Por Sergio Martins
Há muito não se vê tantas entidades comprometidas com os direitos civis – OAB, Justiça Global, Tortura Nunca Mais, Anistia Internacional, entre outras, além de diversos partidos políticos – num uníssono tão afinado quanto o que vem condenando o inquérito que levou a prisão de dezenas de ativistas no Rio de Janeiro. Desde gravações telefônicas inconclusivas até acusações espúrias – uma das “evidências” que pesa contra a advogada Eloisa Samy é o fato dela, uma militante de direitos humanos, não cobrar honorários –, a inconsistência jurídica do inquérito parece cada dia mais evidente. Mas como explicar a motivação e a eficácia de um documento produzido nesses moldes? A resposta, como foi dito em alto e bom som no ato de repúdio às prisões realizado no dia 22 de julho na OAB/RJ, é que o inquérito já nasce pré-julgado. Para compreender melhor esse processo, nada mais instrutivo do que seguir o rastro daquela parece ter se tornado, aos olhos da grande imprensa, a inimiga pública número um: a ativista Elisa Quadros, mais conhecida como Sininho.
Para dar um foco mais estreito ao trabalho, atenhamo-nos àquele que parece ser o veículo mais obcecado pela figura de Sininho, o jornal O Globo. A primeira aparição de Sininho nas páginas do jornal foi na famigerada capa dos “70 vândalos”, de 17 de outubro 2013, a mesma que rendeu do editor-executivo Pedro Dória elogios à equipe por “revelar personagens”. Lá ela era “Sininho do barulho”. Nas matérias relacionadas à esta manchete, as evidências contra Sininho são o fato dela ter declarado que “vive na rua” e ter, em sua página de Facebook, um símbolo anarquista (a simpatia política, no caso, é o crime). Ainda assim, um depoimento de outra ativista refuta a ideia de que Sininho seja líder do que quer que seja, reiterando que “o movimento não tem líderes.”
O começo da construção do personagem é mais espaçado. Em 25 de outubro, o jornal fotografa Sininho falando para professores em greve. Sua aparição seguinte é mais adiante, em fevereiro de 2014, agora como personagem do conto de terceiros: é a história do advogado Jonas Tadeu, que diz ter ouvido de Sininho um relato sobre as “ligações” entre Fábio Raposo e Marcelo Freixo (para os que não lembram, a manchete do site G1 – também das Organizações Globo – a esse respeito é antológica: “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado estadual Marcelo Freixo”). Em declaração ao jornal, no dia 10, Sininho nega ter sido fonte das declarações e afirma inclusive que sempre repudiou a violência, mesmo como tática de protesto. Nas matérias seguintes, no entanto, seu nome segue flutuando, embora fique claro para o leitor que a acusação real contra ela é, no máximo, a de intermediar apoio jurídico a presos em protestos.
Com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, o tom das matérias se inflama. No dia 13, Sininho aparece num box de “perfis”, dentro de uma série de reportagens intitulada “Ataque à Liberdade de Expressão”, na companhia de Jonas Tadeu e Fábio Raposo. O “perfil”, escrito por Elelnice Bottari, vem com o título: “Com nome de fada, mas fama de encrenqueira” – uma reedição do “Sininho do barulho”. Apesar de reconhecer que pouco se sabe da vida da ativista antes das manifestações, a autora afirma que o discurso de Sininho mudou e a retrata como alguém que inicialmente “pedia calma” aos black blocs com quem “caminhava junto”, mas que posteriormente conquistou liderança no Ocupa Câmara e chegou a gritar palavras de ordem e a segurar ovos para atirar contra o vereador Chiquinho Brazão (PMDB), que havia sido empurrado goela abaixo como presidente da CPI dos Ônibus numa manobra da bancada de apoio ao prefeito Eduardo Paes. Bottari diz ainda que Sininho foi presa por desacato após supostamente ter chamado de “macaco” um policial e que ela teria chamado jornalistas de “carniceiros”. Esse último ponto vem junto a uma frase sobre a morte de Santiago, como que para insinuar alguma espécie de simpatia ou concordância com o ocorrido. Logo em seguida, Bottari escreve que Sininho “arrumou mais confusão” ao ser acusada por Jonas Tadeu de ter falado da tal ligação com Freixo. Vale sublinhar: Sininho foi acusada, desmentiu a acusação dias antes, mas aparece na matéria como o sujeito da frase, isto é, como aquela que ativamente “arrumou mais confusão”.
No dia seguinte, 14 de fevereiro, entra em cena o factóide das doações de vereadores e do delegado Orlando Zaccone a manifestantes do Ocupa Câmara, sob o título “Manifestações Violentas em Xeque”. A matéria de Luiz Ernesto Magalhães abre com comentário de que mesmo após sua prisão (com os “70 vândalos”), Sininho continuou “circulando com desenvoltura” nos salões da Câmara de Vereadores. A própria matéria reconhece que a finalidade das doações era uma festa de Natal para a população de rua da Cinelândia, mas o título e o destaque não deixam mentir: o tom é de insinuação de que algo impróprio teria ocorrido. O ato de “dar dinheiro a manifestantes” é retratado praticamente como financiamento ao crime.
