em Brest-Litovsky, Lênin utiliza uma genial alegoria como resposta. Diz ele:
“Imagine que o carro em que você está viajando é detido por bandidos armados. Você lhes dá o dinheiro, a carteira de identidade, o revólver e o automóvel; mas, em troca disso, escapa da agradável companhia dos bandidos. Trata-se, evidentemente, de um compromisso (dou meu dinheiro, minhas armas e meu automóvel, para que me dês a possibilidade de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é “inadmissível do ponto de vista dos princípios”, ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos (ainda que esses, possuindo o automóvel, e as armas, possam utilizá-los para novas pilhagens). Nosso compromisso com os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante a esse”. (p. 31, cap. IV)

Assim, mesmo respondendo a uma conjuntura muito particular, Lênin tratou de expressar os limites entre o combate ao sectarismo e a flexibilização de valores. Segundo ele: “negar compromissos por princípio, negar a legitimidade de qualquer compromisso, constitui uma infantilidade que é inclusive difícil de se levar a sério”. Mas ressalva: “O político que queira ser útil ao proletariado deve saber distinguir casos concretos de compromissos que são mesmo inadmissíveis expressões de oportunismo e traição” (idem). Lênin se refere aqui, sobretudo, à traição dos partidos social-democratas que se aliaram às suas burguesias nacionais quando da eclosão da Guerra Mundial de 1914. Para ele, o principal inimigo das concepções revolucionárias dentro do movimento operário era precisamente o chauvinismo dos partidos social-democratas filiados à II Internacional Socialista e sua esperança numa transição pacífica até o socialismo. Ou seja, assim como hoje, não era o esquerdismo o que impedia o avanço da luta de classes, mas o oportunismo da social-democracia.

Ao final do livro, entre as conclusões, Lênin assinala que a tarefa central da vanguarda revolucionária consiste em “saber atrair as amplas massas (hoje, em sua maior parte, ainda adormecidas, apáticas, rotineiras, inertes) para uma nova posição ou, melhor dizendo, em saber dirigir não só seu próprio partido, como também essas massas” (P. 114, Conclusões).

Evidentemente, é preciso equilibrar o combate ao oportunismo social-democrata – ou no caso do Brasil, social-liberal – e a luta contra as posições esquerdistas, cada vez mais minoritárias entre os trabalhadores brasileiros. Devemos lembrar que “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” é escrito pelo principal líder de uma revolução até então vitoriosa.

Como fica evidente ao longo do texto, para Lênin a tarefa histórica de ganhar para o poder soviético e para a ditadura da classe operária a vanguarda consciente do proletariado, havia sido cumprida consolidando uma vitória ideológica e política completa sobre o oportunismo e a social-democracia. Por isso, quando da publicação da obra, todas as atenções estão voltadas ao cumprimento de uma segunda tarefa histórica: atrair as massas para uma posição capaz de assegurar o triunfo da revolução, para o que seria indispensável liquidar o doutrinarismo de esquerda. Levando em conta a distância que separa os trabalhadores brasileiros e sua vanguarda da tomada do poder, é preciso, obviamente, relativizar o peso dado à necessária luta contra o esquerdismo.
Num tempo de alianças espúrias, coalizões baseadas na “governabilidade” e defesa de pactos entre classes em prol do “desenvolvimento nacional”, este talvez seja o mais valioso ensinamento da obra do grande líder revolucionário: o esquerdismo deve ser combatido, porque impede a realização de eventuais compromissos necessários ao avanço da luta de classes, mas ele não é o inimigo principal. Por isso e pela necessidade de garantir que os partidos e organizações populares mantenham seu vínculo com as mais sensíveis demandas do povo, negando fórmulas prontas e dogmas sagrados, “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” continua sendo uma obra de grande valor.

Notas:
[i] Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em Londres em 1864.

