sexta-feira, 18 de julho de 2014

A esquerda e o iphone



Confesso que não sabia bem o que era um iphone até ouvir esse tipo de frase de efeito: “é comunista/socialista, mas usa iphone”. Só então descobri que era uma marca comercial específica de smartphone, que não é a mesma coisa que um ipod.

Descobri isso graças à wikipedia, uma enciclopédia virtual construída por cooperação voluntária, usando um computador fabricado por alguma empresa capitalista, mas inventando em universidades públicas, através do sistema operacional Linux, software livre, produzido por cooperação voluntária, acessando a internet, rede de comunicação criada no setor público militar dos Estados Unidos, e das redes de telecomunicação via satélite, uma invenção soviética. No dia em que fiz essa descoberta sobre smartphones e ipods, comi três refeições de alimentos produzidos pela agropecuária, uma invenção das comunidades tribais neolíticas. Tenho certeza que vários produtos que utilizei hoje tem origens heterogêneas, em culturas capitalistas, socialistas, feudais, escravistas, camponesas, nômades, etc, originadas em uma, aperfeiçoadas em outras, e assim por diante.

É praticamente impossível mapear a origem da técnica e o processo econômico pelo qual passaram os produtos que eu utilizo no meu cotidiano. Pelo meu conhecimento histórico e sociológico, presumo que algumas coisas que consumo passam, em pelo menos um elo da produção, pela devastação ecológica e trabalho escravo ou precário. Alguns são de grandes marcas, outros de pequenos produtores, alguns de cooperativas.

O que eu nunca fui capaz de descobrir é qual é a contradição entre ser de esquerda e usar algum produto tecnológico. Pessoas de mentalidade conservadora/direitista pensam saber o que é ser de esquerda e poder ensinar para quem é de esquerda o que significa sê-lo. E o que parece se depreender de uma postura de esquerda coerente, segundo os reacionários, é ser um eremita. Afinal, nada melhor para a direita se toda a esquerda fosse morar em comunidades hippies ou em Cuba. Os ricos respirariam aliviados, pois seus inimigos não criariam problemas gravíssimos, como denunciar injustiças e participar de mobilizações populares.

Não direi que estão completamente incorretos em algumas críticas. Não sou extremista. É realmente “feio” alguém da esquerda anticapitalista ter um comportamento consumista, fazendo questão de esbanjar riquezas e acumulando coisas desnecessárias.

Muito pior que isso, no entanto, é defender abertamente e incentivar o consumismo individualista e desenfreado como privilégio de alguns bem-nascidos, estigmatizando quem sofre com baixos salários ou desempregado como “vagabundos” e coisas semelhantes. É muito mais “feio” naturalizar desigualdades extremas, patrimônios exorbitantes e exclusão social. Porque aí não se trata apenas de um comportamento privado “feio”. É também o comportamento público horrendo. É uma conduta integralmente perversa.

Uma parte importante da esquerda busca uma reforma dentro dos limites do capitalismo, para redução das desigualdades, exclusão e exploração mais extremas. Outros tentam ir além, procurando meios de superação do modo de produção capitalista. A questão chave é a redistribuição dos produtos e meios do trabalho que se encontram concentrados nas mãos, principalmente, de quem não trabalha, mas é proprietário do capital.

De uma perspectiva de esquerda, ou seja, do igualitarismo social, não há lugar para repúdio à tecnologia, apenas as suas funções e usos numa sociedade injusta. Não condenamos todo e qualquer uso da energia nuclear, se denunciamos o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki como um ato genocida. A energia nuclear tem muitos usos pacíficos. Da mesma forma que os iphones e ipods provavelmente tem outros usos, além da ostentação consumista.

O problema para a esquerda não é a tecnologia dos ipods e iphones, é a falta de acesso universal à alimentação, moradia, vestuário, transporte coletivo, educação, saúde, aposentadoria e trabalho digno. E também a cultura e meios de comunicação. É a existência de uma ínfima minoria riquíssima, em contraste com grandes massas relativa ou absolutamente pobres e desamparadas.

O que impõe limites à difusão dos ipods e iphones não é a esquerda. É o planeta. Os recursos são limitados, e a generalização de um padrão de consumo como o dos estadunidenses (que são pouco menos de 5% da população mundial e concentram 25% da renda, além de consumir 30% do petróleo), exigiria quatro planetas. Aí é que há limitação legítima do consumo: pela sustentabilidade ecológica de longo prazo. É por isso que melhorar e expandir o transporte coletivo e ciclovias é preferível a universalizar o casso pessoal. Em qualquer um desses casos, trata-se de uma questão coletiva, objeto de políticas públicas, e não de escolhas privadas.

Isso significa que o homem ou mulher de esquerda, como já disseram muitos reacionários, deveria doar sua renda individual? Esse ato seria indiferente. Não é raro que o esquerdista que siga esse conselho seja em seguida acusado de demagogo… Parece que é impossível a pessoa de esquerda ser coerente, não acham? Na verdade, a filantropia é uma escolha privada. A opção pela esquerda é política, diz respeito a decisões de alcance coletivo, e, primeiramente, ao modo de governar e utilizar o Estado.

A economia capitalista certamente não funcionaria caso todos os ricos fossem adeptos da total filantropia, e escolhessem viver com uma renda equivalente a um salário modesto, dividindo todo o resto. Afinal, quem trabalharia para produzir a riqueza?

A esquerda não defende a filantropia, que é uma escolha privada, possível apenas para quem já tem muito mais do que precisa. A filantropia se baseia uma relação de dependência entre o doador e o beneficiário. Às vezes o filantropo tira maior benefício para si deste ato, pois adquire prestígio e influência (e em muitos casos, consegue esconder a sonegação de grandes somas). A esquerda promove a solidariedade, que é a ajuda mútua entre iguais, e políticas públicas, ativas e coativas de redistribuição de renda.

Sim, coativas. Um imposto de renda progressivo é coação. Qualquer imposto é coercitivo – então que ao menos seja justo. Esse imposto arrecadado deve ser direcionado para um investimento social eficiente, que beneficie aos mais pobres (Bolsa-Família, reforma agrária, etc) ou a todos (educação e saúde públicas, transporte coletivo, etc).

Antes que digam que isso é um atentado à liberdade, gostaria de lembrar que a propriedade privada é tremendamente coativa. A propriedade privada é exclusiva: o bem é apropriado por um, que faz dele o que bem entender, quando é excluído do usufruto de todos os outros. Grande parte da violência policial e encarceramento é repressão aos crimes contra a propriedade privada. Grande parte da criminalidade de rua é tentativa de obter propriedade privada por meios ilegais. Qual liberdade proprietária tem o miserável, que nada tem para si? A liberdade individual do pobre é ser escravizado pela necessidade. Uma redistribuição de riquezas desigualmente distribuídas é a maior promoção da liberdade, pouco importando que seja realizada mediante coerção política e jurídica.

Ser de esquerda, portanto, não é ser contra qualquer tecnologia X por ter sido inventada numa sociedade capitalista, feudal ou escravista, mas, pelo contrário, lutar pela socialização dos benefícios do progresso tecnológico. E desde que (re)descobrimos a finitude dos recursos do planeta, de um modo que não comprometa o futuro dos nossos filhos, netos e bisnetos.




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