Dia 17 de fevereiro, página 2. Na coluna de Ricardo Noblat, a foto de Sininho usando um óculos da moda é contraposta à da jovem guerrilheira Dilma Roussef, também de óculos. A justaposição já diz tudo: embora o governo engrosse o discurso de criminalização das manifestações (Noblat cita inclusive uma fala de José Eduardo Cardozo a esse respeito na mesma coluna), a oposição manifesta d’O Globo faz o jogo do leitor e representa Dilma como uma radical simpática a uma versão deturpada do que seria a agenda das manifestações: a apologia da violência e o ataque à democracia. Mas vejamos o que o colunista tem a dizer sobre Sininho: 1) ela é uma black bloc (o que nesse momento já havia se tornado, graças em grande parte aos esforços do jornal e da Rede Globo, um sinônimo de criminoso); 2) ela “usa a a violência para derrubar… nem ela mesma sabe direito o quê.” – o personagem aqui já se tornou ele próprio violento, ainda que literalmente nenhuma evidência nesse sentido tenha aparecido; 3) “Suponho que Sininho e sua turma desejam ferir gravemente o regime democrático sob o qual vivemos.” – aqui, o colunista distingue Dilma de Sininho, pois esta, acusada de ser parte ativa de uma turma violenta, estaria na verdade lutando contra a democracia pela qual lutaram e sofreram Dilma e tantos outros (o fato d’O Globo ter na época defendido a ditadura e tratado os opositores desta também como uma “turma violenta” e antidemocrática parece não importar).
A moda da justaposição de imagens pega: no final da coluna de Ancelmo Góis, no dia 20 de fevereiro, uma foto de Sininho à uma de Débora Falabella, com a seguinte legenda: “Tem gente achando que Sininho, a espevitada ativista, lembra um pouco Débora Falabella. Nada contra… a talentosa atriz!”. Não é nada, não é nada, é um indício de que o foco no personagem passa pelo casting: o fato de ser mulher, jovem, bonita e aparentemente doce serve tanto para justificar jogos de palavras baratos com sua suposta periculosidade, numa preparação de terreno para que o repúdio do leitor possa tomar a forma de juízos misóginos.
Sininho aparece novamente numa matéria de 16 de abril sobre – mais uma vez – um protesto que terminou em “baderna”. Mais precisamente: “O protesto, que começou pacífico e contou com a presença de ativistas como Elisa Quadros, a Sininho, virou uma verdadeira baderna à tarde”. Qual teria sido o papel de Sininho nisso? O Globo não diz, e nem precisa, uma vez que ela já é, nessa altura do campeonato, uma “vândala” que “usa a violência” para “ferir gravemente a democracia”. Sua mera presença já é caso de página policial.
Em 14 de junho, Sininho já se encontra indiciada por incitar a violência. Na mesma notícia, é mencionado que ela também é testemunha de acusação do processo contra os PMs que plantaram rojões na mochila de um adolescente na Lapa (momento capturado num vídeo, diga-se de passagem, gravado pelo próprio O Globo). Mas esse não é o ponto de destaque: o que importa é que o personagem finalmente colou na pessoa a ponto de produzir consequências legais graves. Daí em diante, todos conhecem a novela.
Cabe a cada um tirar suas conclusões. A minha é de que o caso da construção do personagem Sininho é um exemplo de como a “jurisprudência muda” de que falou o Vladimir Safatle em uma coluna recente não é restrita aos trâmites da justiça. Seu efeito, segundo Safatle, é o da naturalização progressiva de transgressões da ordem jurídica perpetradas pelo próprio poder judiciário; meu ponto é que um processo semelhante ocorre com o valor de “fato” em narrativas de imprensa: basta repetir uma mesma suposição três ou quatro vezes para poder então abrir mão do tempo condicional e tratá-la como fato. De notícia em notícia, de página em página, disparates sem fundamento viraram suspeitas que viraram condenação pública que viraram alvo de inquérito. Os ingredientes são tóxicos: criminalização, má-fé e misoginia (isso sem nem entrar no capítulo a parte que são as colunas editoriais do jornal).
Se o inquérito em questão não prima pelo zelo à ordem legal, é porque, no fundo, não é este seu objetivo. Mais valor que a consistência jurídica tem a eficácia moral. O que é “fato” para o jornal e “evidência” para o Ministério Público (e para o juiz que acolheu em duas horas o processo de duas mil páginas), não são reconstruções do ocorrido baseadas em investigações rigorosas, mas construções ficcionais feitas sob medida para o gosto moralista de um leitor conservador informalmente alçado a júri popular. Em suma, o que está correndo em sigilo de justiça é só uma parte do inquérito. Uma outra, talvez a mais importante, vem correndo a olhos vistos, na página dos jornais, desde junho do ano passado.
Fonte: Revista Pittacos
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