[ii] O Estado e a Revolução – o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução foi escrito por Lênin e publicado em setembro de 1917, às vésperas da Revolução Russa de outubro

[iii] Fundado em 1898 em Minsk, buscava unir as várias organizações revolucionárias em um partido único. O POSDR mais tarde se dividiria entre bolcheviques (maioria) e mencheviques (minoria), com os primeiros se tornando o Partido Comunista da União Soviética.

[iv] Os chamados “comunistas de esquerda” eram acusados por Lênin de querer separar os chefes revolucionários da massa – contrapondo a ditadura das massas a uma suposta ditadura dos chefes. Lênin censura particularmente alguns “esquerdistas” alemães por considerarem os partidos políticos inúteis. Segundo Lênin, “negar a necessidade do Partido e da disciplina partidária (…) equivale a desarmar completamente o proletariado em proveito da burguesia”.

[v] Partido político agrário, herdeiro das tradições populistas (narodniks) do século XIX. As linhas gerais do seu programa anunciavam medidas de grande impacto político-social: derrubada da autocracia, estabelecimento de uma sociedade sem classes, autodeterminação das minorias do Império, e, sobretudo, a coletivização da terra, que deveria ser distribuída pelos camponeses de acordo com as necessidades de cada um. Em 1917, em pleno processo revolucionário, diversos socialistas revolucionários, agora mais identificados com os interesses moderados da burguesia, integraram o soviete de Petrogrado e o Governo provisório de Kerensky. Após a revolução de outubro passaram à oposição ao regime liderado pelos bolcheviques.

[vi] Em 4 de Abril de 1912, durante uma greve nas minas de ouro do Lena, na Sibéria, mais de 500 operários foram mortos e feridos por ordem de um oficial da polícia czarista. O fuzilamento da multidão de mineiros desarmados, que seguiam pacificamente para iniciar conversações com os patrões, alvoroçou o país inteiro. (História do PCUS – Edições Progresso, Lisboa, 1938).

[Publicado em Um mundo a ganhar – e outros ensaios, Editora Multifoco, 2012]

Retirado do site Socialismo e Liberdade.
Juliano Medeiros é historiador, dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE), nas gestões 2005-2007 e 2007-2009. É editor do site Unamérica


Fonte: Algo a Dizer

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Internet livre: empresas de telecom barram marco civil


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Lobby das gigantes de telecom coloca em risco marco civil que traria proteções e garantiria direitos dos usuários. 

Por Alexandre Bazzan
No último 11 de janeiro, Aaron Swartz, jovem hacker e ativista, enforcou-se em seu apartamento em Nova York. Ainda não se sabe ao certo os motivos, mas ele estava sendo acusado pela procuradora dos EUA Carmen Ortiz, entre outras coisas, de fraude e roubo de informação. O jovem de 26 anos copiou 4,8 milhões de artigos científicos do MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, mas foi preso antes mesmo de poder compartilhar o conteúdo. Imbuído pela ética hacker de deixar disponível dados de interesse público, Swartz sempre lutou pela transparência de informações, como esses artigos científicos que poderiam ajudar outros estudos e que, em grande parte, tinham sido financiados com dinheiro público. O próprio MIT concordou em não dar queixa, mas a procuradora insistiu na acusação que poderia levar Swartz à prisão por mais de 30 anos.
Ciberativista ferrenho, ele foi uma das principais vozes a lutar contra o SOPA e PIPA, projetos de lei estadunidenses que pretendiam controlar a internet. Após a vitória no congresso, Aaron, em discurso, explicou os desafios vigentes à liberdade na rede e ironicamente disse que "para conseguir aprovar algo importante em Washington é preciso achar um monte de grandes companhias que concordem com você".
No Brasil, houve grande indignação contra o SOPA e PIPA, mas duas grandes batalhas nacionais para a livre informação parecem não ter atenção suficiente da sociedade civil. Por meio de consulta pública criou-se dois novos projetos de lei, um que regulamentaria a questão de direitos autorais, especificamente, inclusive com atenção às novas tecnologias, e outra que legislaria sobre a internet chamado de Marco Civil.
A situação em Brasília não é muito diferente da de Washington. Bruno Magrani, professor e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, aproxima de Swartz ao comentar sobre o andamento do Marco Civil no Congresso: "depois que aconteceu todo o processo de consulta pública e do projeto ter sido gestado dentro do Ministério da Justiça, acho que a sociedade civil subestimou o poder do lobby da indústria de Telecom".
Magrani explica que "o Marco Civil passou por um processo amplo de consulta pública, teve grande participação da sociedade, teve relativo consenso em torno das propostas incluídas, mas, ao que tudo indica, na reta final, quando estava tudo encaminhado para o projeto ser aprovado, as empresas de telefonia descobriram o Marco Civil. Aí, fora do processo público de consulta, ou seja, nos corredores escuros do Congresso Nacional, eles começaram a trabalhar acionando sua bancada de deputados pra parar o Marco Civil". Desde então a votação do projeto já foi adiada por seis vezes e ainda não existe previsão para que ele seja aprovado.
Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC) e militante do software livre, é ainda mais enfático ao avaliar o poder das empresas de Telecom: "Nunca um setor da economia dominou de maneira tão absurda a comunicação. Não que não continue existindo várias formas de se comunicar, mas a forma que nós mais utilizaremos - e que tende a tragar, a convergir as outras- é a comunicação digital, e ela depende de redes", referindo-se à tecnologia de cabos e fibras óticas de propriedade das grandes empresas de telecom.
A pressão das Telecoms para que não se aprove o Marco Civil da Internet é evidente, inclusive com lobby para a mudança do texto amplamente criticada por Marcelo Branco, apoiador do texto inicial, mas que, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, diz que se o congresso ceder aos interesses das grandes empresas de telefonia, o Marco Civil pode virar um novo SOPA e PIPA.
Existem dois pontos essenciais que travam o avanço do Marco Civil por incomodar o setor privado: a questão da neutralidade e a parte do texto que proíbe as empresas de telefonia de armazenar dados dos usuários. E é desses que a sociedade civil não pode abrir mão.
Neutralidade
A neutralidade é a questão técnica que explica a relação das empresas de telecomunicação com o conteúdo que trafega em seus cabos. Não se pode fazer distinção por conteúdo, logo, tanto empresas, como usuários, pagam por velocidade de conexão e não por pacote de tipo ou quantidade de conteúdo. Amadeu, entretanto, afirma que "ela é técnica, mas não é somente técnica, ela é principalmente política e econômica. Imagine se uma operadora resolve, por motivos de suas convicções culturais ou políticas, começar a filtrar determinado tipo de tráfego, de informação. Ou imagine, que é o maior interesse deles na quebra da neutralidade, eles poderem fazer uma precificação, ou fixarem preços diferenciados pra quem usa vídeo, pra quem usa e-mail, ou pra quem só usa web. O sonho desses controladores dos cabos é transformar a internet numa grande rede de TV a cabo, com vários pacotes", explica.
Com a quebra da neutralidade "eles poderiam tentar forçar a barra e cobrar um adicional de empresas como google e netflix que usam muita banda" diz Bruno Magrani. Sérgio Amadeu acredita que os valores adicionais podem atingir também o usuário convencional. Magrani completa frisando que "o problema não é pra essas grandes empresas, mas sim para as pequenas. Se a gente no Brasil quer fomentar o desenvolvimento de 'start ups' nacionais, empresas de tecnologia nacionais, essa característica da internet de baixas barreiras de acesso ao mercado é fundamental para que uma pessoa em uma garagem possa criar um site que vai ser o novo 'boom'", explica.
Pra se ter ideia, com cobranças diferenciadas por tipo de conteúdo a velocidade de navegação pode ser afetada, assim, o conteúdo de um blog independente pode ficar muito mais difícil de ser acessado do que o de um grande portal. Afinal, um blogueiro não terá o mesmo aporte financeiro para manter um provedor de agilidade. "A neutralidade na rede é o princípio de funcionamento da internet que garante em parte essa diversidade, inventividade e liberdade que existe" diz Amadeu.
Invasão de privacidade
O segundo ponto que seria o armazenamento de dados dos usuários como a navegação, os hábitos dessa pessoa na rede, tem se mostrado enorme fonte de lucro não só para as grandes Telecoms, mas também para empresas online como Google e Facebook. Recentemente a rede social sofreu processo por guardar dados de seus usuários. A diferença, entretanto, é que no caso das empresas de telecom a coisa é mais grave:se uma pessoa quiser, ela pode usar outro buscador, mudar seu provedor de e-mail e sair do Facebook; mas a partir do momento em que o usuário entra na rede, não é possível evitar o tráfego por cabos de alguma empresa de Telecom - ou seja, mesmo contra a vontade a pessoa tem seus dados armazenados.
"Tanto a Telefonica, quanto a Oi, já fizeram um acordo com uma empresa estrangeira chamada Phorm, cujo modelo de negócio é o seguinte: a Phorm oferece uma opção pro usuário, se ele quer participar do sistema deles de conteúdos recomendados. Eles monitoram tudo o que os usuários de internet de um dado provedor acessam e com base nessas informações oferecem ao usuário propagandas e outros conteúdos que supostamente seriam do interesse dele. Isso é extremamente invasivo à privacidade do usuário. Você imagina, no Brasil que grande parte dos acessos ainda é feito em lan-houses, que um indivíduo usou o computador antes de você, concordou em participar do programa da Phorm, aí quando você vai usar o computador, todos os dados que estão trafegando por ali estão sendo monitorados, não porque você deu autorização, mas porque o sujeito antes de você deu. Esse é o modelo que a Phorm trabalha e o modelo que duas das maiores operadoras de telefonia do Brasil já embarcaram", pontua Bruno.

Fonte: Caros Amigos

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Raúl Castro, a primeira das vozes críticas



Por Salim Lamrani

Ao contrario da ideia que a imprensa imperialista amplamente difunde, o debate crítico está presente na sociedade cubana.

Naturalmente que, para os inimigos da Revolução Cubana, debater os problemas reais com que Cuba se defronta deveria constituir uma oportunidade para condenar a opção socialista. Mas o que há a registar é que esse debate é animado pelos mais altos responsáveis, não para trair a revolução, mas para a defender. Para Salim Lamrani, o crítico mais virulento de Cuba chama-se Raúl Castro.

No Ocidente Cuba é representada como uma sociedade fechada sobre si própria, onde o debate crítico é inexistente e a pluralidade das ideias é proibida pelo poder. Na realidade, Cuba está longe de ser uma sociedade monolítica que compartilharia um pensamento único. Com efeito, a cultura do debate desenvolve-se cada dia mais e o Presidente cubano Raúl Castro simboliza-a, ao ter-se convertido no primeiro crítico das vicissitudes, contradições, aberrações e injustiças presentes na sociedade cubana.

A necessidade de mudança e do debate crítico

Em Dezembro de 2010, numa intervenção perante o Parlamento cubano, Raúl Castro lançou o alarme e colocou o governo e os cidadãos face às suas responsabilidades: “ Ou rectificamos ou já se acabou el tempo de continuar circulando à beira do el precipício, afundamo-nos e afundar-nos-emos” (1). Acrescentou também pouco tempo depois: “é imprescindível romper a colossal barreira psicológica que resulta de uma mentalidade enraizada em hábitos e conceitos do passado” (2).

Raúl Castro também fustigou a debilidade do debate crítico em Cuba. Fustigou também os silêncios, a complacência e a mediocridade. Lançou um apelo a mais franqueza. “Não há que temer as discrepâncias de critérios […], as diferenças de opiniões, que […] serão sempre mais desejáveis do que a falsa unanimidade baseada na simulação e no oportunismo. Para além do mais, é um direito do qual ninguém deve ser privado”. Castro denunciou “o excesso de secretismo a que nos habituámos durante mais de 50 anos” para ocultar enganos, falhas e erros. “É necessário mudar a mentalidade dos quadros e de todos os compatriotas”, acrescentou (3).

Sobre os media, disse o seguinte:

“A nossa imprensa fala bastante disso, das êxitos da Revolução, e nos discursos também fazemos coro; mas há que ir à medula dos problemas […]. Sou um defensor da luta contra o secretismo, porque atrás dessa ornamentada tapeçaria é onde se ocultam as falhas que temos e os interessados em que seja assim e assim continue. E eu recordo algumas críticas; “sim, façam sair no jornal tal crítica”, orientei eu próprio […]. Imediatamente a grande burocracia começou a mover-se: “Essas coisas não ajudam, desmoralizam os trabalhadores”. ¿Quais trabalhadores vão desmoralizar? Como em uma ocasião, na grande empresa estatal leiteira, El Triángulo. Passavam semanas, porque um dos camiões dessa vacaria que estava aí em Camagüey estava avariado, e então todo o leite que se produzia nas vacarias dessa zona, desse lugar, era deitada a uns porcos que estavam a criar. Foi então que disse a um secretario do Comité Central responsável pela agricultura nessa altura: mete no Granma, conta tudo isto que se está a passar, faz uma crítica. Alguns vieram e até comentaram comigo que: “Estas coisas não ajudam, porque desmoralizam os trabalhadores”. O que não sabiam é que era eu quem tinha dado esta orientação” (4)

Em 1 de Agosto de 2011, durante o seu discurso de encerramento da VII Legislatura do Parlamento Cubano, Raúl Castro reiterou a necessidade do debate crítico e da controvérsia na sociedade: “Todas as opiniões devem ser analisadas, e quando não se alcance o consenso, as discrepâncias serão levadas às instancias superiores com competências para decidir e ninguém está mandatado para o impedir” (5). Apelou a acabar com “o hábito do triunfalismo, a estridência e o formalismo ao abordar a atualidade nacional e produzir materiais escritos e programas de televisão e radio que pelo seu conteúdo e estilo captem a atenção e estimulem el debate na opinião pública” para evitar “materiais aborrecidos, improvisados e superficiais” nos meios de comunicação (6).

A corrupção

Raúl Castro tão pouco evitou o problema da corrupção: “ Ante as violações da Constituição e da legalidade estabelecida não resta outra alternativa senão recorrer à Procuradoria e aos Tribunais, como já começamos a fazer, para exigir responsabilidade aos infractores, sejam eles quem forem, porque todos os cubanos, sem excepção, somos iguais perante a lei” (7). Raúl Castro, consciente de que a corrupção também afeta os altos funcionários, enviou uma mensagem clara aos responsáveis de todos os sectores: “Há que lutar para desterrar definitivamente a mentira e o engano da conduta dos quadros, a qualquer nível”. De modo mais insólito apoiou-se em dois dos dez mandamentos bíblicos para ilustrar o seu ponto de vista: “Não roubarás” e “não mentirás”. Do mesmo modo, evocou os três princípios éticos e morais da civilização inca: “não mentir, não roubar, não ser estroina”, os quais devem guiar a conduta de todos os responsáveis da nação (7).

A liberdade religiosa

Do mesmo modo, Raúl Castro condenou severamente as derivas sectárias. Assim, denunciou publicamente pela televisão alguns atentados à liberdade religiosa devidos à intolerância “enraizada na mentalidade de não poucos dirigentes a todos os níveis” (8). Evocou o caso de uma mulher, quadro do Partido Comunista, com trajetória exemplar, que foi afastada das suas funções em Fevereiro de 2011 devido à sua fé cristã, e cujo salario foi reduzido em 40%, em violação do artigo 43º da Constituição de 1976 que proíbe todo o tipo de discriminação. O presidente da República denunciou assim “os danos causados a uma família cubana por atitudes baseadas numa mentalidade arcaica, alimentada pela simulação e o oportunismo”. Recordando que a pessoa vítima desta discriminação tinha nascido em 1953, data do ataque ao quartel Moncada pelos partidários de Fidel Castro contra a ditadura de Fulgêncio Batista, Raúl Castro expressou o seguinte:

“Eu não fui ao Moncada para isso […]. Da mesma forma, recordávamos que em 30 de Julho, dia da reunião mencionada, se cumpriam 54 anos do assassínio de Frank País e do seu fiel companheiro Raúl Pujol. Eu conheci Frank no México, voltei a vê-lo na Serra, não me lembro de ter conhecido uma alma tão pura como essa, tão valente, tão revolucionaria, tão nobre e modesta, e dirigindo-me a um dos responsáveis dessa injustiça que cometeram, disse-lhe: Frank acreditava em Deus e praticava a sua religião, que eu saiba nunca deixou de o fazer ¿Que teriam vocês feito com Frank País?” (9)


A produtividade, o salario mensal e a caderneta de abastecimento

Quanto à produtividade e à política económica, Raúl Castro admite “uma ausência de cultura económica na população”, bem como os erros do passado. “Não pensamos voltar a copiar ninguém, bastantes problemas nos trouxe fazê-lo, até porque além do mais muitas vezes copiamos mal” (10). O governo cubano dá prova de lucidez no que diz respeito às carências em matéria económica. Reconhece que “a espontaneidade, a improvisação, a superficialidade, o incumprimento das metas, a falta de profundidade nos estudos de viabilidade e a carência de integralidade ao empreender um investimento” atentam gravemente contra a nação (11).

Quanto ao rendimento mensal dos cubanos, Raúl Castro dá prova de lucidez: “O salario ainda é claramente insuficiente para satisfazer todas as necessidades, pelo que praticamente deixou de cumprir o papel de assegurar o principio socialista de que cada qual contribua segundo a sua capacidade e receba segundo o seu trabalho. E isso favoreceu manifestações de indisciplina social” (12).

Do mesmo modo, o presidente cubano não vacilou em sublinhar os efeitos negativos da caderneta de abastecimento em vigor desde 1960, particularmente “o seu nocivo carácter igualitarista”, que a converteu em “uma carga insuportável para a economia e em um desestimulo ao trabalho, para além de gerar ilegalidades diversas na sociedade”. Também apontou as seguintes contradições: “Como a caderneta está concebida para abranger de forma igual os mais de 11 milhões de cubanos, não faltam exemplos absurdos como o do café tabelado abastecer até os recém-nascidos. O mesmo sucedia até Setembro de 2010 com os cigarros que eram distribuídos sem distinguir fumadores e não fumadores, propiciando o crescimento deste hábito nocivo na população”. Segundo ele, a caderneta “ contradiz na sua essência o principio da distribuição que deve caracterizar o socialismo, ou seja, “De cada qual segundo a sua capacidade, a cada qual segundo o seu trabalho”. Por isso, “ será imprescindível esforçarmo-nos para erradicar as profundas distorções existentes no funcionamento da economia e da sociedade no seu conjunto” (13).

A renovação geracional

Por outra lado, Raúl Castro também sublinhou a presença de um problema crucial em Cuba: a relevo geracional e a falta de diversidade. Denunciou “ a insuficiente sistematicidade e vontade política para assegurar a promoção a cargos decisórios de mulheres, negros, mestiços e jovens, na base do mérito e das condições pessoais”. Exprimiu o seu desagrado sem elidir a sua própria responsabilidade: “ Não ter resolvido este último problema em mais de meio século é uma verdadeira vergonha, que carregaremos nas nossas consciências durante muitos anos”. Em resultado deste problema, Cuba sofre “as consequências de não contar com uma reserva de substitutos devidamente preparados, com suficiente experiencia e maturidade para assumir as novas e complexas tarefas de direcção no Partido, no Estado e no Governo” (14).
Todas estas declarações foram feitas em directo na televisão cubana em horário nobre. Permitem ilustrar a presença do debate crítico em Cuba ao mais alto nível do Estado. Assim, Raúl Castro não é apenas o Presidente da nação, mas também – segundo parece – o mais feroz crítico das derivas e imperfeições do sistema.

Notas:

(1) Raúl Castro Ruz, «Discurso pronunciado pelo General do Exército Raúl Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros, no encerramento do Sexto Período Ordinário de Sessões da Sétima Legislatura da Assembleia Nacional do Poder Popular», República de Cuba , 18 de Dezembro de 2010.
http://www.cuba.cu/gobierno/rauldiscursos/2010/esp/r181210e.html (sitio consultado el 2 de Abril de 2011).
(2) Raúl Castro Ruz, «Intervenção do General do Exército Raúl Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros da República de Cuba no encerramento do X Período de Sessões da Sétima Legislatura da Assembleia Nacional do Poder Popular», 13 de Dezembro de 2012.http://www.cubadebate.cu/raul-castro-ruz/2012/12/13/raul-todo-lo-que-hagamos-va-dirigido-a-la-preservacion-y-desarrollo-en-cuba-de-una-sociedad-socialista-sustentable-y-prospera-fotos/ (sitio consultado em 2 de Janeiro de 2013).
(3) Raúl Castro, « Discurso…», 18 de Dezembro de 2010, op.cit.
(4) Ibid.
(5) Raúl Castro, «Toda resistência burocrática ao estrito cumprimento dos acordos do Congresso, apoiados massivamente pelo povo, será inútil», Cubadebate, 1 de agosto de 2011.
(6) Raúl Castro, «Texto íntegral do Informe Central ao VI Congresso do PCC», 16 de Abril de 2011. http://www.cubadebate.cu/opinion/2011/04/16/texto-integro-del-informe-central-al-vi-congreso-del-pcc/ ( sitio consultado em 20 de Abril de 2011).
(7) Raúl Castro, «Toda resistência…», op. cit.
(8) Raúl Castro, « Discurso…», 18 de Dezembro de 2010, op.cit.
(9) Raúl Castro, «Toda resistência…», op. cit.
(10) Ibid.
(11) Raúl Castro, « Discurso…», 18 de Dezembro de 2010, op.cit.
(12) Partido Comunista de Cuba, «Resolução sobre as linhas da política económica e social do partido e a Revolução», op. cit.
(13) Raúl Castro Ruz, « Discurso…», 18 de Dezembro de 2010, op. cit.
(14) Raúl Castro, «Relatório central ao VI Congresso do Partido Comunista de Cuba», 16 de Abril de 2011.http://www.cuba.cu/gobierno/rauldiscursos/2011/esp/r160411e.html (sitio consultado em 2 de Janeiro de 2013).
(15) Ibid.
*Doutor em Estudos Ibéricos y Latino-americanos de la Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor titular de la Universidade de la Reunión y periodista, especialista de las relações entre Cuba y Estados Unidos. Seu último libro se titula Etat de siège. Les sanctions économiques des Etats-Unis contre Cuba, Paris, Edições Estrela, 2011, com um prólogo de Wayne S. Smith y um prefácio de Paul Estrade. Contacto: lamranisalim@yahoo.fr ;Salim.Lamrani@univ-reunion.fr Página Facebook: https://www.facebook.com/SalimLamraniOfficiel
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/26619/raul+castro+o+verdadeiro+dissidente.shtml